sábado, 31 de março de 2007

Felicidade clandestina, de Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. (...)

In Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 7ss.

Você, rara ou raro leitor, pertence à geração dos filhos de Monteiro Lobato? Ou à dos leitores de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, da Clarice? Fico pensando se Reinações de Narizinho poderá ter sido um tipo de Harry Porter da infância de Clarice, que os leitores, infantes e jovens, ficavam com desejo de comprar diante das vitrines das livrarias ou, ansiosos, esperavam chegar sua vez de ler na biblioteca. O que acha disso?

Você tem alguma estória de uma felicidade clandestina pra (nos) contar?

O que você acha que mudou ou não mudou nas práticas de leitura de livros?

Vale procurar na estante ou num sebo o Felicidade clandestina para reler esse e os outros contos de nossa escritora maior. Mas se gostar de livro com cheirinho de novo, na próxima visita à livraria, procure-o. E, após passar pelo caixa - lembre-se! -, saia “andando bem devagar” e leia-o calmamente em casa.

Há hoje um outro meio. Busque-o no Google e releia-o agora mesmo. E faça o seu comentário.

Foto: http://br.geocities.com/claricegurgelvalente/12_fotografias.htm

2 comentários:

Anônimo disse...

Sou daquelas que teve Lobato povoando-lhe a infância, e como! Li toda a coleção maravilhada livro após livro. Fui conhecer Clarice já mulher, e justamente através do Livro dos Prazeres. Pequeno e complexo, não pude devorá-lo... tive que saborear devagar durante todo um ano, mas não me arrependi. Vou buscar sua sugestão. Obrigada!

Aníbal Bragança disse...

Cynthia,
gosto muito desta troca, imaginando você e seu sorriso.
Li Monteiro Lobato para minhas filhas. A Joana dormia. Agora, finalmente, leu todo o Reinações de Narizinho para o João Pedro. Adoraram.
Mas O livro dos prazeres foi saboreado por mim. Conteúdo e forma. Intenso!
Um ótimo domingo.
Aníbal