quinta-feira, 31 de julho de 2008

Italo Calvino: sobre publicações, escritores e leitores

Italo Calvino.
Foto reproduzida da 4a. capa de Se um viajante numa noite de inverno. Editora Nova Fronteira.

[diálogo ocorrido na editora:]
(...)

– Há uma linha que separa: de um lado os que fazem livros, de outro os que lêem. Quero continuar a fazer parte daqueles que lêem, e por isso presto muita atenção para me manter sempre deste lado da linha. Senão, o prazer desinteressado de ler já não existe, ou ao menos se transforma em alguma outra coisa, que não é o que eu quero.

É uma fronteira imprecisa, que tende a desaparecer: o mundo daqueles que têm relação profissional com os livros está cada vez mais povoado, e tende a se identificar com o mundo dos leitores.

Evidentemente os leitores também são cada vez mais numerosos, mas pode-se dizer que o número daqueles que utilizam os livros para produzir outros livros cresce definitivamente mais depressa que o número daqueles que gostam dos livros para ler.
(...)

Eu sou um leitor, só um leitor, não um autor (...).

– Ah, bem! Bravo, bravo, estou muito contente! (...) Isso me dá muito gosto. Verdadeiros leitores encontro-os cada vez menos.
(...)

Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Romance. Tradução de Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 109-114. Há uma nova tradução para o português, editada pela Cia. das Letras.

No romance sobre autoria, leitura, escritura, editores, livros, livrarias, contrafações e outras experiências vividas no mundo contemporâneo da cultura do impresso, Se um viajante numa noite de inverno, rara leitora, certamente você encontrará outras contribuições de um verdadeiro mestre para sua reflexões sobre o tema “ser leitor e/ou escritor”, que foi referido aqui especialmente nestas últimas postagens, de Gilberto Freyre a Drummond, passando por Blanchot, e nas ricas contribuições até agora recebidas.

Aqui é explicitada a progressão geométrica do número de leitores que lêem para escrever, isto é, que praticam a leitura com intuitos pragmáticos ou utilitários, em relação ao número daqueles que o fazem descompromissadamente, por entretenimento, experiência estética ou simplesmente para ocupar de forma prazerosa o seu tempo de lazer, como o personagem citado, que luta para se manter um simples leitor.

O pequeno excerto do belo texto de Calvino pretende, além de ser um convite à leitura da obra, ser também modesta contribuição para um possível enriquecimento deste foro, ou esquina virtual, onde nos encontramos, sem café, vinho ou cerveja, o que, admitamos, é uma perda se o compararmos com as experiências da boêmia literária dos séculos pré-Internet. Mas não deixa de ser um lugar propiciador de encontros humanos em torno de uma espécie de enorme mesa.


Para saber mais
sobre Italo Calvino (Santiago de Las Vegas, Cuba, 15/10/1923)–Roma, Itália, 19.9.1985):
http://pt.wikipedia.org/wiki/Italo_Calvino
http://en.wikipedia.org/wiki/Italo_Calvino (em inglês)

sábado, 26 de julho de 2008

Carlos Drummond de Andrade: A um jovem (última parte)



Mando-lhe aqui jovem Alípio, outras drágeas de suposta sabedoria, completando assim a instrução que lhe ministrei.

XIV – Procure fazer com que seu talento não melindre o de seus companheiros. Todos têm direito a presunção de genialidade exclusiva.

XV – Faça fichas de leitura. As papelarias apreciam esse hábito. As fichas absorverão o seu excesso de vitalidade e, não usadas, são inofensivas.

XVI – Se sentir propensão para o “gang” literário, instale-se no seio de sua geração e ataque. Não há polícia para esse gênero de atividade. O castigo são os companheiros e depois o tédio.

XVII – Não se julgue mais honesto que o seu amigo porque soube identificar um elogio falso, e ele não. Talvez você seja apenas mais duro de coração.

XVIII – Evite disputar prêmios literários. O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por juízes que o seu senso crítico jamais premiaria.

XIX – Sua vaidade assume formas tão sutis que chega a confundir-se com modéstia. Faça um teste: proceda conscientemente como vaidoso, e verá como se sente à vontade.

XX – Seja mais tolerante com o cabotinismo de seu amigo; quase sempre esconde uma deficiência, e só impressiona a outros cabotinos.

XXI – Quanto ao seu próprio cabotinismo, ele esfriará se você observar que, na hipótese mais cristã, é objeto de tolerância alheia.

XXII – Antes de reproduzir na orelha de seu livro a opinião do confrade, pense, primeiro, que ele não autorizou a divulgação; segundo, que a opinião pode ser mera cortesia; terceiro, que você não admira tanto assim o confrade.

XXIII – Procure ser justo com os outros; se for muito difícil, bondoso; na pior eventualidade, omisso.

XXIV – Opinião duradoura é a que se mantém válida por três meses Não exija maior coerência dos outros nem se sinta obrigado intelectualmente a tanto. E proceda à revisão periódica de suas admirações

XXV – Procure não mentir, a não ser nos casos indicados pela polidez ou pela misericórdia. É arte que exige grande refinamento, e você será apanhado daqui a dez anos se ficar famoso; e se não ficar não terá valido a pena.

XXVI – Deixe-se fotografar à vontade, sem chamar os fotógrafos; não recuse autógrafos, mas não se mortifique se não os pedirem. Homero não deixou cartas nem retratos, mas Baudelaire deixou uns e outros. O essencial se passa com outros papéis.

XXVII – Você tem um diário para explicar-se; é assim tão emaranhado? Para justificar-se: sua consciência anda meio turva? Para projetar-se no futuro: julga-se tão extraordinário?

XXVIII – Trate as corporações com cortesia, pois poderá vir a ingressar numa; com indiferença, pois o mais provável é não ingressar nunca.

XXIX – Aplique-se a não sofrer com o êxito de seu companheiro, admitindo embora que ele sofra com o de você. Por egoísmo poupe-se qualquer espécie de sofrimento.

XXX – Boa composição oral é a de orgulho e humildade; esta nos absolve de nossas fraquezas; aquele nos impede de cair em outras. Quanto aos santos-escritores, é de supor que foram canonizados apesar da condição literária.

XXXI – Seja discreto. É tão mais cômodo!

[1953]


In Carlos Drummond de Andrade, A bolsa & a vida. Crônicas. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 115-118.

Raro leitor, completamos aqui as "recomendações" de Drummond ao Alípio, jovem aspirante a escritor. Já se passaram cinqüenta anos que as escreveu e por elas podemos (supostamente) conhecer sua percepção do que era, para ele, ser escritor, então. E sua sabedoria..

Ser escritor hoje é, ao menos em parte, outra coisa. Todos nós podemos nos achar escritores. Publicar já não é tão difícil quanto antes, ao contrário. A árdua tarefa é encontrar leitores. Existem, raros, preciosos, cúmplices. É para eles que a grande maioria dos que escrevem, escreve. Todos, sobreviventes da galáxia de Gutenberg. Viva Benjamin, salve McLuhan: vocês perceberam antes e nos alertaram. Sim, somos incorrigíveis. Não acha?

domingo, 20 de julho de 2008

Carlos Drummond de Andrade: A um jovem

Prezado Alípio:

Ontem à noite, ao sair você de nosso apartamento, aonde fora em busca de sabedoria grega e só encontrou um conhaque e um gato por nome Crispim, assentei de reduzir a escrito o que lhe dissera. Aula de ceticismo? Não. Ele se aprende sozinho.

A única coisa que se pode remotamente concluir do que conversamos é: não vale a pena praticar a literatura, se ela contribuir para agravar a falta de caridade que trazemos do berço.

Por isso, e porque não adiantaria, não lhe dou conselhos. Dou-lhe anticonselhos, meu filho. E se o chamo de filho, perdoe: é balda de gente madura. Poderia chamar-lhe irmão, de tal maneira somos semelhantes, sem embargo do tempo e do pormenor físico: cultivamos ambos o real ilusório, que é um bem e um mal para a alma.

Pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem. Que pelo menos ele não nos torne demasiado antipáticos aos olhos dos coetâneos absorvidos por ocupações mais seculares.

Recolha pois estes apontamentos, Alípio, e saiba que eu o estimo:

I – Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.

II – Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.

III – Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.

IV – Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.

V – Leia muito e esqueça o mais que puder.

VI – Anote as idéias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.

VII – Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.

VIII – Mas se disserem que seu novo livro é pior do que o anterior, pode ser que falem a verdade.

IX – Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.

X – Acha que sua infância foi maravilhosa e merece [ser] lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.

XI – Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.

XII – O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.

XIII – Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.
[1953]

(fim da primeira parte)


In Carlos Drummond de Andrade, A bolsa & a vida. Crônicas. 1a. edição. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 113-115.

Carlos Drummond de Andrade (31/10/1902-17/8/1987) é considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos. Seus textos em prosa, como contista e cronista, são sempre experiências de leitura prazerosas e enriquecedoras. Devo confessar: a admiração que inspira sua personalidade parece conseguir superar a que tenho por sua obra. Mas isto, sei, é bobagem. Esta admiração pelo personagem só existe nessa dimensão porque ele é o autor desses textos que amamos.

Faz 21 anos que Drummond – jamais aceitou ingressar na Academia – se tornou imortal.

Vamos, rara leitora, reler nosso poeta maior? O que nos sugere? O texto dirigido por Drummond a Alípio lhe diz algo ainda hoje, mais de 50 anos depois de publicado na imprensa?

Para saber mais:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Sobre as “afamadas officinas dos Sñrs. G. Leuzinger & Filhos d’esta Côrte”

“O chefe d’esta firma, George Leuzinger, respeitavel ancião de 72 annos de idade, nasceu em Outubro de 1813 na aldeia de Mollis, cantão de Glaris, Suissa, e chegou ao Rio de Janeiro em 20 de Dezembro de 1832.

Começou a sua vida commercial como empregado de seu tio, na casa importadora e exportadora – Leuzinger & Cia. – por elle proprio liquidada em 1840.

Nesta mesma data, o Sñr. George Leuzinger fez acquisição do estabelecimento de papelaria e encadernação do Sñr. Bouvier, á rua do Ouvidor nº 36, casa que ainda hoje occupa.

Foi em 1848 que este notavel industrial, reconhecendo a falta de uma officina de gravura e estamparia, envidou todos os recursos de que podia dispôr naquella epoca e conseguiu mandar vir da Europa o material e pessoal indispensaveis para esse fim.

De facto, com grandes sacrificios, obteve apresentar trabalhos satisfactorios, sendo, depois de algum tempo, coadjuvado por aprendizes nacionaes. Em 1860, porém, viu-se na necessidade de fechar a sua officina, porque o seu melhor gravador fôra levado para a Casa da Moeda.

Em 1853 comprou o Sñr. Leuzinger a typographia franceza do Sñr. Saint-Amand, a qual compunha-se de 3 prélos manuaes e algum typo de máu e velho gosto, único então usado no Rio de Janeiro. Prosseguindo no desenvolvimento de seu negocio, a par de seu genio reformador e progressista, o Sñr. Leuzinger, por intermedio do honrado Sñr. Fletcher, em 1858, importou dos Estados Unidos os primeiros prélos e typos americanos, com que operou uma completa transformação na industra typographica brazileira.

Seus trabalhos para o commercio e administração publica, d’aquelle anno em diante, attestam os seus esforços, as suas glorias, e a honra indisputavel que lhe cabe na introducção d’este melhoramento.

No anno de 1872 o Sñr. Leuzinger deu á sua officina o desenvolvimento que hoje possue. O seu material compõe-se de 19,0000 kilos de typos americanos de primeira qualidade, 1 motor a gaz da força de 4 cavallos, e 10 prélos mechanicos dos melhores fabricantes. O pessoal é representado por 51 artistas compositores e impressores, pela maior parte nacionaes, e discipulos da propria casa.

A esses e a outros factos, assim como á sua reconhecida probidade, intelligencia, actividade e dedicação ao trabalho, deve o Sñr. Leuzinger o conceito e fama de que gozam os artefactos sahidos de sua casa, presentemente conhecida em todo o Imperio.

A firma social d’esta casa é representada pelo Sñr. George Leuzinger e por 3 filhos seus, desde 1872.”

Este texto foi retirado do Catálogo de Cimélios da Biblioteca Nacional, organizado sob a direção de João Saldanha da Gama e publicado em 1885 (ver abaixo a indicação bibliográfica). Faz parte do verbete nº 210 dedicado aos Annaes da mesma instituição, p. 405-407, privilegiando as matérias constantes do 6º volume desses anais, o qual também se destaca por sua “nitidez e elegancia da execução typographica” feita pela casa Leuzinger, a mesma que imprimiu o Catálogo.

Entre aspas, o texto pode indicar ser “institucional”. Entretanto, sua transcrição no Catálogo lhe confere a credibilidade dada pelo organizador e pela Biblioteca Nacional, além da aprovação da própria empresa, que o imprimiu. Cremos assim, raro leitor interessado em história editorial brasileira, ser o texto uma fonte primária relevante sobre uma das mais importantes editoras-impressoras do país no século XIX, apreciada pela elevada qualidade gráfica de suas edições. Você, rara leitora, conhece alguma delas?


Fonte: João Saldanha da Gama (dir.). Catalogo da Exposição Permanente dos Cimelios da Bibliotheca Nacional. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1885

PS1:
Aproveitamos para registrar que a Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, através da Biblioteca Nacional Digital - http://www.bn.br/bndigital/pesquisa.htm -, oferece acesso livre, na rede, a todos os volumes, de 1876 a 2001, dos Anais da Biblioteca Nacional http://objdigital.bn.br/acervo_digital/anais/anais.htm .
Bendita invenção! Belo trabalho!

PS2:
Com muita satisfação registramos também que o Boletim Eletrônico da Câmara Brasileira do Livro - Edição nº 481 - Ano 11 - 18/07/2008 gentilmente deu esta "Dica de leitura":

Na onda de blogs relacionados ao livro, uma boa dica é o ler e escrever (http://ler-e-escrever.blogspot.com/), de Aníbal Bragança. Lá, o internauta pode compartilhar registros de leituras, críticas, propor discussões e iniciativas; contar coisas passadas e divulgar novidades. A história do livro e da leitura, notícias sobre livrarias, editoras, bibliotecas e políticas públicas para o livro e a leitura também são temas do blog.

Obrigado!

Dica: O Boletim Eletrônico da Câmara Brasileira do Livro é gratuito. Assine-o e receba informações sobre o mundo do livro no Brasil:
http://www.cbl.org.br/modules/mailing.php

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Autor sem livro, por Maurice Blanchot

Que pensemos em Joubert como num escritor que nos é próximo, mais próximo do que os grandes nomes literários de que foi contemporâneo, não é apenas à obscuridade, aliás distinta, em que viveu, morreu e em seguida sobreviveu, que o ficamos a dever.

Não basta ser em vida um nome frouxamente iluminado para cintilar, como esperava Stendhal, um ou dois séculos mais tarde. Nem sequer basta a uma grande obra ser grande e manter-se firmemente à distância, para que a posteridade, um dia reconhecedora, a restitua ao brilho do dia.

É possível que a humanidade um dia conheça tudo, os seres, as verdades e os mundos, mas haverá sempre um obra de arte (talvez a arte na sua totalidade) que escapa a este conhecimento universal.

Esse o privilégio da actividade artística: o que ela produz, frequentemente até um deus o deve ignorar.

A verdade é que muitas obras se esgotam prematuramente por serem demasiado admiradas. Essa grande fogueira da glória com que os escritores e os artistas, à medida que envelhecem, se regozijam, e que lança as últimas chamas por ocasião da sua morte, queima neles uma substância que doravante faltará a sua obra.

O jovem Valéry procurava em todos os livros célebres o erro que os torna conhecidos: juízo de aristocrata. Mas muitas vezes tem-se a impressão de que a morte vai trazer finalmente silêncio e calma à obra abandonada a si própria.

Em vida, até o escritor mais desprendido e mais negligente luta pelos seus livros. Vive, é quando basta; mantém-se por detrás deles, através dessa vida que lhe resta e que lhes dá de presente. Mas a sua morte, ainda que passe despercebida, restaura o segredo e encerra de novo o pensamento.

Irá este, ao ficar só, desdobrar-se ou estreitar-se, desfazer-se ou realizar-se, encontrar-se ou ficar em falta perante si próprio? E ficará ele alguma vez só? Nem o esquecimento recompensa sempre aqueles que parecem tê-lo merecido pelo dom de grande discrição que possuíram.

Joubert teve esse dom. Nunca escreveu um livro. Apenas se preparou para escrever um, procurando com determinação, as condições justas que lhe permitiram escrevê-lo. Depois, até esse desígnio ele esqueceu.

Mais precisamente, o que Joubert procurava, essa nascente da escrita, esse espaço onde escrever, essa luz a circunscrever no espaço, exigiu dele, afirmou nele disposições que o tornaram impróprio para todo o trabalho literário comum ou o levaram a desviar-se dele.

Foi, por isso, um dos primeiros escritores inteiramente modernos, preferindo o centro à esfera, sacrificando os resultados à descoberta das suas condições e escrevendo, não para acrescentar um livro a outro livro, mas para se tornar senhor do ponto de onde lhe parecia que saíam todos os livros e que, uma vez encontrado, o dispensaria de os escrever.

(...)

Por que é que Joubert não escreve livros? Desde muito cedo, só presta atenção e interesse ao que se escreve e ao facto de escrever. Jovem, está muito próximo de Diderot; um pouco mais tarde, de Restif de la Bretonne, ambos literatos de quantidade. Os anos de maturidade quase não lhe trazem outros amigos que não sejam escritores célebres, através dos quais a sua vida se liga à literatura e que, além disso, conhecendo os seus talentos consumados de pensamento e de forma, o empurram suavemente para fora do silêncio.

Finalmente, ele não é de modo nenhum um homem a quem as dificuldades de expressão paralisem: as suas cartas, numerosas, extensas, são escritas com essa aptidão para escrever que é como que o dom do seu século e à qual ele alia cambiantes de espírito e ornatos de frase que o mostram sempre feliz por falar e feliz em palavras.

Contudo, este homem extremamente capaz e que quase todos os dias tem ao seu lado um caderno onde escreve, não publica nada e não deixa nada para ser publicado. (...)

Joubert, apesar de aparentemente só redigir reflexões deveras abstractas, não duvida, autor sem livro e escritor sem escrito, de que já se encontra na pura dependência da arte. “Aqui, estou fora das coisas civis e na pura região da Arte”. (...)

In Maurice Blanchot. O livro por vir. Trad. de Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio d’Água, 1984, p. 59-65. Recentemente foi lançada um edição brasileira deste livro nada fácil, pela Martins Fontes, certamente com uma tradução melhor.

Este fragmento, retirado de “A questão literária”, segunda parte da obra O livro por vir, do ensaísta e crítico francês Blanchot, pretende propor um diálogo com o texto de Gilberto Freyre aqui publicado. Tão distantes, ambos trataram do tema do escritor sem livros, da efemeridade/imortalidade da obra literária. Isso lhe diz algo, raro leitor?

Para saber mais:

Sobre Maurice Blanchot (1907-2003):
http://www.mauriceblanchot.net/blog/ (em francês) e
“A conversa infinita: a palavra plural – Maurice Blanchot”, por Ademir Demarchi, em
http://www.storm-magazine.com/arquivo/ArtigosDez_Jan/Artes/a_jan2002_1b.htm#A%20Palavra%20Plural

De Joseph Joubert (1754-1824): leia alguns pensamentos, a começar por este:
“A política tira a metade do espírito, a metade do bom senso, três quartos da bondade e certamente todo o repouso e a felicidade", em:
http://pt.wikiquote.org/wiki/Joseph_Joubert

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Autores sem livros, por Gilberto Freyre

Serão sempre os “autores que não têm livros” do tipo daquele fixado a traços de caricatura pelo Sr. Oscar Lopes? Creio que não. A psicologia do autor sem livros é mais complexa do que imagina o Sr. Oscar Lopes no seu fácil filosofar de cronista. É como a psicologia da solteirona.

Quase não há solteirona que não nos possa contar histórias de casamentos e propostas desprezadas. Também os talentos inéditos o são sempre por vontade própria, por soberano desdém à publicidade. Editores que os adulassem, estes não faltaram.

E por serem tantas as solteironas que desprezaram, quando moças, propostas de casamento, e tantos os talentos inéditos por indiferença a toda espécie de sedução editorial, nós nos habituamos a duvidar de que realmente existiam, neste mundo de Deus, autores sem livros que de fato acharam na vida um editor, mesmo medíocre, que lhes fizesse a corte.

Mas o certo é que existem no mundo dessas esquisitices: solteironas que desprezaram milionários e talentos que desprezaram editores.

Há talentos que nasceram para comunicar-se a raros; para influir sobre o ânimo e a sensibilidade de raros. São como as solteironas, as raras solteironas que o são por terem nascido para desposar príncipes; e morrem donzelas porque não lhes apareceu na vida nem sombra de príncipe.

Apareceram-lhes milionários; apareceram-lhes bacharéis em Direito, caixeiros-viajantes, médicos – dezenas deles; elas porém não transigiram com o seu ideal de príncipe; e a transigir com um ideal tão bonito preferiram a donzelice. Semelhantemente há autores inéditos que o são porque os prelos e os públicos que se lhes oferecem não correspondem a certo ideal alto e puro que desenvolveram.

São casos talvez patológicos, o desses talentos e o dessas solteironas; mas existem.

A grande promessa de crítico que foi em Portugal Moniz Barreto desapareceu sem deixar livros – apenas um tênue fascículo; Luís Garrido morreu igualmente autor sem livros; na Inglaterra foram autores sem livros Collins e Addison; entre nós, Carlos de Laet e Afonso Arinos sempre se conservaram arredios do prelo que faz livros e do público que os lê: quase autores sem livros.

Entretanto Afonso Arinos não era nenhum maninho: apenas preferiu ao contacto com o público o contacto com a inteligência dum grupo que o soubesse compreender. E na vida mental do Brasil Arinos foi realidade mais viva e mais criadora que o Sr. Coelho Neto – autor de tantas dezenas de livros.

Rara é a solteirona que de fato recusou a propota de casamento, do milionário ou do caixeiro-viajante ou do bacharel em Direito que um dia se apresentou em sua casa, bonito como um herói de fita de cinema; raro é o talento que de fato se esquivou à sedução do livro pela estranha volúpia da fidelidade a um ideal que não se atinge nunca na vida. Mas esses esquisitões existem.

O livro publicado – que é para o autor, não de todo cretino, o livro publicado, no fim de dois ou três anos, senão a triste caricatura do que devia ter sido? E às vezes é como se fosse um enorme rabo de papel amarrado à inteligência.

De modo que o livro que verdadeiramente satisfaz e delicia o puro artista ou o pensador é o que ele deixa ficar nas primeiras provas tipgráficas da criação mental, nas dobras dos miolos, em estado plástico para ir sendo corrigido, atualizado, recriado de acordo com as conquistas de sua experiência íntima.

Só quando o autor encontra um público capaz de o acompanhar nesse processo de recriação, vale a pena escrever livros. Nesse caso o público é que completa o autor e serve de sexo oposto ao seu espírito.
(1924)

In Gilberto Freyre, Retalhos de jornais velhos, 2a. ed., rev. e aumentada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.


Gilberto Freyre, rara leitora, cada vez nos surpreende em sua antevisão do que só muito tempo depois se tornaria lugar comum, como o que afirma no último parágrafo deste artigo de jornal, publicado originalmente em 1924: a consciência de que é o leitor que completa o autor na recriação do sentido do texto que este publicou.

No mais, este texto bem humorado tem sentido hoje como um comentário sobre o panorama editorial que se apresentava aos autores no Brasil antes de 1930: seriam certamente tão raras as oportunidades de publicação para a maioria dos autores que alguns desses (quase todos) se acomodavam na situação “confortável” de se manterem inéditos, supostamente por opção.

Hoje, como vemos acontecer neste blog e em milhões de outros, com ou sem livros, todos se querem publicar, mesmo se tornando seus próprios editores, indo direto em busca do raro leitor. É isso, mas que tudo fica breve e muita vezes superficial, lá isso fica. É o preço da pressa.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

A Dispersa Palavra, de Victor Oliveira Mateus

Livros Usados
Inês Lourenço, In "a disfunção lírica"
.
Tudo que se disse depois e
ainda se diz, pode estar num usado
exemplar de Crime e Castigo ou da Utopia.
Os livros usados - mesmo
que se chamem Utopia -
têm aquela terna docilidade
das páginas em que outras
mãos passaram, ao contrário
dos novos, que em rígidas e
intactas páginas são só apenas
papel impresso.
.
E para escassos amigos, quando
se fugiu duma livraria de
consumíveis tops,
talvez seja essa
a melhor oferta.
.

Sem título
Victor Oliveira Mateus

Quantas vezes me deixei ficar,
como hoje, de caneta em riste,
sentado a esta mesma mesa
esperando que tu ou o texto viessem...
.
Quantas vezes, em vão, lançava
o olhar sobre o porto, tentando
adivinhar-te no bojo
de um qualquer barco que divisava
.
ao longe, como quem investiga
de falhas a mais nítida presença.
E quantas, no meio do tilintar
das chávenas e do bulício do balcão,
.
as tuas palavras acabavam sempre
por me aquietar. No entanto, sei-me
de sina igual a hoje: o constante medo
de que um dia possas não vir
.
e que o futuro mais não seja
do que a inquirição dos dias,
onde os versos se firmam
como escolhos à deriva
em simples guardanapos de papel.
.
Victor Oliveira Mateus

In A Dispersa Palavra
http://adispersapalavra.blogspot.com/


O Atlântico já nos une há quinhentos anos. Agora a Internet une todos que possam e se queiram conectar, para além das fronteiras das terras e dos mares. Restam-nos, felizmente, as fronteiras da língua, que se quer um mar comum, às vezes mais revolto, outras não.

O poeta e professor Victor Oliveira Mateus captou indiretamente mensagem nossa, não dessas que colocamos nas pipas que vão ao éter, como antes iam nas garrafas em busca dos náufragos ou dos salvadores. Apenas uma breve mensagem “funcional”.

Fez um comentário em nosso blog. Iniciou-se um diálogo. Visitei o seu blog e que bela surpresa! Dessas que nos fazem continuar a acreditar na arte e nos seres humanos. Encontramos lá estes poemas que quisemos apresentar ao nosso raro leitor como isca para que visite o blog A Dispersa Palavra. Vá lá e depois me conte.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Vinícius de Moraes: eterno, enquanto dure sua obra

Vinicius de Moraes com Geir Campos, Pablo Neruda e a esposa, Matilde Urrutia. Almoço em Paris, 1957. Foto do arquivo da família de Geir Campos, reproduzida do livro Livraria Ideal, do cordel à bibliofilia, 1999, deste blogueiro
O poeta

Olhos que recolhem
Só tristeza e adeus
Para que outros olhem
Com amor os seus.

Mãos que só despejam
Silêncios e dúvidas
Para que outras sejam
Das suas, viúvas.

Lábios que desdenham
Coisas imortais
Para que outros tenham
Seu beijo demais.

Palavras que dizem
Sempre um juramento
Para que precisem
Dele, eternamente.


Poética (I)

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

New York, 1950

Ouça Vinícius recitando (parte d)este poema em
http://www.viniciusdemoraes.com.br/poetica.html


Poética (II)

Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!

Rio, 1960


Bilhete a Baudelaire

Poeta, um pouco à tua maneira
E para distrair o spleen
Que estou sentindo vir a mim
Em sua ronda costumeira

Folheando-te, reencontro a rara
Delícia de me deparar
Com tua sordidez preclara
Na velha foto de Carjat

Que não revia desde o tempo
Em que te lia e te relia
A ti, a Verlaine, a Rimbaud...

Como passou depressa o tempo
Como mudou a poesia
Como teu rosto não mudou!

Los Angeles, 1947

Soneto a Pablo Neruda

Quantos caminhos não fizemos juntos
Neruda, meu irmão, meu companheiro...
Mas este encontro súbito, entre muitos
Não foi ele o mais belo e verdadeiro?

Canto maior, canto menor – os dois cantos
Fazem-se agora ouvir sob o Cruzeiro
E em seu recesso as cóleras e os prantos
Do homem chileno e do homem brasileiro

E o seu amor – o amor que hoje encontramos...
Por isso, ao se tocarem nossos ramos
Celebro-te ainda além, Cantor Geral

Porque como eu, bicho pesado, voas
Mas mais alto e melhor do céu entoas
Teu furioso canto material!

Atlântico Sul, a caminho do Rio, 1960

Soneto a Vinicius
Pablo Neruda

Vinicius, como el animal herido
Vuelve a buscar su origen, su vertiente,
Este soneto que creí perdido
Vulve a tocar tu pecho transparente.

Durmió tal vez en un remido ruido
O se quemó em la luz del continente.
En Ouro Preto atravesó el olvido
Y despertó el cristal intransigente.

Así otra vez, hermano, há renacido
El soneto elevado y escondido.
Acepta en él la sal y alegría

Que nos lleva en la tierra, mano a mano
A celebrar lo divino y lo humano
Y a vivir de verdad la poesía.

Todos os poemas acima estão na obra de Vinícius de Moraes, Poesia completa e prosa, organizada por Afrânio Coutinho (com assistência do autor), editada pela Nova Aguilar, em 1968 e reeditada em 1974 e reimpressa em 1976 (de onde os retiramos).

Em 1967, a Livraria Diálogo, em Niterói, promoveu uma grande noite de autógrafos a que deu o nome de Noite da Sabiá, pois seria com os autores desta então nova editora criada por Fernando Sabino e Rubem Braga, que sucedia, de certa forma, à Editora do Autor. Esperávamos os autores da casa, Vinícius de Moraes, Clarice Lispector, Rubem Braga, Fernando Sabino e a grande atração na época, o cronista Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), que estava fazendo o maior sucesso com o livro FEBEAPÁ (O Festival de Besteiras que Asssola o País), já em plena ditadura militar (mas antes do famigerado AI-5, que é de dezembro de 1968, como quase todos sabem).

Nesse dia falei ao telefone com Clarice (inesquecível para mim), pois havia confirmado e a estávamos esperando, quando disse que não viria mais. Rubem Braga, Fernando Sabino e Stanislaw vieram e a noite foi memorável. Stanislaw escreveu sobre ela uma crônica na Última Hora, onde afirmou (escrevo de memória) que não diria mais que “em Niterói urubu voa de costas!”, como dizia antes para gozar a cidade do outro lado da baía.

A ausência de Vinícius deixou todos, especialmente as jovens – aquelas para quem se cantava "Se você quer ser minha namorada...", para quem vendíamos (mais para os namorados as presentearem) Para uma menina com uma flor, Para viver um grande amor, Livro de Sonetos, além da Antologia Poética, “best-sellers”!, – tristemente decepcionados. Você, rara leitora, acaso esteve na Diálogo nessa noite?

Vinícius, a quem só vimos, de longe, em 1977, no histórico show com Tom Jobim, Toquinho e
Miúcha, no Canecão, foi presença muito marcante, poética, musical e existencial, na nossa geração.

A Vinícius de Moraes (19/10/1913-9/7/1980), que cultivava a beleza, com saudades, este singelo registro ao se completarem 28 anos de ausência. Que viva para sempre sua obra e, na nossa memória, também sua singular forma de vida.
Para saber mais, acesse:

Wikipédia em português:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes e

O sítio oficial do poeta, “Vinicius de Moraes”:
http://www.viniciusdemoraes.com.br/
onde, inclusive, pode ouvir trechos de seus discos e de seus poemas, ditos pelo próprio.

Vida acadêmica: chamada para eventos

Vai acontecer em Belo Horizonte, na Universidade Federal de Minas Gerais
11 a 13 de agosto de 2008:

II COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE LETRAMENTO E CULTURA ESCRITA
(CEALE/FAE/UFMG)

Reunirá pesquisadores nacionais e internacionais para discutir questões contemporâneas relativas à cultura escrita, às concepções de alfabetização e de letramento e suas repercussões no campo do ensino e da pesquisa. Busca também favorecer a consolidação de grupos de
pesquisa e colaborações acadêmicas que vêm se constituindo entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros nos últimos anos. A temática será abordada numa perspectiva interdisciplinar, envolvendo a relação entre cultura, oralidade, escrita e cognição, no campo da semiótica
social, antropologia, lingüística, história, psicologia, sociologia e educação.

Auditório Neidson Rodrigues - Faculdade de Educação da UFMG

Ficha de inscrição e informações nos sites:
www.fae.ufmg.br/posgrad
www.fae.ufmg.br/ceale
E-mail: coloquioletramento@gmail.com


Vai acontecer em Natal, Rio Grande do Norte
2 a 6 de setembro de 2008:


XXXI CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
O maior evento acadêmico da área na América Latina.

INTERCOM e UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Mais informações: http://www.intercom.org.br/

*
Vai acontecer em Vitória da Conquista, Bahia:
13 e 16 de setembro de 2008

IV SEMINÁRIO DE TEORIA E HISTÓRIA LITERÁRIA – SETHIL
Área de concentração: História do Livro e da Leitura

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB
Departamento de Estudos Linguísticos e Literários / Área de Teoria e Literatura.
*


Vai acontecer no Rio de Janeiro, no Real Gabinete Português de Leitura
17, 18 e 19 de setembro de 2008:


IV COLÓQUIO DO PÓLO DE PESQUISA SOBRE RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS:
Tema: "Relações Luso-Brasileiras: D. João VI e o Oitocentismo"

Pretende-se apresentar um vasto panorama crítico e analítico sobre o impacto da chegada da Corte ao Rio de Janeiro, proporcionando o diálogo entre especialistas, pesquisadores e estudiosos, do Brasil e do exterior, das áreas de História, Letras, Antropologia, Artes, Comunicação Social, Arquitetura e Urbanismo, entre outras, para troca de informações, experiências e divulgação de pesquisas sobre aspectos das relações luso-brasileiras

Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro (R. Luís de Camões, 30)
Liceu Literário Português (Largo da Carioca)

Inscrições: http://www.realgabinete.com.br/

Temos a satisfação de repassar ao nosso raro leitor estas informações, neste Dia Nacional da Ciência, com a expectativa que lhe possam interessar. O que acha? Considera ou não pertinente fazer estes registros aqui?

domingo, 6 de julho de 2008

Luís Antônio Pimentel: Homenagem do Japão entregue na Assembléia Legislativa




Luís Antônio Pimentel recebe o Diploma de Honra ao Mérito em bela cerimônia na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. A seguir, cópia do diploma, onde se lê em japonês, o que foi traduzido como "Ao Sr. Luís Antônio Pimentel. Vossa Senhoria, ao longo de muitos anos, tem dedicado seus esforços para a promoção das relações de amizade entre o Japão e o Brasil. Em reconhecimento a sua inestimável contribuição, concedo a Vossa Senhoria o presente Diploma, com profundo respeito, neste Ano do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil e do Ano de Intercâmbio Japão-Brasil. 18 de junho de 2008. Masahiko Koumura, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Japão. Abaixo, Pimentel, feliz à saída do Palácio Tiradentes, após a cerimônia realizada no último dia 30 de junho.
Fotos de Ricardo Hallais Walsh. Direitos reservados.



Luís Antônio Pimentel, 96, autor de Contos do velho Nipon, Namida no Kito, Tankas e Haicais, dentre outros livros, jornalista atuante na imprensa fluminense até hoje – mantém em A Tribuna e no Jornal de Icaraí a seção semanal Artes Fluminenses –, viveu no Japão durante 5 anos, de 1937 a 1942, para onde foi, com outro jovem, carioca, como os primeiros estudantes brasileiros que lá estudaram com bolsa do governo japonês. Tornou-se um apaixonado pela cultura japonesa e grande divulgador especialmente da sua literatura em nosso país.

Neste Ano de Intercâmbio Japão-Brasil, quando se comemoram os 100 anos da imigração japonesa no Brasil, o trabalho incansável de Pimentel finalmente foi lembrado pelos governos. Foi agraciado com a Medalha do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, instituída pelo Decreto 6.474/08, da Presidência da República, e também pelo governo do Japão, que lhe fez entregar, através do Consulado Geral do Japão no Rio de Janeiro, um Diploma de Honra ao Mérito, assinado pelo senhor Masahiko Koumura, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Japão. Não estarão alheios, certamente, a esse duplo reconhecimento os senhores Sonia e Masato Ninomyia, figuras de destaque nas relações culturais entre os dois países.

A entrega deu-se em bela cerimônia ocorrida na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, no último dia 30 de junho.

Para saber melhor como foi essa cerimônia, acesse o álbum de fotografias de Ricardo Hallais Walsh, aqui:
http://picasaweb.google.com/anibalbraganca/LuSAntNioPimentelHomenagemDoJapONoAnoDoCentenRioDaImigraAOJaponesaNoBrasi

Para conhecer o e-grupo Luís Antônio Pimentel, vida e obra, (em construção) acesse:
http://groups.google.com/group/luis-antonio-pimentel?hl=pt-BR

Para saber mais da obra de Luís Antônio Pimentel, leia Obras Reunidas, organizadas por este blogueiro, em 3 volumes, editadas pela Niterói Livros, em 2004. O mais recente livro de Pimentel, Haicais onomásticos, foi lançado em 2007 pela NitPress. Ambos podem ser solicitados à Livraria Ideal, em Niterói, telefone 55-21-2620-7361.

Vinicius de Moraes: Sobre vida e literatura

A idéia ocorreu-me em março de 1967, quando ganhei pela ...ésima vez, para grande prazer meu, um novo Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de meu velho amigo Aurélio Buarque de Holanda, que nada tem a ver com Sérgio e Chico, mas é, também, homem de muita cachola. Lembro de que era noite, e fiquei folheando-o à toa, e verificando uma vez mais a minha imensa ignorância do nosso léxico. De cada 10 palavras, não sabia o significado de três ou quatro.

É verdade que eram, o mais das vezes, palavras eruditas, de conteúdo científico e – bolas! – eu não sou cientista nem nada. Mas para um escritor, uma tal constatação é, de qualquer forma, humilhante. Passei a ler com mais freqüência o dicionário, como recomendava Gide – o que, aliás, constitui para mim uma ocupação melhor que a leitura desses escritores de best-sellers que andam em voga.

Muitos amigos me têm pedido que escreva as minhas memórias. Fernando Sabino em particular. Fico pensando... Para quê? Parece-me um ato de vaidade, mais que de despudor. Mas, pondera ele – e Oto Lara Resende, já me disse o mesmo – eu percorri um caminho de tal modo vário em experiências, aqui e no estrangeiro, que sonegá-las aos que acreditam no que escrevo, à mocidade em particular, é, de certo modo, uma forma de vaidade maior ainda. Considerando-se, ademais, que minha vida sempre foi, por assim dizer, vivida abertamente...

Não sei. Tenho horror à idéia de tornar-me literário, de começar a redigir no ato de escrever. O que me dificulta, hoje em dia, a leitura dos escritores em geral, com pouquíssimas exceções, é de justamente esse detestável defeito. Mal sinto, em lugar de estilo, o menor maneirismo, a menor fita, largo o livro de mão. Acho-os, na maioria, uns chatos, só contam o que todo mundo já sabe ou logo adivinha. A vida é infinitamente mais rica que suas palavras – e estou certo de que mesmo os mais medíocres são portadores de experiências que nas mãos de um bom romancista ou um bom biógrafo dariam matéria de interesse universal. Pois tudo tem interesse, mesmo o coito de duas moscas, desde que provoque no ser que observa um reflexo vital.

Vale dizer que pouca gente vive: esta é a grande verdade; vive no sentido de queimar-se sem reservas, sem preconceitos, sem atitudes, sem julgamentos canonizados por uma moral convencial imposta. Mas, por outro lado, eu não gostaria de escandalizar. Escandalizar pode ser também uma forma infame de vaidade, um processo auto-complacente de criar uma antimoral como justificação de taras ou fraquezas pessoais.


Não: eu sou um homem que, até certo ponto, venceu as barreiras do medo de viver, e viver é, hoje em dia, para mim, um ato simples, perturbado apenas pelas neuroses conseqüentes do simples ato de viver. A vida, trata-se de cumpri-la bem, sem outro temor que ter de apertar-lhe as rédeas. Ai de mim, que ilusão! – dizer isto na quadra dos cinqüenta, quando os frutos do amor crescem cada vez menos ao alcance das mãos do meu desejo...
(...)
Rio, 17/18-8-1969

In Anteato: “Palavra por palavra” (I), de “Crônicas publicadas no Jornal do Brasil entre 15.6.1969 a 20.10.1969” , in Vinicius de Moraes, Poesia completa e prosa. Ed. org. por Afrânio Coutinho com assistência do autor. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976, reimpressão da 2a. ed., p. 675-6.

O comentário de meu raro leitor, o poeta e amigo Henrique Chaudon, sobre o que escreveu Herman Hesse sobre livros e leituras, postado aqui ontem, estava na minha cabeça quando pesquisava sobre Vinícius de Moraes, nosso grande poetinha, cujo aniversário de morte é na próxima quarta-feira, dia 9 (lembrou-me a seção que Jourdan Amóra mantém no Jornal de Icaraí de efemérides da semana) – quando completa 28 anos! – e não quero deixá-la passar em branco, pela importância que teve sua obra, e sua vida, na minha e na de muitos companheiros de geração. O resultado desse pequeno e saboroso trabalho – ler e reler textos de Vinicius – estará aqui na quarta.

Este texto acima pretende ser, entretanto, uma resposta ao comentário de Henrique, nas palavras de um poeta que, acima de tudo, viveu intensamente e tinha disso consciência, para além de ser um Escritor.

E você, rara leitora, como sente e pensa a relação entre escritura e vida?

E ainda, sem autobiografia, resta-nos a biografia de Vinicius, O poeta da paixão, escrita por José Castello, editada pela Cia. das Letras, em 1994, com apoio da Fundação Biblioteca Nacional. Ainda não a li (a compra denota essa intenção). O que achou dela o raro leitor que a leu?

Sávio Soares de Sousa, Rapsódia para sanfona

Sanfona, mostra que és boa,
dá-me agora um empurrão:
minha trova é uma canoa
rumo aos rios do sertão.

Sanfona bem afinada,
baixa o tom, sobe um bemol:
minha trova é uma jangada
com a vela inchada de sol.

Maquinista à moda antiga,
para engrenar vida nova,
ponho um truque de cantiga
nos trilhos da minha trova.

A poesia só funciona
Se for humano o motor:
- minha trova é de sanfona
dispensa o computador.

Nem Dom Juan, nem Casanova,
simplesmente um trovador,
nas entrelinhas da trova
sopro recados de amor.

Sobre o silêncio onde acampo
dos meus sonhos a legião,
minha trova é um pirilampo
que pontilha a escuridão.

Se o coração se entedia,
não desço ao fundo da cova:
subo ao monte da Poesia
no fusca da minha trova.

Por ser o molde perfeito
do que o povo anda a cantar,
a trova tem todo o jeito
da cantiga popular.

A trova soa bem leve,
porém se torna mais rica,
no estilo em que Heine escreve
com as gafes que Freud explica...

Cartas de amor... Campo-santo
de um sonho amarelecido...
No tempo, diziam tanto!
Agora, não têm sentido!

Caro Poe, desculpa o estorvo,
- não sei se é tédio ou esplim...
Mas vê se enxotas o corvo
que pousou dentro de mim!

Dizia Dante Alighieri,
ou, talvez, um outro autor:
- Não há prazer que supere
um sofrimento de amor.

Não vejo por onde escapes
a esta lei, clara e sucinta:
Deus traça o destino a lápis
e és tu que o cobres com tinta...

Leitor, o livro, em verdade,
é seu. Pertence a você.
O autor só fez a metade.
Autor do resto... é quem lê.

Sávio Soares de Sousa, Rapsódia para sanfona. Niterói: Traço&Photo Editora, 2008, 62 p. Capa com ilustração de Miguel Coelho.

Esta seleção de trovas, quadras ao gosto popular como lhes chamou Fernando Pessoa, foram retiradas do livro Rapsódia para sanfona, lançado ontem, sábado, no Calçadão da Cultura da Livraria Ideal, em Niterói (telefone 55-21-2620-7361), do poeta, jornalista, crítico, advogado, Promotor e Procurador de Justiça, Sávio Soares de Sousa, primeiro presidente do Grupo de Amigos do Livro (hoje Grupo Mônaco de Cultura), que tanto realizou em favor da vida literária fluminense. E, continua, como se vê, a enriquecer, com mais este livro aparentemente singelo. E belo.

sábado, 5 de julho de 2008

Hermann Hesse: Leituras e livros

Os livros não existem para tornar mais dependentes ainda pessoas já de si tão dependentes. Muito menos existem eles para dar a homens de si inaptos para viver uma mera ilusão ou sucedâneo de vida. Ao contrário. Os livros só têm valor quando nos estimulam a viver, quando servem à vida e lhe são úteis. Desperdiçada toda hora de leitura da qual não resulte para o leitor uma centelha de energia, uma impressão de rejuvenescimento, um sopro do novidade e de viço.

*

Ler sem pensar, ler distraidamente, é como passear por entre belas paisagens com os olhos vendados. Tampouco devemos ler para esquecer-nos a nós e à nossa vida cotidiana, mas, ao contrário, para reassumirmos em nossas mãos firmes e da maneira mais consciente e madura a nossa própria existência. (...)

*

Sempre nos conforta a alma o livro antigo que a nós se dirige com sua voz vinda de tão longe. Podemos ouvi-la ou não. E se, de repente, certas palavras ou expressões mais percucientes nos atingem de cheio com o seu brilho, não as recebemos como de um livro de hoje, escrito por este ou aquele autor. Ao contrário, acolhemo-las como de primeira mão, como um grito de gaivota ou um raio de sol.

*

Podemos tranqüilamente deixar de ler muitos manuais, compêndios e históras da filosofia. Qualquer obra de um pensador original nos fornece coisa melhor, pois nos faz pensar em nós mesmos e nos educa e revigora a consciência.

*

Quanto mais, ao longo do tempo, a necessidade que sente o povo de se divertir e de se instruir é satisfeita graças às novas invenções da técnica, tanto mais valor e autoridade ganham os livros. Não obstante todo o progresso atual, felizmente essas novas descobertas como, por exemplo, o rádio, o cinema etc., ainda não conseguiram retirar ao livro impresso as funções lhe são próprias.

*
Ocorre com a leitura o mesmo que com qualquer outra espécie de prazer: este será sempre mais profundo e duradouro, quanto mais intimamente e com amor a ele nos entregamos.

*

Segundo minha própria experiência, não há propósito melhor para as férias do que o de não ler uma só linha. E, depois, se a oportunidade for favorável, nada mais delicioso do que ser infiel àquele propósito e ler um livro realmente bom.


Hermann Hesse, “Leituras e livros”, in Para ler e pensar. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, s/d.

Passou-nos despercebido o dia de aniversário de nascimento de Hermann Hesse (2/7/1877-9/8/1962). Só hoje o registramos aqui, com esta seleção de seus pensamentos sobre livros e leituras, extraídos de Para ler e pensar, um volume que reúne aforismos extraídos de seus livros e cartas.

Hesse, alemão, é um dos mais admiráveis escritores da literatura ocidental, Prêmio Nobel em 1946, autor de clássicos modernos como os romances O lobo da estepe, Sidarta, Demian, O jogo das contas vidro, Narciso e Goldmund, dentre outros sucessos.

Que tal, rara leitora, um retorno a seus livros, hoje menos em voga do que nos anos de minha juventude (já se passou muito tempo...), mas sempre capaz de nos encantar e de nos fazer pensar, como ocorre com estas suas reflexões sobre livros e leituras?