quarta-feira, 25 de julho de 2007

Minidicionário anticonvencional, de Sandro Pereira Rebel

Achado – para o literato, uma idéia brilhante e incomum.
Adeus – o prefácio de um livro chamado saudade.
Beletrista – um intelectual de fraque, cartola e bengala.
Biblioteca – um repositório de cultura, muito apreciado por intelectuais, traças e cupins.
Capitular – render-se aos poucos, isto é, por capítulos.
Coloquial – a fala mais afinada com a voz do povo.
Comentário – o blá-blá-blá refinado.
Exceção – a filha enjeitada da regra.
Exegese – a arte de decifrar as ambigüidades dos textos.
Gramática – conjunto de regras em cujas exceções procuramos enquadrar os nossos erros.
Hermética – na poesia, a idéia que se tem de descobrir ou adivinhar.
Hermeneuta – o especialista em escarafunchar os buracos das leis.
Lápide – a última pedra dos nossos caminhos.
Lápis – a caneta das primeiras letras.
Leitor – você.
Livreiro – o comerciante que vende o que não tem preço: o saber.
Metáfora – dizer uma mesma coisa usando palavras que significam outra.
Mímica – a fala que não sai da boca.
Monologar – conversar consigo mesmo ou com uma platéia muda.
Monotonia – o canto da goteira.
Neologismo – a reciclagem da língua.
Neto – o filho em reedição atualizada e melhorada.
Novela – o novelo que leva meses para ser desenrolado.
Opinião – a verdade de cada um.
Palavra – o cativeiro do escritor.
Palco – lugar onde a vida vira peça de teatro.
Parênteses – os biombos das palavras.
Pesquisa – o plágio amplificado e institucionalizado.
Poeta – o pastor dos sonhos próprios e alheios.
Polígrafo – o escritor que joga nas onze.
Posteridade – o futuro do futuro.
Póstuma – a obra que cheira a formol.
Prefácio – a apresentação de um trabalho, feita por um amigo do autor.
Prolixo – quem se deixa atropelar por suas próprias palavras.
Reticências – uma forma de os tímidos, os indecisos e os maliciosos se expressarem.
Sábio – quem sabe que nunca sabe o bastante para não precisar saber mais.
Sapiência – o sabor do saber.
Sebo – livraria onde o livro, quanto mais velho for, mais novidade será.
Sofisma – uma construção bonita assentada em areia movediça.
Trova – a foto 3 x 4 da poesia.
Ze – a letra que fecha o trabalho dos dicionaristas.

Estas são algumas das definições pinçadas do Minidicionário anticonvencional, de Sandro Pereira Rebel, editado pela Nitpress, em 2006 http://nitpress.tripod.com . Sobre a obra, de 150 p., em formato 18 x 12 cm., afirma Luís Antônio Pimentel, na orelha do livro: “Não se trata, como diz o povão, de um livro para ‘ensinar padre-nosso ao vigário’. Muito pelo contrário: trata de definir, explicar, por formas as mais variadas, o significado oculto, malicioso e até mesmo humorístico de certos vocábulos”. O próprio autor, na apresentação, é cuidadoso sobre a originalidade de suas definições: “pensamos que pensamos, mas, na verdade, não pensamos, e sim, isto sim, apenas pensamos e repensamos pensamentos muitas vezes já pensados e repensados por outros. Essa ressalva cabe também, e sob medida, em relação a tudo de que se compõe este livro”. Que, rara leitora ou leitor, como se pode ver pela breve amostra acima, é inteligente e se lê com prazer, com muitas paradas para refletir, outras tantas para sorrir.

domingo, 22 de julho de 2007

Livros, de Caetano Veloso

Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos ama-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Doma-los, cultiva-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lança-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou – o que é muito pior – por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.


In Livro, Edição PolyGram, 1997. Para saber mais: www.caetanoveloso.com.br

Caetano é certamente um dos mais intelectualizados dos compositores populares brasileiros, ao lado de Chico Buarque e Gilberto Gil (para falar só dos mais famosos). Autor de livros, é, podemos perceber pelo poema acima, alguém que reflete sobre eles como leitor e bibliófilo. E se pudermos ler suas palavras como testemunho pessoal, é alguém que, jovem, percebeu os livros – em uma casa e numa cidade quase sem eles – “como a radiação de um corpo negro apontando pra a expansão do Universo”.

Os últimos versos da terceira estrofe nos lembram Walter Benjamin, quando afirmou que os escritores fazem livros “porque estão insatisfeitos com os livros que poderiam comprar e que não lhes agradam” (em “Desempacotando minha biblioteca”, inscrito aqui no blog, em postagem abaixo). Mas, ao contrário da hipótese de Caetano, certamente não para “encher de vãs palavras muitas páginas e de mais confusão as prateleiras”!

Você, rara ou raro leitor, vê mais que vãs palavras nesta canção do Caetano?

sexta-feira, 20 de julho de 2007

As difíceis condições para vencer na vida literária, por George Orwell (1903-1950)

O relógio bateu duas e meia. No pequeno escritório nos fundos da livraria do Sr. McKechnie, Gordon – Gordon Comstock, último membro da família Comstock, de 29 anos e já um tanto envelhecido – reclinava-se sobre a mesa, abrindo e fechando com o polegar a tampa de um pacote de cigarros Player’s Weights.
(...)

Gordon afastou-se da porta, voltando às prateleiras de livros. Nelas, à esquerda de quem sai da livraria, ficavam os livros novos e quase novos - uma mancha colorida, para atrair os olhos de quem olhasse pela porta de vidro. Suas lombadas finas e limpas tinham o ar de oferecer-se das prateleiras. Pareciam estar dizendo: "Compre-me! Compre-me!". (...)

Gordon afastou os olhos dos "encalhes". Traziam-lhe más recordações. O único e maldito livrinho que ele havia publicado, há dois anos, vendera exatamente 153 exemplares, e "encalhara"; mesmo como "encalhe", não havia conseguido vender nada. (...)

Os livros que estavam à sua frente eram de prosa, uma miscelânea. Sofriam uma classificação qualitativa, para cima e para baixo. À altura dos olhos estavam os livros em bom estado e caros, que iam ficando mais gastos e baratos à medida que as prateleiras subiam ou desciam. Em todas as livrarias uma selvagem luta darwiniana na qual as obras dos autores vivos ficam ao nível dos olhos, e as dos mortos sobem ou descem – baixa à Geena ou ascendem ao trono, mas sempre distantes de qualquer posição em que sejam percebidos.

Nas prateleiras de baixo, os “clássicos”, os monstros extintos da era vitoriana, apodreciam em paz. Scott, Carlyle, Meredith, Ruskin, Peter, Stevenson – mal se podiam ler os nomes nas suas lombadas maltratadas. Nas prateleiras do alto, quase que fora da vista, dormiam as dulçurosas biografias dos duques. Abaixo delas, ainda vendáveis e portanto ao alcance da mão, estava a literatura “religiosa” – todas as seitas e todos os credos, amontoados indiscriminadamente. O mundo do além, pelo autor de Fui tocado por mãos espirituais. A vida de Cristo, de Dean Farrar, Jesus, o primeiro rotariano. O mais recente livro da propaganda católico-romana do padre Hilaire Chestnut. Religião vendia sempre, desde que fosse bastante piegas.

Abaixo, exatamente ao nível dos olhos estavam os livros contemporâneos. O último de Pristley. Atraentes livrinhos de “médiuns” reeditados. “Humor” estimulante de Herbert, Knox e Milne. Alguns volumes eruditos também. Um ou dois romances de Hemingway e Virginia Woolf. Biografias simplificadas, num pseudo-estilo de Strachey. Livros pretensiosos e refinados sobre pintores consagrados e poetas consagrados, pelas jovens cavalgaduras que deslizam com tanta graça de Eton para Cambridge e de Cambridge para as revistas literárias.

Seu olhar cansado percorreu a parede de livros. Odiava-os todos, novos e velhos, eruditos e populares, pretensiosos e joviais. A simples vista deles fazia-o sentir a sua esterilidade. Ali estava, um “escritor”, supostamente, e não podia nem mesmo “escrever”. Não era apenas uma questão de não encontrar editor, mas sim de não ter produzido nada, ou quase nada. E todo aquele lixo amontoado nas estantes – bem, pelo menos existia, era uma espécie de realização.
(...)


Mas eram os livros pretensiosos, “cultos”, que lhe despertavam mais ódio. Livros de crítica, de belas-letras. O tipo de coisa que as jovens cavalgaduras endinheiradas de Cambridge escrevem quase que dormindo – e que Gordon também poderia ter escrito, se tivesse um pouco mais de dinheiro. Dinheiro e cultura! Num país como a Inglaterra era tão impossível ser culto como ingressar no Cavalry Club. (...)

Dinheiro para ter a educação certa, dinheiro para amigos influentes, dinheiro para ter ócio e tranqüilidade de espírito, dinheiro para viagens à Itália. O dinheiro escreve livros, o dinheiro os vende. Não me dê probidade, Senhor, dê-me dinheiro, apenas dinheiro. (...)


Excerto de Moinhos de vento, tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 7-14.

Muitos escritores que alcançaram notoriedade e reconhecimento de leitores e da crítica, como Orwell passaram por uma experiência profissional em livrarias, editoras ou tipografias, estas especialmente de periódicos, em geral como revisores. Podem ser incluídos nessa lista Balzac, Hermann Hesse e Machado de Assis.

Este livro de Orwell, publicado inicialmente em 1936, pode ter algo de autobiográfico e expressar os anos de aprendizado e revolta de sua juventude, onde a experiência de livreiro em um sebo tinha um sabor amargo, diante do patrão, dos leitores frívolos e autores medíocres... até que, finalmente, recebe um cheque da Californian Review, “a revista americana para onde, semanas ou meses atrás, mandara um poema, em desespero”.

Antes de ser publicado pela Nova Fronteira, a obra havia sido publicada no Brasil pela editora paulista Hemus, com o título Mantenha o sistema. Nenhuma das edições alcançou grande êxito entre nós e creio mesmo que poucos freqüentadores ou livreiros que trabalharam ou trabalham em sebos já o chegou a ler. É um livro amargo de um autor que viria a publicar anos depois obras que o iriam imortalizar, A revolução dos bichos (1945) e 1984 (1949), pouco antes de falecer, em 1950, na miséria. Certamente livros que enriqueceram seus herdeiros.

Acredito, rara ou raro leitor, que Moinhos de vento, um título bem cervantino na tradução de Waltensir Dutra, seja um livro que tocará à sensibilidade de todos os que aspiram a ou mesmo já conseguiram um lugar ao sol no universo da vida literária. Quem sabe o encontrará num sebo e será atendida por escritor em formação?

Conheça mais:
Tudo de George Orwell: http://www.duplipensar.net/george-orwell/index.html
"Orwell o homem incômodo", de Matinas Suzuki Jr., FSP: Página de "Arquivos" de:
http://groups.google.com/group/cultura-letrada

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Carlos Drummond de Andrade (31/10/1902-17/08/1987)

Soneto da buquinagem

Buquinemos, amiga, neste sebo.
A vela, ao se apagar, é sebo apenas,
e quero a meia-luz. Amo as serenas
Angras do mar dos livros, onde bebo

– álcool mais absoluto – alheias penas
consoladas na estrofe, e calmo, e gebo,
tiro da baixa estante sete avenas
em sete obras que pago e que recebo.

Amiga, buquinemos, pois é morta
Inês de antigos sonhos, e conforta
no tempo de papel tramar de novo

nosso papel , velino, e nosso povo
é Lucrécio e Villon, velhos autores,
aos novos poetas muito superiores.

In Viola de bolso, novamente encordoada. Rio: José Olympio, 1955, p. 27.

Nobre Rua São José

A rua é ainda egrégia e simpática. Tudo se vem fazendo por transforma-la em ponto de estacionamento de automóveis, mas a sombra de Ruy Barbosa, a de João Ribeiro, de poetas antigos, sábios, professores, bibliófilos, estudantes, gente rica e gente pobre, com amor à leitura, que por lá buquinou durante anos e anos, parece freqüenta-la ao jeito das sombras: discretamente, na memória dos que gostam de evocar, na saudade de alguns sobreviventes da velha geração de caixeiros, um pouco na poeira das estantes, que as estantes veneráveis não devem ser luzidias. Há também, esparsas, memórias de leiloeiros e antiquários.

Os “sebos” foram rareando, freqüentadores assíduos se despediram para o Caju e o São João Batista, a cidade ensaio novos hábitos, ou simplesmente perdeu velhos e não teve jeito de adquirir outros. Onde reinava o velho Quaresma e depois o velho Matos, há hoje latas de comestíveis. A “Principal”, a “Acadêmica”, o J. Leite saíram da paisagem, emigrando ou desvanecendo-se. Um lado inteiro da rua desapareceu, e foi como se arrancassem metade do tronco a um corpo vivo. Mas, no outro meio-feio, o sobrada da velha Briguiet se mantém fiel a seu destino de casa de livros. Com outro nome e outros ocupantes, o espírito literário não desertou aquelas paragens. Um menino, por assim dizer crescido na Rua São José, ali está hoje, homem feito, e a este não possível demolir nem convencer de que deve negociar em política, importações ou apartamentos. Carlos Ribeiro mantém e revigora, quase sozinho, o espírito da gloriosa Rua São José, que é uma universidade a seu modo: junto às pilhas de livros, sabedores de coisas filosofam ou pontificam. Mocinhas supõem comprar romances, quando na realidade estão se provendo de noções da eterna e tenebrosa ciência de amar; (...) não flatam nem as presses universitaires, pois a rua edita desde manuais de macumba até estudos eruditos; e há sempre uma idéia, um projeto, um traço intelectual no ar, um traço que não quer perder-se e reage contra a burrificação geral da vida carioca.

Mas essa rua é também uma praia, aonde vão dar os volumes de bibliotecas que naufragaram. Vêm de mistura os mestres do pensamento e aquelas tímidas obrinhas de principiantes, que o destinatário nem chegou a abrir. O livreiro recolhe esses destroços e os reanima, pondo-os de novo em circulação. (...)


O grande poeta estrangeiro oferece seu cântico ao grande poeta nacional e este, de alma doadora por natureza, o passa a um terceiro poeta, que, premido pela dura circunstância (e quem ainda não desfez ou pensou em desfazer sua biblioteca, num dia negro?) o lança à correnteza da Rua São José, onde um quarto poeta o resgata – por quanto tempo? Assim a poesia circula como um facho levado por mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará.

In Fala, amendoeira, Rio: José Olympio, 1957, p. 37-40.

O sebo

(...)
Para onde foram os livros usados, os que tinham na capa esse visgo publicitário, as brochuras encardidas, as encadernações de pobre, os folhetos, as revistas do tempo de Rodrigues Alves? Tudo isso também é gente, na cidade das letras, e, como gente, ninho de surpresas: no mar de obras condenadas ao esquecimento , pesca-se às vezes o livrinho raro, não digo raro de todo, pois o faro do mercador arguto o escondeu atrás do balcão, e destina-o a Plínio Doyle, ao Mindlin paulista ou à Library of Congress, que não dorme no ponto... mas, pelo menos, o relativamente raro, sobretudo aquele volumeco imprevisto, que não andávamos catando, e que nos pede para tira-lo dali, pois está ligado a circunstâncias de nossa vida: operação de resgate, a que procedemos com alguma ternura. (...)

A inenarrável promiscuidade dos sebos! Dante em contubérnio com o relatório do Ministro da Fazenda, os eleatas junto do almanaque de palavras cruzadas, Tolstoi e Cornélio Pires, Mandrake e Sóror Juana Inés de la Cruz... Nenhum deles reclama. A paz é absoluta. O sebo é a verdadeira democracia, para não dizer: uma igreja de todos os santos, inclusive os demônios, confraternizados e humildes. Saio dele com um pacote de novidades velhas, e a sensação de que visitei, não um cemitério de papel, mas o território livre do espírito, conta o qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão.

In O poder ultra-jovem e mais 79 textos em prosa e verso. 2a. ed. Col. Sagarana, n° 96, Rio: José Olympio, 1973, p. 127-8

Carlos Drummond de Andrade deixou-nos em sua obra testemunhos de sua relação com as leituras, os livros e as livrarias. Estes são apenas alguns deles que escolhemos para lembrar a você, raro ou rara leitora, que estamos quase fazendo vinte anos sem sua belíssima presença, discreta, generosa e genial. E que, rara ou raro leitor há de concordar comigo, sua obra continua com todo o poder de encantamento, contrariando um dos aforismos que publicou no livro O avesso das coisas ao dizer que, como os homens, as obras literárias minguam com o tempo.
Viva Drummond, para sempre! Ler e reler Drummond... que tal ir à sua estante, à livraria ou sebo mais próximo e resgatar, com sua leitura, algumas de suas páginas imortais?

Walter Benjamin (15/7/1892-27/9/1940), 115 anos.

Excertos de Desempacotando minha biblioteca. Um discurso sobre o colecionador.

Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revista-los. Nada disso vocês têm que temer. Ao contrário, devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia após uma escuridão de dois anos
justamente, a fim de, desde o início, compartilhar comigo um pouco da disposição de espírito – certamente não elegíaca , mas, antes, tensa – que estes livros despertam no autêntico colecionar. Pois quem lhes fala é um deles, e, no fundo está falando de si. (...)

Tenho a intenção de dar uma idéia sobre o relacionamento de um colecionador com os seus pertences, uma idéia sobre a arte de colecionar mais do que sobre a coleção em si. É inteiramente arbitrário que eu faço isso baseando-me na observação das diversas maneiras de adquirir livros. Este processo ou qualquer outro é apenas um dique contra a maré de água viva de recordações que chega rolando na direção de todo colecionador ocupado com o que é seu. De fato, toda paixão confina com um caos, mas a de colecionar com o das lembranças. (...)

Assim, a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os pólos da ordem e da desordem.

Naturalmente, sua existência está sujeita a muitas outras coisas: a uma relação muito misteriosa com a propriedade sobre a qual algumas palavras ainda devem ser ditas mais tarde; (...)

Para ele não só livros, mas também seus exemplares têm seu destino. E, neste sentido, o destino mais importante de todo exemplar é o encontro com ele, o colecionador, com sua própria coleção. E não estou exagerando: para o colecionador autêntico a aquisição de um livro velho representa o seu renascimento. E justamente neste ponto se acha o elemento pueril que, no colecionador, se interpenetra com elemento senil. (...)

De todas as formas de obter livros, escrevê-los é considerada a mais louvável. (...)

Quantas coisas não retornam à memória uma vez nos tenhamos aproximado das montanhas de caixas para delas extrair os livro para a luz do dia, ou melhor, da noite. (...)

Saibam que tenho plena consciência de quanto essa revelação que faço do mundo mental contido no ato de colecionar vai reforçar para muitos de vocês a convicção de que essa paixão é coisa do passado e a desconfiança contra o tipo humano do colecionador.
(...)

Bem-aventurado o colecionador! (,,,)

In Rua de mão única (Obras escolhidas II). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 227-35.

Walter Benjamin tem sido uma referência, tanto pessoal quanto teórica, deste neoblogueiro, e foi sem dúvida o principal inspirador de um trabalho de pesquisa sobre os clientes dos sebos, feito em colaboração com colegas, durante o curso de doutorado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo. Foi concluído em 15.7.1992, quando o filósofo completaria 100 anos de nascimento e a ele foi dedicado.

Você poderá acessar esse trabalho, “O consumidor de livros de segunda mão – Perfil do cliente dos sebos”, no endereço virtual do Escritório do Livro, aliás um espaço rico de conteúdo para nossos raros leitores:
http://www.escritoriodolivro.org.br/leitura/perfil%20sebo.pdf

O texto “Desempacotando minha biblioteca” foi provavelmente escrito em 1936, na casa do amigo Bertolt Brecht, exilado na Dinamarca, onde Benjamin se hospedou, quando ambos fugiam da perseguição nazista. Um de seus maiores estudiosos brasileiros, Flávio Kothe, no entanto, afirma que o texto é de 1931.

Creio ser um dos mais belos depoimentos sobre o amor aos livros que já se escreveu e por isso o escolhemos para marcar a data de seu nascimento. Vale a pena correr à livraria ou à biblioteca e ler o texto inteiro. Aliás, diga-se, Rua de mão única é um livro que Benjamin nos legou e que, por existir ao nosso alcance, nos faz sentir privilegiados leitores.

Para saber mais, na rede, visite:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Walter_Benjamin

quinta-feira, 12 de julho de 2007

O futuro do livro, segundo Walter Benjamin, em 1926

Nosso tempo está como que em contraposição frontal à Renascença, e especialmente em contraste com a conjuntura em que foi inventada a arte da imprensa. Casualidade ou não, o surgimento desta na Alemanha ocorre na época em que o livro, no sentido eminente do vocábulo, o Livro dos Livros na tradução da Bíblia por Lutero, torna-se um bem do domínio público. Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, encaminha-se para o seu fim.
(...)

Fica, assim, patente a atualidade da descoberta, daquilo que Mallarmé, monadicamente, no mais íntimo recesso de seu estúdio, porém em preestabelecida harmonia com todos os eventos decisivos do seu tempo na economia e na técnica, deu à publicidade.

A escrita, que tinha encontrado asilo no livro impresso, para onde carreara o seu destino autônomo, viu-se inexoravelmente lançada à rua, arrastada pelos reclames, submetida à brutal heteronomia do caos econômico. Eis o árduo currículo escolar de sua nova forma.

Se ao longo dos séculos, pouco a pouco, ela se foi deixando deitar ao chão, da ereta inscrição ao oblíquio manuscrito jazendo na escrivaninha, até finalmente acamar-se no livro impresso, ei-la agora que se reergue lentamente do solo. O jornal quase necessariamente é lido na vertical – em posição de sentido – e não na horizontal; filme e anúncio impõem à escrita a plena ditadura da verticalidade.

E antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, terá desabado sobre os seus olhos um turbilhão tão denso de letras móveis, coloridas, litigantes, que as chances de seu adentramento no arcaico estilo do livro já estarão reduzidas a um mínimo. Nuvens de letras-gafanhotos, que já hoje obscurecem o sol do suposto espírito aos habitantes das metrópoles, tornar-se-ão cada vez mais espessas, com a sucessão dos anos. Outras demandas do mundo dos negócios assumem o comando.

(...)
Mas está fora de qualquer dúvida – e isto não é imprevisível –, que o desenvolvimento da escrita não vai ficar ad infinitum vinculado às pretensões poderosas de um movimento caótico na ciência e na economia. Antes, chega o momento em que quantidade se transforma em qualidade, e a escrita, avançando cada vez mais fundo no domínio gráfico de sua nova e excêntrica figuralidade, conquista de súbito os seus adequados valores objetais.

Nesta escrita icônica, os poetas que, como nos primórdios, antes de mais nada e sobretudo, serão expertos da grafia, somente poderão colaborar se explorarem os domínios onde (sem muita celeuma) se perfaz sua construção: os do diagrama estatístico e técnico.

Com a fundação de uma escrita de trânsito universal, os poetas renovarão sua autoridade na vida dos povos e assumirão um papel em comparação com o qual todas as aspirações de rejuvenescimento da retórica parecerão dessuetos devaneios góticos.


Trechos de “Revisor de livros juramentado”, tradução de Haroldo de Campos e Flávio Kothe, em “Uma profecia de Walter Benjamin”, no livro Mallarmé, de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, S. Paulo: Perspectiva, 3a. ed., 1991, p. 193-4. Este texto está também, com outra tradução, em Walter Benjamin, Obras escolhidas II – Rua de mão única, da Brasiliense, de S. Paulo, 1987.

Muito se tem escrito e discutido sobre o fim do livro, especialmente desde a publicação de A galáxia de Gutenberg (1962), de Marshall McLuhan, tanto que, por seu sucesso, este acabou “pagando o pato” de ser tido como o seu profeta, sem nunca efetivamente o ter apontado, como fez tão claramente Benjamin, no texto acima.

Se tiver interesse, rara ou raro leitor, em avançar neste tema, leia nas boas casas do ramo (tanto livrarias quanto bibliotecas o podem ser) o breve texto deste blogueiro “O pretérito do futuro do livro”, publicado no livro Cultura letrada no Brasil, p. 487-98, organizado por Márcia Abreu e Nelson Schapochnik, de 2005, editado pela Mercado de Letras & Associação de Leitura do Brasil, Campinas (SP).

A maior clarividência, nos parece, deste “Revisor de livros juramentado”, escrito em 1926, além da perda da hegemonia do livro na sua "forma tradicional", está em apontar os marcos temporais da cultura moderna, definida pelo impresso, e fazer um traçado da história da escrita e de seus gestos. Antes da tela do computador, com sua verticalidade e letras coloridas e cambiantes, já Benjamin anteviu esta possibilidade através da observação do cinema e das letras dos letreiros de néon nas ruas.

Como se percebe também em outros textos, a lucidez da percepção das mudanças culturais, ao contrário do que ocorreu com outros filósofos, não fez de Benjamin um pessimista em relação ao futuro: ao fim, aponta para possibilidades poéticas que a nova forma da escrita descortinará. Será que já antecipava, na época, além do que reivindicam os concretistas para a forma gráfica do poema, para o “ressurgimento”, com a Internet, da escrita poética?

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Revista Tema Livre, v. 12: entrevista concedida a Fábio Ferreira

A Tema Livre (revista virtual de História) está completando 5 anos na rede, sob a direção de Fábio Ferreira, um jovem historiador com grande dedicação à área. O número 12, além de artigos assinados por Carlos Barros, Ana Paula Pereira Costa, Silmei Sant’Ana Petiz, Cristiano Cruz Alves, Neide Almeida Fiori e Eduardo Búrigo de Carvalho e pelo próprio Fábio, traz entrevistas com Heloísa Paulo e Luís Reis Torgal, historiadores vinculados ao CEIS-20 da Universidade de Coimbra (Portugal), e também uma longa entrevista concedida por este neoblogueiro ao seu editor, que se caracteriza por uma informalidade que só as entrevistas gravadas “ao vivo” admitem e uma extensão que só o mundo virtual propicia. Nela abordam-se temas relacionados à trajetória profissional do entrevistado, que podem ter algum interesse para alguns dos raros e raras leitoras deste espaço.

Foram tratados temas como a criação e o funcionamento do Lihed – Núcleo de Pesquisa sobre Livro e História Editorial no Brasil (da Universidade Federal Fluminense), as pesquisas sobre a história da Livraria Francisco Alves Editora e o seu acervo documental, o I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial (2004) e o II Seminário (2008), as comemorações do bi-centenário da implantação definitiva da tipografia no Brasil, o livro e o mercado editorial brasileiro, a crise de leitura do impresso, a atuação do entrevistado como livreiro-editor e como pesquisador da história cultural da cidade de Niterói e da cultura letrada brasileira.
Acesse este e os números anteriores da revista em http://www.revistatemalivre.com/

domingo, 8 de julho de 2007

Sobre direitos autorais e a xerox, de McLuhan

O “direito de autor” – como o conhecemos hoje, [e] o esforço intelectual individual ligado ao livro como um produto econômico – eram praticamente desconhecidos antes do advento da tecnologia da imprensa.

Os estudiosos medievais eram indiferentes quanto à identidade precisa dos “livros” que estudavam. Em compensação, raramente assinavam mesmo aquilo que era claramente seu. Eles eram uma humilde organização de serviço. A busca de textos era, com freqüência, uma tarefa muito aborrecida e demorada.

Muitos textos curtos eram transmitidos em volumes de conteúdo variado, como as anotações que se fazem num livro de recortes, e, nesse processo de transmissão, a autoria freqüentemente se perdia.

A invenção da imprensa eliminou o anonimato, fomentando idéias de fama literária e o hábito de considerar o esforço intelectual como propriedade privada.

A multiplicação mecânica do mesmo texto criou um público – o público leitor.

A cultura emergente, orientada para o consumo, tornou-se preocupada com os rótulos de autenticidade e proteção contra o roubo e a pirataria.

A idéia de “copyright”, direito de reprodução – “o direito exclusivo de reproduzir, publicar e vender o conteúdo e a forma de um trabalho artístico ou literário” – nascia então.

A xerografia – o caça-mente de qualquer um – é o arauto dos tempos de publicação instantânea. Qualquer pessoa hoje pode tornar-se autor e editor.

Procure quaisquer livros de quaisquer matérias e faça seu livro, sob medida. Basta fazer um xerox do capítulo de um, um capítulo de outro – furto instantâneo!

À medida que novas tecnologias entram em uso, as pessoas ficam cada vez menos convencidas da importância da auto-expressão. O esforço de grupo substitui o esforço individual.

Um duplicador, artifício duplicador
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Um duplicador, artifício duplicador
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Um duplicador, artifício duplicador
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Trazemos este texto do canadense Herbert Marshall McLuhan, considerado por uns o “profeta” da Comunicação, por outros um charlatão, por outros, ainda, um agudíssimo observador das transformações da sociedade moderna, em trânsito para a pós-modernidade, o que ele relacionou com a criação das “novas tecnologias” (caso deste neoblogueiro), para que você, rara ou raro leitor, conheça um dos registros provocadores que fez sobre o tema dos direitos autorais, já nos anos 1960, antes da Internet, mas já prevenindo o que a tecnologia da Xerox iria trazer de novas possibilidades (e de vícios) para os leitores e de riscos aos interesses econômicos de editores e autores.

O texto é do belo e instigante livro de McLuhan, feito em parceria com Quentin Fiore, O meio são as massa-gens (p. 150-1), ora esgotado, mas encontrável nos sebos (consulte, p.ex.,
www.estantevirtual.com.br), traduzido por Ivan Pedro de Martins, que também fez o prefácio, e editado entre nós pela Record, na década de 1970 (sem data de publicação no livro).

Que seria de nossos alunos universitários, sem a xerox, com os baixíssimos investimentos feitos pelos diferentes e sucessivos governos nas bibliotecas universitárias?

Que seria dos governos se não existisse a xerox para saciar nos alunos a (já diminuta) vontade de leitura de textos impressos, e eles então pressionariam por mais verbas, sempre tão magras, para equipar e atualizar as bibliotecas?

A tecnologia da xerox é um mal menor? Ou maior? Tudo é complexo e você, rara ou raro leitor, poderá fazer seu comentário sobre o tema, mais candente hoje que quando o canadense escreveu sobre ele. Ou não?

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Emerson: Goethe, o escritor

(...)
A natureza exige um narrador. Todos os fenômenos preocupam-se em escrever a sua história. O planeta, o calhau, são seguidos de sua sombra. O penedo, rolando, deixa as suas arranhaduras sobre a montanha; o rio, o seu leito no solo; o animal, seus ossos no estrato; o feto e a folha, seu modesto epitáfio na hulha. A gota que cai, esculpe-se na areia ou na pedra. Nenhum pé calca a neve, ou percorre o solo, sem que imprima, em caracteres mais ou menos duráveis, uma descrição da sua marcha.

Cada ato do homem inscreve-se nas memórias dos seus companheiros, nos seus próprios costumes e sobre o seu próprio rosto. O ar está cheio de sons, o céu, de sinais, a terra não é senão memorando e assinaturas, e cada coisa está coberta de alusões, que falam aos inteligentes.
(...)
No homem, a memória é uma espécie de espelho que, tendo recebido a imagem dos objetos que o rodeiam é tocado de um sopro de vida, e os dispõe numa nova ordem. Os fatos passados não permanecem aí inertes, porém uns se apagam, e outros brilham de tal sorte que, subitamente, vemos um novo quadro, composto de ações memoráveis.

O homem coopera. Aprecia comunicar, e o que tem para dizer carrega como um peso sobre o coração até que dele se liberte. Contudo, além do prazer universal da conversação, alguns homens nascem em quem o poder para essa segunda criação se exalta e sublima. São os homens nascidos para escrever.

(...)
O pensador é o homem dos séculos, mas é necessário também que ele deseje como os outros homens estar em bons termos com os seus contemporâneos. Para as pessoas superficiais existe, porém, certo ridículo de que são vítimas os literatos ou letrados, que não é de nenhuma importância, a menos que o letrado lhe dê atenção.

Neste país, a força da conversação e da opinião pública, recomenda o homem prático, e a porção sólida da comunidade é nomeada em todos os círculos com um respeito significativo.

(...)
Contudo o escritor não ocupa, de modo nenhum, posição preponderante entre nós. Atribuo-lhe a culpa. Um livro passa por um livro. Houve tempo em que o escritor era uma pessoa sagrada, escrevia Bíblias, os primeiros hinos, os códigos, as epopéias, os cantos trágicos, os versos sibilinos, os oráculos da Caldéia, as sentenças da Lacônia, gravadas nos muros dos templos. Cada palavra era verdadeira e despertava as nações para uma vida nova. Escrevia sem ligeireza, e sem escolha. Cada palavra estava gravada diante dos seus olhos, sobre a face da terra e do céu, e o sol e as estrelas não eram senão letras do mesmo sentido.

Como pode, porém, um homem ser honrado, quando não se honra a si mesmo, quando se perde no vulgo, quando não é mais o legislador, mas sim o caluniador, curvando-se à opinião inconstante dum público ignorante e versátil; quando lhe é preciso apoiar como um advogado trêfego qualquer mau governo, ou que lhe é preciso vociferar todo um longo ano, na oposição, ou escrever crítica convencional, ou compor romances dissolutos, ou, em todo caso, escrever sem idéia, e sem recorrer, dia e noite, às fontes de inspiração.

Pode-se fornecer alguma refutação a essas questões percorrendo a lista dos gênios literários da nossa época. Entre eles, não se oferece a nenhum espírito nome mais instrutivo que o de Goethe, para representar os deveres e os poderes do letrado ou escritor.
(...)

Trecho (p. 211s) de Homens representativos, de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), lançado em Londres (1849) e em Boston (1850) e que se tornou um clássico do pensamento americano. São pequenas biografias de alguns homens notáveis, Platão, Swedenborg, Montaigne, Shakespeare, Napoleão e, finalmente, Goethe, o escritor, autor de Os sofrimentos do jovem Werther, Os anos de aprendizado de Wilhem Meister, Fausto e outras obras-primas da literatura alemã.

Num tempo em que ficamos órfãos de referências que nos possam orientar e inspirar, diante das tormentas e vicissitudes do contemporâneo, mesmo com todo o seu idealismo, uma obra como esta talvez seja uma proveitosa leitura para nossas reflexões e práticas. O que acha rara ou raro leitor? Será nostalgia deste neoblogueiro?

A edição, de 1967, é da também saudosa Coleção Clássicos de Bolso, da Edições de Ouro, um projeto que está merecendo a atenção dos pesquisadores de nossa história editorial, pelo excelente serviço que prestou à cultura brasileira. A tradução, prefácio e notas são de Alfredo Gomes.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Olavo Bilac e uma profissão de fé

Profissão de fé

(...)
Mais que esse vulto extraordinário,
Que assombra a vista,
Seduz-me um leve relicário
De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto-relevo
Faz de uma flor.

Imito-o e, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,
A idéia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,
Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso,
Por tão sutil,
Possa o lavor lembrar de um vaso
De Becerril.

E horas sem conta passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento.

Porque o escrever – tanta perícia,
Tanta requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.
(...)


A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício.

Porque a beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.

Língua portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho.


Os poemas foram transcritos do pequeno volume Olavo Bilac, o segundo da extensa coleção Nossos Clássicos, da Agir - uma grande iniciativa editorial para oferecer maior acessibilidade a textos de escritores brasileiros e portugueses consagrados (o primeiro volume é dedicado a Fernando Pessoa), coordenada por Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. O volume que nos serviu é de autoria de Alceu Amoroso Lima, em sua 7ª edição, de 1980. Procure-o em sua próxima visita a uma livraria ou sebo e delicie-se com uma boa recolha de uma obra que, sendo expressão de seu tempo, o é também da riqueza de nossa língua e da sua melhor poesia.

Em 3 de março pp começamos a lançar ao mar nesta rede que, ao contrário da do pescador, liberta e amplia os peixes, estes despretensiosos apontamentos sobre o ler e o escrever. Hoje alcançamos a centésima postagem! Atrevemo-nos a dizer que agora vai se tornando possível atribuir valor qualitativo mais que quantitativo ao adjetivo “raro” que ajuntamos quando nos dirigimos ao nosso leitor e leitora. Isso já poderia justificar as horas ou minutos arrancados do escasso tempo, nosso e seu, rara leitora. Os retornos, as trocas, os comentários, muitas vezes mais ricos que as sementes lançadas, estimulam a continuidade deste exercício que é, em grande parte, homenagem à língua portuguesa, o que levou à escolha (para este centenário) de escritos de Olavo Bilac (1865-1918), cuja obra poética é dela belíssima expressão e permanente culto.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Uma breve coordenação interina no Proler, Aníbal Bragança

Entre janeiro e início de abril de 2006 vivemos uma experiência inesquecível – como todas as outras, esta também teve aspectos bons e outros ruins – na coordenação do Programa Nacional de Incentivo à Leitura – Proler, vinculado à Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.

Esse Programa foi criado por decreto do nefasto governo Collor, em 13 de maio de 1992, graças ao movimento de alguns intelectuais e professores, durante a gestão do poeta Affonso Romano de Sant’Anna na presidência da Fundação Biblioteca Nacional, a quem caberia a sua direção.

De certa forma o Proler, afirmamos nós, deveria atuar no vácuo deixado pela liquidação do Instituto Nacional do Livro – INL, que tantos serviços prestou (e alguns desserviços também) à cultura letrada no Brasil desde que foi criado, em 1937, até 1990. Sua agonia final começou em 1987, quando o então presidente José Sarney, tendo como ministro da Cultura o honrado e brilhante economista Celso Furtado, o desqualificara, incorporando-o, e também a Biblioteca Nacional, à então recém-criada Fundação Nacional Pró-Leitura. Esta, que não chegou a efetivamente a consolidar-se, foi liquidada pela lei collorida n° 8.029, de 12.04.90, de triste memória, sendo suas atribuições transferidas para a Biblioteca Nacional.
(...)


Leia a íntegra do “depoimento” (e muito mais) em:
LINHA MESTRA - Revista Virtual Ano I, nº 03, julho/agosto 2007, editada pela
ALB – Associação de Leitura do Brasil
http://www.alb.com.br/pag_revista.asp

A leveza na literatura, segundo Italo Calvino

(...)
Quando iniciei minha atividade literária, o dever de representar nossa época era um imperativo categórico para todo jovem escritor. Cheio de boa vontade, buscava identificar-me com a impiedosa energia que move a história de nosso século, mergulhando em seus acontecimentos coletivos e individuais. Buscava alcançar uma sintonia entre o espetáculo movimentado do mundo, ora dramático ora grotesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me levava a escrever.

Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas.

Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação, não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.

O único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas. Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia capturar pela mordaça de pedra – como acontece toda vez que tento uma evocação histórico-autobiográfica.

Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento, e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho.

Sou tentado de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo.

(...)

Ítalo Calvino, “Leveza”, in Seis propostas para o próximo milênio. Trad. de Ivo Barroso, Cia. das Letras, S. Paulo, 1990, p. 15-6.

O trecho acima foi retirado do início do texto da conferência sobre Leveza que Calvino preparou para apresentar nas suas Lições Americanas, que nunca chegou a proferir. Convidado pela Universidade de Harvard, em 1984, para oferecer um ciclo de seis conferências, faleceu em 1985, em Siena, na Itália. Deixou prontos os textos de cinco: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade. A que seria a última, Consistência, Calvino havia deixado para preparar em Harvard. Ficou o legado literário de uma dos maiores escritores do século XX, uma referência nos caminhos da literatura do terceiro milênio.

A escrita, o livro e a tipografia, de Cecília S. Schmidt

Este pequeno livro talvez tenha sido um dos primeiros – se não o primeiro – a ser publicado em português sobre o tema, direcionado para o “grande público”. Além de um capítulo sobre cada um dos subtemas do título, inclui apêndices sobre: O comércio de livros; bibliotecas; e bibliófilos e bibliômanos! Em sua apresentação lê-se:

“A escrita, o livro, a tipografia – três invenções sublimes do engenho humano, completando-se maravilhosamente. Ao descobrir a primeira, o Homem achou mais um processo de transmitir o pensamento, com vantagens sobre o som e o gesto, únicos meios de que até então dispusera. Depois, quando formou o livro, reunindo nele a sabedoria vinda de geração em geração, a história do seu povo ou da sua alma – criou o maior instrumento do progresso humano. Finalmente, com a tipografia, o frágil receptáculo de idéias tornou-se, pela sua rápida e fácil multiplicação, praticamente indestrutível”.

O volume inaugura a seção – Os Inventos Sensacionais – da "Enciclopédia Popular" da "Pequena Biblioteca de Iniciação Cultural", dirigida por A. Vieira d’Areia, que o traduziu do alemão.

Sobre a autora nada conseguimos descobrir. A edição, de 151 páginas, foi feita pela Agência Editorial Brasileira, de José Rodrigues Júnior, Editor, sendo composta e impressa na Tipografia Americana, da Rua da Horta Seca, 50, em Lisboa. A bibliografia indicada, que soma 37 itens, tem apenas 3 em francês, todos os demais são em alemão.

O interessante nessa edição é sua data, 1945. Sim, houve um tempo em que se oferecia em uma Enciclopédia Popular uma singela e boa História do Livro!

O clássico O aparecimento do livro (L’Apparition du livre), de Lucien Febvre e Henry-Jean Martin, só seria dado à luz em 1958, inaugurando na tradição francesa a disciplina acadêmica de estudos da História do Livro. Seria publicado em português somente em 1992, em co- edição Editora da UNESP com a Hucitec, traduzido por Fulvia M. L. Moretto e Guacira Marcondes Machado.

Você, rara ou raro leitor, sabe algo mais para nos dizer sobre essa edição pioneira? E sobre a essa autora?