quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Luís da Câmara Cascudo, o mais ilustre dos natalenses notáveis

Todos os anos vividos no alto sertão do Rio Grande do Norte e Paraíba foram cursos naturais de literatura oral. Tive a revelação do meu “scholarship” quando estudei na cidade a outra literatura, livros, livros, livros, escolas, diagramas, influências, mestres, críticas, resumos.
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De 1920 a 1932 fui devorador de livros e Henrique Castriciano [escritor e político potiguar] seguia o ritmo delirante porque não era capaz de disciplinar-me quem nunca tivera disciplina.
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O vício da literatura greco-latina vacinou-me contra as ditaduras mentais contemporâneas.
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No meu tempo era pecado mortal o popular, o tradicional, o cotidiano, o comum. Fui professor catedrático concursado. Minha tese versou sobre a intencionalidade do descobrimento do Brasil. Pois bem, um colega professor foi pedir ao governador que me demitisse. Eu estava desmoralizando o estabelecimento. Não porque eu fosse pederasta ou coisa que o valha, mas porque falava pros alunos em lapinha, bumba-meu-boi, pastoril. Perguntava aos alunos se eles acreditavam em lobisomens, almas penadas, etc., e isso era uma desmoralização para o ensino superior do estado do Rio Grande do Norte.
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Minha condição de professor provinciano libertava-me da sugestão hipnótica dos grandes nomes citadinos.
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O processo criativo semelha ao da gravidez tubária. Existe em nós obscuro, afastado do puramente sensorial. Não se suspeita que se está grávido, platonicamente, resultante da mentalidade e da cultura de cada um.
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Sempre fiz um livro pensando no outro, que começaria logo em seguida. Sabe como surgiu o Dicionário do Folclore? Era inicialmente um simples caderninho de notas para facilitar o meu trabalho. Foi crescendo tanto que quando me apercebi já estava com um trabalho pronto.
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Felizmente, eu nunca aprendi gramática, que é inutilizadora de grandes talentos, exceção feita apenas a Machado de Assis, que era nato. No dia em que ele viu uma gramática, se assombrou.
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A crítica ou a concordância não influirão no movimento da seiva vital.
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Não se assombre, em Natal eu sou o único pecador profissional. Os outros são amadores.
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A rede [de dormir] colabora no movimento dos sonhos.
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O livro que mais me agrada entre os meus é Canto de Muro*, publicado pela José Olympio em 1959. Nem sequer posso modificá-lo porque parece trabalho mediúnico. É o que mais amo pelo conteúdo de intensa significação moral e pelo esforço em realizá-lo.
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O que me interessa é a vida do povo na sua normalidade, como ele vive, as manifestações da legitimidade social. Dedico-me a descobrir as permanências da vida brasileira.
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A recompensa do trabalho é a alegria de realizá-lo. Quando termino um trabalho, estou pago.

* Visite a sua livraria ou consulte a Estante Virtual www.estantevirtual.com.br .

Coletânea de citações retiradas de livros, entrevistas e falas do autor, respectivamente: História da Literatura Brasileira, vol. VI, 1952; Nosso amigo Castriciano, 1965; Dois ensaios de História, 1965; Jornal “O Saco”, nº 3, julho de 1976; Ontem, 1972; conversa com o autor da coletânea, Diógenes da Cunha Lima; Revista “Manchete”, entrevista concedida a Cassiano Arruda, 1967; Idem; O tempo e eu, 1968; Jornal “O Saco”, nº 3, julho de 1976; Rede de dormir, 1959; Mensagens de Câmara Cascudo e Cosme Lemos – Coletânea de Thadeu Villar de Lemos, vol. 1, 1972; Idem; Idem.

Fonte:
Diógenes da Cunha Lima, Câmara Cascudo; um brasileiro feliz. 3ª. ed., rev. e aum., comemorativa dos 100 anos de nascimento de Luís da Câmara Cascudo. Rio de Janeiro: Lidador, 1998.

Este registro, rara leitora, pretende ser singela homenagem ao grande etnólogo brasileiro Luís da Câmara Cascudo, extensiva à cultura potiguar e aos amigos natalenses. Na próxima semana a bela cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, receberá os pesquisadores que irão participar do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, promovido pela Intercom e pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com apoios e parcerias de muitas outras instituições.

Saiba mais em www.intercom.org.br e http://www.cchla.ufrn.br/intercom2008/ .

Serão certamente dias de intenso trabalho para muitos e uma festa para todos, visitantes e anfitriões. Natal será um belo espaço para acolher um dos mais importantes eventos acadêmicos brasileiros. Até lá.

Saiba mais
1. Luís da Câmara Cascudo:

“Centenário do nascimento de Luís da Câmara Cascudo”, por Vicente Serejo:
http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/vida1.htm

Luís da Câmara Cascudo na Wikipédia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_da_C%C3%A2mara_Cascudo

Museu Câmara Cascudo
http://www.mcc.ufrn.br

Memória viva de Câmara Cascudo:
http://memoriaviva.digi.com.br/cascudo/index2.htm

2. Natal:
Prefeitura do Natal:
http://www.natal.rn.gov.br/

Mochila Brasil
http://www2.uol.com.br/mochilabrasil/natal.shtml

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O lucro dos bancos e a falta de recursos para a educação

Algumas vezes, raro leitor, já nos referimos aqui aos baixos índices médios das práticas de leitura no país, medidos por instituições nacionais e internacionais. Em boa parte, assim como esse, outros indicadores sociais estão relacionados diretamente com esta notícia dada hoje no jornal Folha de S. Paulo:

"Uma curiosidade é que, do final de 2002 até o primeiro semestre deste ano, portanto durante os cinco anos e meio do governo Lula, a rentabilidade dos bancos brasileiros saltou de 12,4% para 21,7%. Já entre os bancos nos EUA, nesse mesmo período, a rentabilidade caiu de 15,7% para 8,9%."
Guilherme Barros, "Rentabilidade de bancos no país supera a dos EUA", in
http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u437491.shtml

Em que pesem possíveis erros na divulgação dos dados (que podem ser mais graves do que estão apresentados), já é algo que não podemos esquecer, principalmente porque os lucros dos bancos no Brasil estão relacionados principalmente com a política de juros altos da dívida pública levada a efeito pelos mandarins do Banco Central, a serviço de interesses que não são do povo nem do Estado brasileiro. Os resultados alcançados pelos bancos e pelo sistema financeiro em geral não nos devem deixar dúvidas sobre quem tem interesse nessa política, levada a efeito sob a fachada do combate à inflação.

O que pensa disso, rara leitora?

Para contribuir para possíveis reflexões de nossa rara leitora ou leitor, acrescentamos alguns outros dados publicados na grande imprensa, ontem e hoje:

Governo paga mais 14.9% de juros do que em igual período no ano passado

"Os governos municipais, estaduais e federal já pagaram este ano mais de R$ 100 bilhões em juros aos credores da dívida pública. Dados apresentados ontem pelo Banco Central mostram que essa despesa somou R$ 106,803 bilhões de janeiro a julho, com alta de 14,9% ante igual período de 2007, novo recorde. (...)

A despesa recorde de juros pagos aos bancos e investidores é explicada por vários fatores, (...). Um deles é a alta da inflação, que eleva a despesa nos papéis corrigidos por indicadores de preço. Nos sete meses de 2008, o pagamento nos títulos atrelados ao Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) passou de R$ 22 bilhões, quase igual à despesa de todo o ano passado (R$ 24,7 bilhões). Outra explicação vem da taxa básica de juros (Selic). Com o aperto monetário iniciado em abril, o custo dos papéis que seguem a Selic sobe.

No início do ano, a despesa mensal com esses títulos era de cerca de R$ 5 bilhões. Em julho, já estava em R$ 7,7 bilhões. (...)"

Fonte: Fernando Nakagawa e Fabio Graner, O Estado de São Paulo, 28/8/2008 (Economia & Negócios)
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080828/not_imp231961,0.php
acessado às 7:13
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Segundo reportagem da revista The Economist, o Banco Central do Brasil é o que mais subiu os juros em relação a outros países...
26/08/08
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Eventos na área do livro e da leitura no Brasil

5 e 6 de setembro de 2008:
VIII Encontro do Núcleo de Pesquisa Produção Editorial da Intercom
no XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Natal – RN
Mais informações: acesse:
Intercom Núcleo Produção Editorial
http://groups.google.com/group/intercom-nucleo-producao-editorial
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
www.intercom.org.br

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9 e 10 de setembro de 2008:
Simpósio: Impressões: Caminhos da Imprensa no Brasil (1808-2008)
Promoção:
Escola de Comunicação (ECO) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Inscrições gratuitas.
Mais informações:
http://picasaweb.google.com.br/anibalbraganca/ImpressEsSimpSioCaminhosDaImprensaNoBrasil18082008/photo#5238471489789703602 Contato:
extensão@eco.ufrj.br
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13 a 16 Setembro, 2008:
“História do Livro e da Leitura” - IV Seminário de Teoria e História Literária
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Vitória da Conquista, Brasil

Conferencistas:

Aníbal Bragança (IACS-UFF):
“Antecedentes da instalação hipertardia da tipografia ao Brasil (1747-1808)”

Márcia Abreu (UNICAMP):
“Olhares sobre o romance: a censura portuguesa no século XVIII e início do XIX”

Márcia Arruda Franco (USP):
“Impressos e manuscritos quinhentistas de Sá de Miranda “

Tania Bessone (UERJ):
“A história do livro e da leitura: novas abordagens”

Sheila Moura Hue (Real Gabinete Português de Leitura):
“As duas faces da impressão da lírica dos contemporâneos de Camões”

Coordenação-geral:
Profs. Marília Librandi Rocha e Marcello Moreira
Saiba mais sobre o evento, inclusive como participar:
http://www.sethil.com.br/ivsethil.asp

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17 a 19 de setembro de 2008
4ª Colóquio: “Relações Luso-Brasileiras: D. João VI e o Oitocentismo”
Realização:
Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras (PPRLB) do
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
Coordenação geral:
Profa. Gilda Santos
Inscrições abertas.
Programação completa: acesse
http://picasaweb.google.com.br/anibalbraganca/4ColQuioRelaEsLusoBrasileirasDJoOVIEOOitocentismo Mais informações:
http://www.realgabinete.com.br/#

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Setembro/2008: Programação cultural da
Academia Niteroiense de Letras (ANL)
sempre às 4as. feiras, 17h.

10: "Letristas da Música Popular Brasileira"
Lauro Gomes de Araújo.
17: “Literatura Brasileira – o Modernismo”
Sávio Soares de Sousa.
24: "A importância da Leitura"
Wanderlino Teixeira Leite Netto.

Rua Visconde do Uruguai, 456 – Centro – Niterói – RJ
Entrada franca. Lugares limitados.
Mais informações: Acesse:
www.academianiteroiense.org.br
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Estas serão, raro leitor, oportunidades que se nos oferecem para reencontrar amigos e colegas que atuam na área multidisciplinar de estudos sobre livros e leituras, em suas diferentes abordagens. Quem sabe nos encontraremos por lá?

Ainda uma dica: você gosta de visitar ou quer descobrir o universo do YouTube?

Estão disponíveis vídeos da mesa-redonda realizada durante a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro (2007) sobre o livro de Roberto Kahlmeyer-Mertens, Verdade-Metafísica-Poesia – Um ensaio de filosofia a partir dos haicais de Luís Antônio Pimentel, da NitPress, 2007, em que participei, estão disponíveis no YouTube:
Acesse:
http://br.youtube.com/results?search_query=Kahlmeyer&uploaded=w

sábado, 23 de agosto de 2008

Herôdotos (c.484-c.425 a.C): Sobre escrita alfabética e livros

Os fenícios vindos com Cadmos [herói mítico grego associado à difusão da escrita alfabética], entre os quais estavam esses gefireus, introduziram numerosos conhecimentos entre os helenos quando se estabeleceram em seu território – entre outros o conhecimento do alfabeto, que os helenos, até onde vai o meu conhecimento, não possuíam anteriormente; de início esse alfabeto era o mesmo usado pelos fenícios; depois, com o passar do tempo, simultaneamente com a língua esses cadmeus mudaram também a forma das letras.

As regiões circunvizinhas eram habitadas em sua maior parte por helenos de raça iônia; eles adotaram os caracteres aprendidos dos fenícios e passaram a usá-los com ligeiras modificações, e usando-os eles os divulgaram, como era justo – pois os fenícios haviam sido os seus introdutores na Hélade – sob o nome de “fenícios”.

Da mesma forma, os iônios chamam os livros de diphteroi [de couro] por causa dos usos antigos, pois anteriormente, em decorrência da raridade do papiro para livros, eles usavam peles de cabra ou carneiro; ainda em minha época muitos bárbaros escrevem nessas peles.


In Herôdotos, História. Trad. do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury. Ed. UnB, 1985, p. 274.

Segundo Mário da Gama Kury, Herôdotos, é o autor da primeira obra em prosa da literatura grega preservada até nossos dias. Nasceu em Halicarnassos (hoje na Turquia), aproximadamente 484 a.C. Em 445, já estava em Atenas, onde teria lido sua obra História (ou parte dela), feita a partir dos conhecimentos adquiridos em suas pesquisas e viagens.

Herôdotos (aqui seguimos a grafia indicada por Kury, diferente da usual, Heródoto), é considerado o “pai da história”. Esta disciplina, desde sua origem, está associação a “busca, investigação, pesquisa”, sendo o historiador, do ponto de vista etimológico, “uma pessoa que se informa por si mesma da verdade, que viaja, que interroga, ao invés de limitar-se a transcrever dados à sua disposição e repetir genealogias, cronologias, lendas” (p. 9).

Destacamos aqui, rara leitora, este excerto da monumental obra de Herôdotos que fala da apropriação pelos gregos do alfabeto criado pelos fenícios, por se tratar certamente de um dos registros escritos mais recuados sobre esse fato (provavelmente ocorrido cerca de 4 séculos antes), que teria repercussão notável na nossa cultura, quando, através do latim, se tornou a base de todas as escritas européias e assim da cultura ocidental.

É interessante no trecho também a referência ao uso do papiro (egípcio) em seu tempo e ao uso do couro de pequenos animais para suporte da escrita de livros pelos “bárbaros”. Apesar do papiro continuar a ser usado ainda durante séculos, o uso do couro se disseminou, quando, mais tarde, em Pérgamo, pequeno reino helenizado (hoje na Turquia), notável por sua biblioteca que rivalizava com a de Alexandria, se criou uma técnica especial que o tornaria mais dócil para receber a escrita e fazer livros. Passou a ser chamado de pergaminho e foi o substituto do papiro quando este se tornou novamente raro. Utilizado durante toda a Idade Média, o pergaminho perdeu definitivamente espaço para o papel quando da invenção da tipografia por Gutenberg, no século XV.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Programa Petrobras Cultural: bolsa para escrever e publicar!

Neste ano a Petrobras irá reprisar o edital para Criação Literária: Ficção e Poesia. Trata-se de incentivo para fomentar a produção literária no país. Cada autor receberá prêmio equivalente a uma bolsa de R$40 mil e mais R$7 mil de auxílio à editora para viabilizar a publicação da obra.

Se lhe interessa, raro leitor, rara leitora, aproveite uma excelente oportunidade para saber mais e tirar dúvidas sobre o Programa Petrobras Cultural (PCC) em um chat com a Gerente de Patrocínios da Petrobras, Eliane Costa, e o responsável pela seleção pública do setor de Literatura, Giuseppe Zani.

O chat vai acontecer na quinta-feira, dia 28 de agosto, das 15 horas às 16h30. A primeira meia hora irá tratar de questões do Programa Petrobras Cultural e a hora final será dedicada especialmente para o setor de Literatura.

Não perca essa chance. Para participar, acesse o site do PPC no momento do chat:
www.petrobras.com.br/ppc .

Caso não possa nesse dia haverá novas oportunidades: outros chats acontecerão nos dias 11 e 25 de setembro, 9 e 23 de outubro e 6 e 13 de novembro, sempre com espaço para aspectos gerais do Programa Petrobras Cultural e questões específicas do edital de cada setor.

Acompanhe a programação do Programa Petrobrás Cultural (PPC) no sítio acima. Vale a pena. É um dos mais importantes programas de apoio à cultura brasileira.

Participe e sinta que, mesmo no Brasil, país de baixos níveis médios de práticas de leitura, a criação literária pode ser valorizada, estimulada e apoiada.

ECA-USP promove debates sobre o universo da edição

O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) dá início às Jornadas de Editoração 2008.

O objetivo do ciclo, segundo nos informa José Muniz Jr., é discutir assuntos relativos à edição, colocando em debate questões importantes da área. Para isso, promove a interação entre profissionais e pesquisadores, em mesas que contemplam as tendências do setor e os avanços da pesquisa sobre ele.


Cada jornada conta com a participação de três convidados, que abordarão o assunto de sua respectiva especialidade e, em seguida, discutirão entre si e com o público as questões comuns.

Em 2008, serão realizados os três primeiros encontros.

Em 26 de agosto, o primeiro deles tem como tema as relações entre os mercados editoriais brasileiro, espanhol e latino-americano.

Em 24 de setembro, o segundo debate abordará as atividades profissionais de edição de texto.

Em 20 de outubro, por fim, serão discutidos alguns aspectos da pesquisa em Editoração e seu caráter interdisciplinar.

O evento é voltado aos estudantes de Comunicação, Letras, Pedagogia e áreas afins; pós-graduandos, professores e pesquisadores interessados no tema; autores, tradutores, editores e demais profissionais da área; e interessados em geral.

As inscrições serão feitas no local, meia hora antes do início do debate, e são gratuitas.

As Jornadas de Editoração contam com o apoio do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP e a colaboração de Todotipo Editorial, Virei A Página e Comunicação Pública.

Mais informações em:

Blog Jornadas de Editoração da ECA-USP, de José Muniz Júnior
http://jornadasedit.blogspot.com/


Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP)

http://www.eca.usp.br/

Artes do Livro, da Ateliê, a biblioteca do editor



O Prof. Plínio Martins Filho, da ECA/USP, notável editor, é um apaixonado pelas artes gráficas e pelo livro. Esses atributos manifestam-se sobejamente na coleção Artes do Livro, que dirige na Ateliê Editorial, editora paulista sediada em Cotia, nos arredores de S. Paulo.

O volume 6 da série, Ex-Libris, apresenta a coleção reunida por José Luís Garaldi, da Livraria Sereia, em belíssmo volume, enriquecido com uma introdução da editora e tradutora Dorothée de Bruchard, “Ex-libris. Belas histórias de arte, de vida e de amor aos livros”, além de uma nota do organizador, o mesmo Plínio Martins Filho.

Deve aqui destacar-se que um dos mais antigos ex-libris brasileiros, segundo o organizador do volume, é o do Barão do Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos – RJ, 1845-1912), composto por uma gravura que reproduz paisagem da praia da Praia de Icaraí, em Niterói, tendo em primeiro plano a Pedra de Itapuca, símbolo da cidade, e ao fundo a baía de Guanabara e o Rio de Janeiro (veja imagem). O Barão do Rio Branco, autor do desenho, gravado pelo artista francês Agry, foi pioneiro no Brasil no uso de ex-libris para identificar sua biblioteca.

A coleção Artes do Livro tem algumas características que a identificam, como a capa dura, certas marcas gráfico-visuais, o cuidado e a mesma sobriedade em cada projeto editorial, entretanto é grande a variedade de seus formatos, que vão desde 5x9,5 cm. no volume 3, A Arte Invisível, 2003, de Plínio Martins Filho, até 19x27,5 cm., de O Design do Livro, de Richard Hendel, traduzido por Geraldo Gerson de Souza e Lúcio Manfredi, lançado no mesmo ano de 2003.

Completam a coleção, até agora, o volume 2, Catálogo de Clichês, de D. Salles Monteiro, 2003, edição fac-similar; o volume 4, Aldo Manuzio, Editor, Tipógrafo, Livreiro, de Enric Satué, traduzido do original catalão por Cláudio Giordano, com prólogo de Oriol Bohigas, 2004, e o volume 5, de Jan Tschichold, A Forma do Livro. Ensaios sobre tipografia e estética do livro, traduzido por José Laurenio de Melo, com introdução de Robert Bringhurst, de 2007.

Um belo serviço prestado às artes gráficas no Brasil, a coleção Artes do Livro, com a proposta de “contribuir tanto aperfeiçoamento dos processos de produção do livro como no fortalecimento da historiografia da edição”, tem como objetivo ser “A biblioteca do editor”. Indispensável a todos os profissionais e amadores do livros.

Para saber mais:

http://www.atelie.com.br/
http://www.escritoriodolivro.org.br (de Dorothée de Bruchard)
http://www.estantevirtual.com.br/acervos/olecram (Sebo A Sereia, de José Luís Garaldi)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

João Rui de Sousa: O rosto (o rasto) da escrita

Vida e morte das palavras

São vivas quando
o coração do vento amadurece
e a voz vem de repente
e não se esquece
de estremecer as trevas
ou de roer as malhas
da rotina
ou de dar lenha e fogo
(matéria inesperada
e sibilina)
a um barco que arrefece.

São mortas quando
a morte nelas cresce
– com os seus cabelos ralos,
suas ramagens crespas, desgastadas,
seus ossos cabisbaixos
rolados sobre o nada.
São mortas se não queimam
a limalha sobrante – esse pó
de cães exaustos, de dias
fatigantes –
e em podridão se instalam.


Pastoreio

É em íngremes serranias – e talvez ao luar –
que acompanho o gado (o vulto
das palavras) de que às vezes sou dono
e sou pastor.

Bem junto a ele, e vislumbrando ao longe
ruínas e caminhos, hortejos e silvedos
(e mesmo um corpo em chamas de guitarra),
reencontro o fio das frases e os poemas
– seus currais.


O infindável dos pretextos poéticos

Até à evidência,
até ao clarear de aves nocturnas
em rotundos prados, até ao fogo
das queimadas
(até à queima de si mesmo
no centro das cavernas, entre cães
de Lascaux, bisontes de Altamira),
até ao gotejar da água e à lasciva
seda de dormir entre folhagens,
até ao lago fundo e até à cinza
duma penumbra errante (pragal
de nostalgia e de quebranto)
– há sempre atalhos rubros
para a escrita,
há sempre airosas rãs
para a nossa fala.


Conselho aos crentes

Não queirais entrar na dor que se constrói
de verso a verso, de sílaba a sílaba,
num fogo que se expande e adere à boca,
às páginas, às estrofes e às palavras,
queimando todo o corpo e a alma desavinda
ou aspergindo a voz da maldição
(a nossa e a do mundo)
na trémula incerteza de si mesma.

Adoradores de fé qualquer (terrena
ou transcendente) que tudo abarque
e salve e concilie:
não quebreis o encanto com tais nuvens
ou torturas de ardor e entendimento;
não procureis a lápide das dúvidas
colhidas em estações de desalento;
não vos afasteis do vosso rumo
de confiante e pendular porfia.

Não vos deixeis – ó crentes, cujo rosto
tem a candura de um áureo chamamento –
cair na tentação da poesia!


Que formalismo

De lamber as palavras como se
rasas de silêncio elas fingissem
e não se trucidassem contra o vento
e não voassem fundo
e não ferissem?

De afagar as palavras como se
um aguçado arame não
nos arranhasse
e não despisse em nós
a veste que se cola,
a casca da aparência?

De alisar as palavras como se
não fosse duro e fundo
o solo de onde partiram
e o lancinante grito
que lá mora?

É sempre um homem que
por elas fala,
é sempre um coração
que aí adeja!

In Quarteto para as próximas chuvas, Lisboa: D. Quixote, 2008.

João Rui de Sousa, nasceu em 1928, em Lisboa. É poeta, ensaísta e pesquisador. Trabalhou na área de espólios literários da Biblioteca Nacional (de Portugal). Este belo livro chegou a mim pela via das fraternas sociabilidades poéticas nascidas na rede, confirmadas por experiências de pessoas em carne e osso. Estou muito grato.

Espero, rara leitora, que aprecie estes poemas vindos da outra margem deste Atlântico que nos une a Portugal.


Este e outros livros do autor:
Editora Dom Quixote
www.dquixote.pt

Para saber mais:

Resenha de Quarteto para as próximas chuvas, por Fernando J. B. Martinho, na Revista Colóquio/Letras:
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/news?i=15

domingo, 17 de agosto de 2008

Waly Salomão (1943-2003) – A saudade e a lição do poeta


(...)

JMJ - Você disse em certo texto que “saudade” era uma palavra a ser banida do dicionário. Que tipo de relação você mantém com o passado?

WALY – Eu acho que não há uma simbiose assim tão perfeita entre o poeta e a pessoa. Marcel Proust já falava isso. Quer dizer, o escritor é diferente do ser social. No momento em que se está escrevendo, o que move a pessoa a escrever é diferente da vida corriqueira. É como se o escritor fosse uma construção.

Por exemplo, quando você me diz isso da saudade, é também um sentimento de Waly e do poeta. Afinal de contas, eu não tenho essa vida assim tão separada da poesia. Mas me assombrou o termo “banido”, porque aí se vê o um lado terrorista, quase de explosão, como um sentimento.

Há dezenas de pessoas que falam que a palavra da língua portuguesa que não existe em outras línguas é “saudade”. Quer dizer, então, que eu quis realmente dinamitá-la Por isso eu estou me chamando de terrorista. Dinamitar um sentimento do senso comum tão estabelecido que chega até às raias da mitologia. As pessoas falam como se nenhuma outra língua tivesse uma palavra que exprimisse essa sensação. O que está longe de ser verdade, é uma grande mentira.

Muitas outras línguas têm palavras que expressam uma sensação semelhante ao conjunto de sensações englobadas pela palavra “saudade”. Isso não é próprio do português, nem do brasileiro. Então, para que ficar amarrando a nossa burra, a nossa bula, o nosso cavalo nesse mourão da saudade portuguesa? Temos que inventar a mistura que deu no Brasil. Temos que inventar outras saídas bastante originais, fortes e enérgicas para o mundo.

JMJ – Quando você fala, Waly, dá a impressão de que aí tem uma divisão.

WALY – (risos) Eu falo por entre as divisões, eu acho. É nos interstícios delas, é nas frestas delas. Mas, principalmente, eu sinto por entre. Primeiro que eu já começo no meio das coisas, não é? E, de repente, afasto umas divisões e me aproximo de outras.

O poema em que fala em saudade não por acaso se chama “Ars poética, operação limpeza”. E a epígrafe que eu uso nele é de um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos, Sá de Miranda: “assim me tem repartido/ extremos que não entendo”.

A epígrafe já mostra essa divisão, mostra um poeta que se sente doloridamente dividido por extremos, não pelo mediano. Um poeta que nem entende esses extremos que ele é. Mas o que digo que abomino na palavra “saudade” é a meleira, que eu chamo no poema de “enxurro”. (...)

(...)

JMJ – O “paraíso artificial” de Waly é espreguiçar nos braços dos livros?

WALY – É, nisso eu cumpro o verso de Castro Alves que diz “Livros à mancheia”. O que não dá na contracultura ou no movimento hippie é esse culto à ignorância. Eu preciso ler, ler, ler... É como se não me bastasse, como se não tivesse ponto terminal. O meu veículo, o meu ônibus, não tem ponto terminal. Então, estou sempre atrás de novas camadas de leituras, de interpretações do mundo, pois não há uma interpretação finalista do mundo. Eu estou sempre em movimento, buscando novas significações, novos sinais. Eu acho que é assim que o homem tem que ser.

(...)

JMJ – Como Waly vê o autor na divulgação de sua obra? O autor como “marketeiro” de si mesmo?

WALY – O livro está pronto, lavo as minhas mãos. Eu acho que quando se está fazendo um poema não se é um mercador, pois o poema está sendo desdobrado na sua inteireza, na sua pureza, na sua autonomia em relação ao real. Mas, depois do livro pronto, aí já é um objeto, é uma mercadoria no balcão em meio a tantas outras mercadorias. Então, propugno que o autor – e é o que eu faço, ou tento fazer – arregace as mangas e vá vender seu peixe como uma mercadoria como outra qualquer. Isso não o desmerece.
(...)

JMJ – Como fica o “poeta-divulgador” diante dos meios de comunicação de massa, diante da indústria cultural?

WALY – Claro que não vai ter o mesmo aparato mercadológico, competitivo, de um livro de um Paulo Coelho, ou de um livro de um Jorge Amado, de um Umberto Eco. Apesar de tudo, eu acho uma grande alegria, tenho um grande contentamento quando uma pessoa traz um livro meu e pede um autógrafo.

O Jornal do Brasil publicou a resenha do meu livro agora no início de junho. Isso foi muito bom. Eu sou “milionário de contradições”, na expressão maravilhosa de Oswald de Andrade, porque eu mesmo, quando vejo aquela fila enorme que tem tido nos meus lançamentos, fico penetrado de uma sensação de que a pessoa que despendeu 12 ou 15 reais para comprar meu livro vai se decepcionar. Então é muito gratificante. As pessoas que vêem o livro tiram esse ou aquele cabaço da cabeça. Então, eu vejo que a poesia tem essa função ativa no mundo também.

Entrevista concedida a José de Mello Junior (junho de 1996), in Livro Aberto, ano I, nº 1, S. Paulo, agosto de 1996, p. 14-19.

Na busca de recuperar e recolocar em circulação certos textos que ficaram preservados, mas talvez “sepultados” em impressos esgotados, rara leitora, oferecemos excertos de uma entrevista concedida pelo poeta, músico e letrista Waly Salomão, que certamente irá contribuir para nossas discussões e reflexões sobre o ler, escrever e publicar.

Waly Salomão, autor de sucessos inesquecíveis da música popular brasileira, teve uma breve, mas marcante, experiência no Ministério da Cultura, como Secretário Nacional do Livro e da Leitura, no início do primeiro governo de Lula e da gestão do ministro Gilberto Gil, de quem era amigo pessoal. Faleceu pouco tempo depois de ter tomado posse, deixando projetos inacabados e perplexos e tristes muitos de nós, seus admiradores. A seguir, abriu-se um conturbado período na área que dirigira no Ministério da Cultura, que lamentavelmente demorou a se encerrar.

Para saber mais sobre a vida e a obra de Waly Salomão:

Uol Música:
http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/waly-salomao.asp

Jornal de Poesia:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/wsalomao.html#heloisa

Jornal Poesia Viva:
http://www.uape.com.br/poesiaViva24/poesia_wally.htm#alto

Nicolau Sevcenko, O vampiro de polpa ou confissões de um leitor compulsivo (conclusão)

(...)
Um travo persistente ficou, no entanto, da minha infância mergulhada nos livros. Todos os adultos costumavam se referir, com freqüência, a um diário que meu avô sempre trazia consigo e anotava sem parar. Explicavam que era uma espécie de caderno, com capa de couro preto e detalhes dourados. Procurei sem cessar esse livro misterioso, mas não o encontrava nunca.

Sondei os livros que ficaram de posse dos meus tios e tias., igualmente sem sucesso. O que em particular me excitava nessa busca era encontrar detalhes de uma vida cheia de experiências, as mais extraordinárias.

Nas suas atribuições militares, meu avô lutou na Primeira Guerra, na Revolução e na Guerra Civil. Por isso mesmo é que ele acabou desencadeando o destino sinistro e o exílio da nossa família.

Os detalhes de como isso tudo se deu eram obscuros e os adultos se recusavam terminantemente a evocar e relatar experiências que os marcaram com intensidade traumática. Como conseqüência, meu sentido de origem e minha própria identidade ficavam perturbadoramente turvados. Só o diário, e com ele as devidas explicações, é que poderia trazer paz ao meu espírito.

Aconteceu então, há três anos atrás, de falecer um vizinho nosso, o senhor Vitalin, membro da comunidade, que viera como refugiado com meu avô, de quem era amigo dileto. Ele também deixou uma grande coleção de livros como legado, de que a família queria se desfazer. O que me chamou a atenção e me deixou excitado. A agitação aumentou muito quando me falaram que ele costumava trocar livros com meu avô e, na verdade, havia ficado com boa parte da sua coleção. Uau! O coração bateu forte, será que...? Corri para lá.

Me puz a percorrer os livros com as mãos tremendo. O mesmo padrão da coleção do meu avô: livros antigos, encapados, várias origens, muitas línguas diferentes. Até que, sim, eureka!

Lá estava o diário, exatamente como havia sido descrito, todo anotado com a letrinha miúda e elegante, que eu identificava com a dos manuscritos de meu avô. Levei-o para casa, um enorme esforço de decifração e um desconsolo frustrante. Como havia estudando durante algum tempo num velho mosteiro ortodoxo, nas estepes geladas da Carélia e desejando com certeza garantir a privacidade de seu diário, ele escrevera suas notas em eslavônico antigo.

Essa era uma língua morta, usada apenas pela Igreja Ortodoxa, tornada literária pelos bispos Cirilo e Metódio no século 9º e praticamente abolida após a Revolução. O diário enfim existia, mas era ilegível. O que tornou ainda mais exasperante meu tormento.

Tanto amolei e insisti com o padre da nossa paróquia, até que ele conseguiu me localizar um ancião ainda capaz de ler naquela língua extinta. Ele me apresentou o senhor Gabril, a quem pedi a benção, beijei-lhe a mão e estendi o livro. Ajustando um grosso par de óculos com as mãos trêmulas, quase tanto quanto as minhas, ele examinou longamente o volume no mais absoluto silêncio.

Folheava e lia, para frente e para trás, demorando-se longamente com o dedo a correr sobre as páginas amareladas. Depois de horas, quando minha paciência já estava ensaiando um colapso, ele se pronunciou: “São livros!”

Confuso, perguntei o que ele queria dizer com aquilo. O senhor Gabril explicou então calmamente. “São comentários sobre livros sagrados, pensamentos sobre os mistérios da Igreja e da alma, tal como estabelecidos pelos mestre da Santa Fé Ortodoxa”.

Passada a decepção inicial, fui desde então adquirindo uma tranqüilidade há muito ansiada. Afinal, a orientação que meu avô dera ao curso de suas ações foi fruto de convicções adquiridas na prática persistente da leitura. Se eu quisesse conhecê-lo, deveria ser através de seus livros. Assim também minhas origens, minha identidade e meu destino, repousavam naquela tradição escrita que eu, na minha vida, ampliei, multipliquei e diversifiquei com meu próprio repertório de leituras.

O nexo com meus ancestrais ficou assim reestabelecido pela cadeia dos livros. Quando criança, eu usava os livros em pilhas para construir castelo. Agora eu sinto que moro dentro de suas páginas.


Nicolau Sevcenko, “O vampiro de polpa ou confissões de um leitor compulsivo”, in Livro Aberto, ano I, nº 1, S. Paulo, agosto 1996, p. 22-23.

[Leia a primeira parte do texto, neste blog, na postagem do dia 2/8/2008]

Raro leitor, Henrique Chaudon, poeta de Confissões a Baco, aqui está a segunda parte do artigo de Sevcenko, atendendo a seu interesse de leitura. Admiro muito o autor, um historiador brasileiro que tem oferecido excelentes contribuições bibliográficas ao país, como pesquisador da sua cultura. Quem sabe, em sua próxima visita à livraria, ao sebo ou à biblioteca, irá encontrar alguma de suas obras. Vale a pena conferir. Obrigado pela sua participação no blog, sempre enriquecedora.

sábado, 16 de agosto de 2008

Cora Coralina (1889-1985): poemas de formação

“Autobiografia”

Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

(...)

Numa ânsia de vida eu abria
o vôo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia
caída e a república
que se instalava.

(...)

Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.

Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.

Sendo eu mais doméstica do
que intelectual.
Não escrevo jamais de forma
consciente e raciocinada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a consciência de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contramarcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira
do que escritora, sendo a Arte culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que estão ligadas a vida e
a saúde humana.

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.

Sobrevivi, me recompondo aos bocados,
à dura compressão dos
rígidos preconceitos do passado.

(...)

A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.

Foi assim que cheguei a este livro
sem referências a mencionar.

Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem menção honrosa.
Nenhuma láurea.

Apenas a autenticidade de minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.
(...)

In Meu livro de cordel. Poemas e crônicas. 1ª. ed. Goiânia (GO): P. D. Araújo – Livraria e Editora Cultura Goiana, 1976, 11-13.


Nasci antes do tempo

Tudo o que criei ou defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por quê?

Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
fulano nasceu antes do tempo.
Guardei.

Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou:
você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.


Mestra Silvina

Vesti a memória com meu mandrião balão.
Centrei nas mãos meu vintém de cobre.
Oferta de uma infância pobre, inconsciente, ingênua,
revivida nestas páginas.

Minha escola primária, fostes meu ponto de partida,
dei voltas ao mundo.
Criei meus mundos...
Minha escola primária. Minha memória reverencia minha velha Mestra.
Nas minhas festivas noites de autógrafos, minhas colunas de jornais
e livros, está sempre presente minha escola primária.
Eu era menina do banco das mais atrasadas.

Minha escola primária...
Eu era um casulo feio, informe, inexpressivo.
E ela me refez, me desencantou.
Abriu pela paciência e didática da velha mestra,
cinqüentanos mais do que eu, o meu entendimento ocluso.

A escola da Mestra Silvina...
Tão pobre ela. Tão pobre a escola...
Sua pobreza encerrava uma luz que ninguém via.
Tantos anos já corridos...
Tantas voltas deu-me a vida...

No brilho de minhas noites de autógrafos,
luzes, mocidade e flores à minha volta, bruscamente a mutação se faz.
Cala o microfone, a voz da saudação.

Peça a peça se decompõe a cena,
retirados os painéis, o quadro se refaz,
tão pungente, diferente.

Toda pobreza da minha velha escola
se impõe e a mestra é iluminada de uma nova dimensão.

Estão presentes nos seus bancos
seus livros desusados, suas lousas que ninguém mais vê,
meus colegas relembrados.
Queira ou não, vejo-me tão pequena, no banco das atrasadas.

E volto a ser Aninha,
aquela em que ninguém
acreditava.

Meu epitáfio

Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.

In Cora Coralina. Melhores poemas. 2ª. ed., rev. e ampl. Seleção de Darcy França Denófrio. S. Paulo: Global, 2004.

Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto, surgiu para o mundo literário nacional em 1980 "pelas mãos" de Carlos Drummond de Andrade quando a apresentou no Jornal do Brasil como “mulher extraordinária, diamante goiano, cintilando na solidão, e que pode ser contemplado, em sua pureza no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, que definiu como um livro “comovedor”. Nessa época já contava Cora Coralina mais de 90 anos de idade. Teve um reconhecimento tardio.

Para conhecer mais da sua obra, dentre outros, há o estudo de Darcy França Denógrio, professora da Universidade Federal de Goiás, responsável pela seleção dos seus Melhores poemas, volume editado pela Global, no qual incluiu o ensaio “Cora dos Goiases”.

Os poemas que ora lhe apresentamos, rara leitora, podem ser testemunho, na sua "autenticidade", de uma formação singular nas artes da escrita no Brasil, fora de seus centros, quando da passagem do século XIX para o XX, na sua modernidade inacabada. Para sempre inacabada.

Para saber mais:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Instituto del Libro y la Lectura AC (ILLAC), do México

É com satisfação que lhe fazemos um convite, raro leitor, para conhecer o sítio do Instituto del Libro y la Lectura AC (ILLAC), do México, que tem como bandeira: “Por el desarrollo de las ciencias y artes del libro” e como principal objetivo: “realizar y fomentar la investigación, la docencia y la difusión en materia de las ciencias del libro y de los procesos y hábitos de lectura”.

Sugiro, dentre outras, a leitura de “Leer o no leer, esa es la cuestión”, artigo postado recentemente por Vilma Fuentes. Dele extraímos este breve excerto:

“(...) Ser leído es el sueño del escritor. Una de las metas. Tal vez parezca en desuso este anhelo, pues ahora no se desea tanto ser leído como vender el producto denominado libro, así quien lo compre arroje el libro a un estante entelerañado en un desván –o directamente a un basurero. En la actualidad, después de conseguir un editor, una legión de llamados escritores porque publican una o dos centenas de páginas parece querer, ante todo, ser célebre, ver su imagen y ser visto por los otros, los miles de espectadores, más o menos pasivos, que encienden el aparato televisivo porque no saben qué hacer o porque la tele los deja descansar, no los hace pensar. Venta y/o celebridad: ¿es eso un escritor? (...)”

Acesse,
para ler este texto completo:
http://www.illac.com.mx/profiles/blog/show?id=2062895%3ABlogPost%3A453

para conhecer a página inicial do ILLAC:
http://www.illac.com.mx/

Para conhecer a página pessoal deste blogueiro no ILLAC (em que poderá fazer deixar registros ou comentários):
http://www.illac.com.mx/profile/AnibalBraganca

Segundo Colóquio Internacional sobre Letramento e Cultura Escrita

Estes dias, rara leitora, pude desfrutar do convívio de colegas que, como eu, foram convidados para fazer palestras ou conferências nesse importante Colóquio realizado em Belo Horizonte, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, promovido pelo CEALE/UFMG e Programas de Pós-grduação em Educação da FaE/UFMG, Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ/MG) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), ocorrido entre 11 e 13 de agosto de 2008.

Na primeira mesa-redonda da programação “Alfabetização, tecnologias da comunicação e formação da cultura letrada”, coordenada por Cecília M. A. Goulart, da FE/UFF, fizemos nossa breve palestra sobre Tecnologias da Comunicação e Formação da Cultura Letrada, após Isabel Frade, do CEALE/FaE/UFMG, apresentar os bons resultados de sua pesquisa em andamento sobre alfabetização em Minas Gerais.

Foi um privilégio estar ao lado de importantes pesquisadores da Cultura Escrita no Brasil e no Exterior, como Francisca Maciel, diretora do CEALE, Marildes Marinho, coordenadora geral do Colóquio, Célia Abcalil Belmiro, ambas da UFMG, Maria do Socorro A. N. Macedo (UFSJ), Gunter Kress (Universidade de Londres), Judith Kalman (CINVESTAV/México), Glória H. Flores (UNAM/México), Brian Street (Universidade de Londres), dentre outros.

O enriquecimento acadêmico, de valor inestimável, e o cultivo da fraterna amizade foram marcas desses dias que me afastaram deste convívio virtual, que retomo agora, agradecendo os últimos comentários que contribuem sempre para dar sentido às postagens aqui lançadas em busca do raro leitor, amigo em leituras, livros, escrituras, sebos e outras livrarias, editoras, bibliotecas...


Para saber mais sobre o CEALE, acesse:
www.fae.ufmg.br/ceale

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Arte poética, de Pedro Oscar Godínez, ou o verbo se fez carne

si mi poesía no sirve
nada valgo yo
si mis poemas no logran dar en el blanco/ de outra vida
en el tiro de mi existencia está el error
de cuarenta años
si mis versos no funcionam
es sin dudas mi mecanismo/ el que anda mal
mi poesía y yo somos consubstanciales

yo es ella
o lo que es lo mismo/ ella es yo

así que forzosamente habrá de hacerse lugar bajo el vasto azul
o dejarme libre el camino hacia el no-ser
por eso
antes de cerrarle la puerta a este poema
afina bien la receptora mirada
si fallaras en tu voto secreto/ entre un sí lisonjero
y un no inquisitivo

piensa que estarías condenando al retrete
algo más que una simples hoja de papel

la vida entera de un hombre

todo su amor.

8 de marzo de 1988

In Letras Cubanas, 16, oct.-dic./1990, Habana, Cuba, p. 54-55.


Creio que não terei lido um texto que mais explicitamente expresse a encarnação da letra no corpo, de que fala Michel de Certeau, no seu A invenção do cotidiano, 1994, Editora Vozes, mais especificamente em seu capítulo X: "A economia escriturística", do qual recolho meio aleatoriamente esta citação:

"O texto impresso remete a tudo aquilo que se imprime sobre o nosso corpo, marca-o (com ferro em brasa) com o Nome e com a Lei, altera-o enfim com um chamado, um nomeado. A cena livresca representa a experiência, tanto social como amorosa, de ser o escrito daquilo que não se pode identificar: 'Meu corpo será apenas o texto que tu escreves sobre ele, significante indecifrável para qualquer outro que não tu. Mas o que és tu, Lei, que mudas o corpo em teu sinal?' O sofrimento de ser escrito pela lei do grupo vem estranhamente acompanhado por um prazer, o de ser reconhecido (mas não se sabe por quem), de se tornar uma palavra identificável e legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de um texto anônimo, de ser inscrito numa simbólica sem dono e sem autor."

Este é um breve registro em homenagem ao povo cubano e sua literatura. E a minha querida amiga SB, que, ao regressar de lá, me regalou com um exemplar dessa revista da “nova literatura” do país que já encantou a minha geração.

Que diz deste poema, rara leitora, em que “o verbo se fez carne” ou “o corpo se fez texto”?

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Deonísio da Silva: Doutores sem livros

Há vários lustros, para não dizer décadas, o livro vem deixando de ser referência solar nas universidades. Dois problemas se agigantam: os acervos das bibliotecas estão desatualizados e os autores são esquartejados, incessantemente em máquinas que copiam fragmentos esparsos que os alunos lêem apenas para atender a chamada bibliografia mínima indicada pelos professores.

Ilhas de exceção, denominados centros de excelência em classificação oficial, compoõem um vasto arquipélago, entretanto ainda sem a influência que dele se espera nesta fase de reorganização que o Brasil vive, assolado por tantas reformas.

Refletia sobre o tema quando recebi pela internet um sinal dos tempos. Poemas de alta qualidade, selecionados do que de melhor os poetas escreveram, recitandos sob fundo musical dos mais apropriados. A internet está oferecendo caminhos novos para o livro. (Um deles:
www.plataforma.paraapoesia.nom.br).

Logo na abertura do portal, talvez porque os autores foram postos em ordem alfabética, encontrei estes versos de Alberto Cunha Melo, extraídos de Dois Caminhos e um Oração (editora A Girafa), seu livro mais recente, na voz delicada e bonita de Cláudia Cordeiro Reis: “Escrevemos cada vez mais para um mundo cada vez menos,/para esse público dos ermos, compostos apenas de nós mesmos./uns joões batistas a pregar para as dobras de suas túnicas, seu deserto particular”.

No Brasil, é assim: nem bem você se entristece com um problema, alegra-se em seguida com a possibilidade de solução. Contente por encontrá-la, enfrenta entraves que parecem outras vez instransponíveis. Talvez seja esta uma das causas fundamentais da conhecida oscilação de humor nacional. Não é necessário muito tempo para o brasileiro passar da euforia mais escandalosa à mais desalodora depressão.
(...)

Este é um excerto do artigo de Deonísio da Silva publicado em 3/02/2004 no Jornal do Brasil, p. A9, que reencontro em recorte entre os bons achados da nova tentativa que faço de rearrumar os livros e papéis no meu escritório doméstico, depois da compra de mais uma estante. Pode contribuir, rara leitora, para nossas reflexões recentes sobre escrita, leitura e autores sem livros?

Leia o texto completo em Trilhas Literárias:
http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/tdeo_plata.htm
Onde poderá encontrar informações sobre o professor, ensaísta, romancista e cronista Deonísio Silva, autor de uma obra admirável e palestrante que seduz com sua erudição e bom humor. Dirige o Instituto da Palavra, da Universidade Estácio de Sá (no Rio de Janeiro).

Leia também o que escreveu Deonísio da Silva sobre o livro Crônicas do rádio nos tempos áureos da Mayrink Veiga, de Luís Antônio Pimentel, 2004:
“Era do rádio: a voz dos fantasmas”, publicado no Observatório da Imprensa. Acesse:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=295AZL003

domingo, 3 de agosto de 2008

Graham Greene, Sebos

Não sei como Freud os teria interpretado, mas por mais de trinta anos os meus melhores sonhos têm sido com os sebos: sebos antes desconhecidos para mim, ou sebos familiares, os quais estou visitando novamente. São estes últimos, os familiares, que certamente não existiram nunca: cheguei com relutância a esta conclusão. Tenho lembranças nítidas de um sebo não distante da Gare du Nord, em Paris, no fim de um comprida rua que sobe um morro, uma loja funda, com prateleiras altas (tive de usar uma escada para chegar ao alto delas).

Em duas ocasiões, pelo menos, vasculhei essas prateleiras (foi ali que eu sonhei que comprava a tradução de Funny Hill por Apollinaire), mas quando a guerra acabou, procurei esse sebo em vão. É claro, a loja poderia ter desaparecido, mas nem mesmo a rua existia. E havia uma outra loja, em Londres, que surgia com freqüência nos meus sonhos; lembro-me claramente de sua fachada, mas não do seu interior. Ficava em algum ponto da região por trás de Charlotte Street, antes de se chegar a Euston Road. Nunca entrei nesse sebo. Sempre acordava desses sonhos com um sentimento de felicidade e expectativa.

Durante vários períodos de minha vida mantive um diário dos meus sonhos, e as minhas anotações para este ano (1972) mostram, nos sete primeiros meses, seis sonhos com sebos. Curiosamente, pela primeira vez não foi um sonho agradável, talvez porque a companhia amada, com quem eu costumava percorrer as livrarias, e com quem comecei a organizar, logo depois da guerra, uma coleção de romances policiais vitorianos, tivesse morrido em fins de 1971.

Assim, nos sonhos deste ano, um velho livro sobre estradas de ferro, que eu estava planejando oferecer ao meu amigo John Sutro como presente de Natal (ele havia fundado o Clube Ferroviário em Oxford), quando eu o retirava da prateleira, tinha perdido metade da capa: até mesmo os velhos exemplares com capa vermelha, da coleção Nelson (tão inexplicavelmente criticados por George Orwell, mas que adoro ter quando as primeiras edições são demasiado caras) acabavam sendo, todos eles, exemplares mutilados. Nada, em todos esses sonhos, parece ter qualidade suficientemente boa para ser comprado.

As recordações de meu amigo David Low como livreiro estimularam os meus pensamentos para que vagassem, não só em relação aos sonhos, mas também às pequenas aventuras e amizades de cinqüenta anos de freqüência às livrarias. (Aos dezessete anos, comecei a freqüentar Charing Cross Road, onde hoje, infelizmente, poucas vezes me dou ao trabalho de ir).

Os vendedores de livros usados estão entre os mais cordiais e mais excêntricos que já conheci. Se eu não fosse escritor, essa teria sido a profissão que eu teria maior prazer em exercer.

Há o cheiro de mofo dos livros, e há a sensação de caça ao tesouro. Por isso prefiro as livrarias mal organizadas, onde a Topografia está misturada com a Astronomia, e a Teologia com a Geologia, e montes de livros não identificados enchem a escada para uma sala com a indicação de viagem, que bem pode conter um dos meus Conan Doyles favoritos, O Mundo Perdido, ou A Tragédia do Korosko. (...)

Para entrar de maneira adequada nesse mundo mágico do acaso e da aventura, é preciso ser um colecionador ou, então, um livreiro. Eu teria preferido ser livreiro, mas perdi a oportunidade durante a guerra. (...) Cole, que na época era um “procurador” de livros para terceiros (...) levou-me certa vez para conhecer seu quarto, e lembro-me dos livros velhos empilhados por toda parte, até mesmo debaixo da cama, e concordamos que, se sobrevivêssemos ambos à guerra, abriríamos um livraria juntos. Fui para a África Ocidental com um emprego diferente, e perdemos contato. Eu havia perdido a minha única oportunidade vir a ser proprietário de um sebo.

Tornar-se colecionador é mais fácil. Não importa o que se coleciona, o importante é começar. É a excitação da caça, as personagens que encontramos, os amigos que fazemos. Quando eu era adolescente, tinha a minha primeira sensação de colecionador ao comprar livros sobre a exploração da Antártida – o Ártico não me interessava. (...)

Continuo colecionado romances policiais vitorianos: muitos deles encontrei na década de 1940 na livraria Foyle’s, a meia coroa cada, muito embora John Carter tivesse dez anos antes, produzido seu famoso catálogo Scribner’s, que deveria ter despertado o interesse de colecionadores por toda parte.

Para o colecionador, o valor de uma coleção está menos em sua importância do que na excitação da caça, e aos estranhos lugares a que ela por vezes leva. Muito recentemente, com meu irmão Hugh, cuja coleção de romances policiais vai desde a época vitoriana até 1914, de modo que geralmente saíamos os dois à caça, eu fui, debaixo de uma chuva torrencial, aos subúrbios de Leeds, uma área decadente, que poderia ter sido parte de um documentário de Grierson sobre a depressão.

A livraria que procurávamos tinha sido incluída num catálogo sério, mas nele acreditávamos cada vez menos, quanto mais nos molhávamos, entre fábricas abandonadas. Mas quando chegamos, era fora de dúvida que a livraria tinha existido, pois havia uma tabuleta com os dizeres “...vraria” sobre uma porta fora do lugar, todas as janelas estavam quebradas e o chão estava misteriosamente cheio de livros infantis e sapatos, sapatos bons, além disso. (...) Cenas como esta, e a descoberta de novos bares e de cervejas que não conhecíamos, são algumas das recompensas do rato de livraria. (...)

Gostaria que David Low tivesse incluído um obituário das mortes causadas por bombas ou pelas novas construções. Desapareceu, por exemplo, o sebo que eu amava em Westbourne Grove, e desapareceu a pequena livraria no ponto triangular em frente à estaça de King’s Cross, onde comprei The Adventures e The Memories of Sherlock Holmes, em suas primeiras edições, pelo então preço exorbitante de cinco libras. É esse o lado triste da caça aos livros, pois é maior o número de livrarias que fecham do que de livrarias que abrem. (...)


Graham Greene, Introdução a With All Faults, de David Low, 1973, in Reflexões, Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 278-282.


Este texto, raro leitor, mostra obviamente as aproximações possíveis das funções do escritor com as experiências do leitor e do livreiro. Aqui a alternativa não se coloca entre o ser escritor ou ser leitor, mas entre ser escritor ou ser livreiro. O mundo do livro é cheio de veias e vielas que ligam todos os seus personagens e seus agentes. O mundo dos sebos é talvez ainda mais rico, pelo que envolve de ambiente de caça, colecionismo, generosidade e cupidez, bem explorados nos romances policiais de John Dunning, editados aqui pela Cia. das Letras, em especial no Edições perigosas. Se quiser conhecer outro tipo de abordagem, mais acadêmico, recomendo que leia o trabalho O consumidor de livros de segunda mão. Perfil do cliente dos sebos, disponível em http://www.escritoriodolivro.org.br/leitura/anibal.html .

Graham Greene é um de meus escritores preferidos. Dentre outros, seu Coração da matéria tocou-me profundamente. Li-o em edição da hoje extinta Gráfica Record, cujos exemplares se podem encontrar no Estante Virtual até por 5 reais!

É pena que o interesse pela obra de Greene tenha decaído, especialmente após seu falecimento em 1991. Outro livro seu inesquecível é O poder e a glória, ambientado na revolução mexicana, que li numa tradução de Mário Quintana publicada pela Globo, de 1959.

A releitura deste texto de Greene me trouxe à memória, com alegria, o filme “Nunca te vi... sempre te amei”, baseado no livro de Helene Hanff, 84 Charing Cross Road, editado no Brasil pela Casa Maria & LTC, em 1988, sobre a relação entre a jovem escritora (Anne Bancroft) e um livreiro (Anthony Hopkins) cuja loja se situava na famosa rua citada por Greene.

Se gosta de livros, especialmente, de edições antigas, rara leitora, certamente gostará de ver este belo filme. Pegue-o numa videolocadora e aproveite.

Para saber mais sobre Graham Greene e talvez se animar a ler suas obras:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Graham_Greene
http://en.wikipedia.org/wiki/Graham_Greene (em inglês)

sábado, 2 de agosto de 2008

Graça Cretton, Os passos da paixão





















A fala e o corpo

Porque ainda não te amei
com o amor do corpo,
eu escrevo, eu falo.

Falo até demais,
mas, se me tocares,
te prometo: eu calo.

Já te escrevi um conto,
dez poemas,
estes versos traço,

Porque és único!
mas juro que este é o último
que te faço.

Brinco com as línguas,
rimo, faço graça,
crio meus compassos.

Misturo meus versos
às tuas palavras,
falas entrelaço.

É este o meu jeito
de sonhar que estamos
confundindo os traços.

E acasalados
nossos versos crescem
ficam fortes os laços.

Tecendo a manhã
que nem João Cabral,
Penélope de fato.

Quantas trovas
terei de fazer
pra merecer um abraço?

Apressemo-nos,
que a vida é breve
e o tempo anda escasso.

No limite
entre a fala e o corpo,
habita o falo.




Princesa

Passei tempo adormecida,
bela princesa encantada,
agora fico acordada.

Vou tecendo meus poemas
e acho que vale a pena
levar deste jeito a vida.

De tanto fazer poesia
me tornei mestre em poética,
assim deixei de ser cética.

Após a explosão trágica,
brota a emoção lírica
na escritura mágica.

Um dia fui paralítica,
hoje não sou mais dramática,
tenho orgulho de mim mesma.


Orquídea

Estava o livro pronto
dentro de mim,
bastava polir as pedras
do jardim.

Que violetas e dálias
de mil cores
brotam da alma lavada
pelas dores?

Delicadas são as pétalas
entre as coxas,
vislumbro uma orquídea rara
amarela e roxa.

E tão persistente exala
aroma de sua boca
que o pássaro se cala
e ela fala.


In-verso

João Cabral aconselha
do feijão tirar a pedra,
não do poema.

Comigo deu-se o inverso:
jogando fora os pregos,
fiz o verso.

Conservei algumas pedras,
o resto são flores
e amores.

Pois expelidos os ferros,
flui mavioso jardim
de mim.

Herança

De Cecília
herdo o tom
e a rima.

De Cabral
pedra seca,
o quarteto.

De meu pai
todo o tempo
o exemplo.

De mamãe
os segredos
e os medos.

Que herdo
de mim mesma?
Que herança deixo?

De mim herdo o passado
no presente.

A poesia – seixo –
lanço à corrente
do futuro.

In Os passos da Paixão e outros poemas. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2006. Na capa, detalhe de “O beijo”, de Gustav Limt. Prefácio de Roberto Acízelo de Souza. 86 p.
www.edicoesgalobranco.com.br

Graça Cretton, poeta, mestra e e doutora em Teoria Literária e Literatura Brasileira, fez trabalho memorável como professora no Instituto de Educação Prof. Ismael Coutinho, em Niterói, e, a seguir, na Faculdade de Letras da UFRJ, no Rio de Janeiro, a partir, respectivamente, da “Oficina Literária para alunos de 2º grau” e do “Laboratório de Criação Literária”.

Em muitos já terá despertado o prazer de ler e de escrever. Salve!

Nicolau Sevcenko, O vampiro de polpa ou confissões de um leitor compulsivo

Eu praticamente nasci no meio dos livros. Desde que me lembro, a vista que se descortinava à frente do meu berço era a de uma estante repleta. Meu avô tinha uma grande coleção de livros, muitos antigos, alguns modernos, quase todos com encadernação costurada e capa dura. Eles compunham uma grnde coleção, que foi se dispersando à medida que seus seis filhos se casavam, levando cada qual um lote de herança. Havia livros nas estantes, em baús e empilhados no porão da casa. Eu e meu irmão costumávamos brincar com eles, construindo castelos e fortes, que acabavam desmoronando no meio das batalhas.

Uma das minhas avós tinha uma outra coleção gigantesca, que se manteve completa por mais tempo e com a qual eu pude conviver em gozo de maior intimidade. Tanto esses como os do meu avô eram livros estranhos, em várias línguas e caracteres exóticos: russos, alemães, ingleses, lituanos, estonianos, poloneses, franceses, italianos, finlandeses, suecos, americanos, cadadenses, argentinos, brasileiros.

Formavam um repertório geográfico que indicava a trajetória errática da minha família de refugiados, morando um pouco em cada canto do mundo e fugindo cada vez que a história, em versões de tragéida, ameçava chegar-lhes outra vez aos calcanhares, ou melhor, aos pescoços. Sempre que partiam, arrastavam seus baús cheios de livros, a cada viagem mais numerosos.

De forma que, seja por força do hábito, pela atração da curiosidade ou por compulsão atávica, acabei desenvolvendo uma fixação descontrolada pelos livros. Não é que eu não consiga dormir sem antes ler, eu não durmo se não houver a imagem de uma estante cheia na minha frente. Em hotéis, uso o truque de pregar um pôster de estante de livros diante da cama.

Leio na sala, na cozinha, no banheiro. Não desgrudo do livro durante as três referições, enquanto escovo os dentes ou quando paro o carro num farol. Me tornei professor não porque li muitos livros, na verdade optei pela profissão sabendo que ela me forçaria a ler mais ainda. Detesto telefone, campainha ou passarinho porque me interrompem a leitura. Meu melhor presente foi quando meu amigo Roney me deu um livro todo plastificado – para que eu pudesse ler no chuveiro.

Não que a leitura seja um prazer! Todo mundo sabe a concentração desgastante e exaustiva que ela exige, proporcionando quanto muito uma satisfação oblíqua, que não contempla jamais as solicitações do corpo. A gratificação dos livros provém sobretudo de um expansão da imaginação e da experiência preciosa de se sentir aprendendo a manejar com autonomia os recursos da linguagem e do pensamento. O que ademais nos liberta das constrições das doutrinas e das idéias feitas, e não é pouco.

É essa sensação extra de liberdade, crescimento e autoconfiança que os livros transmitem, acrescentando cada nova geração com o melhor das experiências das anteriores e difundindo entre os leitores a coesão afetiva de compartilhar um fundo comum de sabedoria, respeito e generosidade.

É por isso, acredito eu, que os livros tendem a se tornar aditivos. A cada um que você lê, deseja outros e mais outros, sempre em doses crescentes em quantidade, concentração e duração do efeito.

Nesse sentido, o livro é, literalmente, uma droga. Benigna contudo, nos melhores casos. Daí a injustiça de se identificar os leitores obsessivos com ratos de biblioteca ou com corujas togadas.


Nem roedores nem rapinantes, os leitores compulsivos ficariam melhor retratados como vampiros de polpa, o que lhes reconheceria um resíduo de humanidade, ainda que sufocada pela maldição que os monstrifica e força a viver no pó e nas trevas, sob um pálido foco de luz. Mas cuidado! Como sua mordida contamina, transmitindo o mal, em caso de ele se aproximar, não hesite em afugentá-lo mostrando dois controles remotos sobrepostos em forma de cruz.
(...)

In revista Livro Aberto, S. Paulo: Editora Cone Sul, ano 1, nº 1, agosto/setembro de 1996, p. 22-23.

Dando continuidade à vã pretensão de resgatar textos importantes que ficaram “depositados” em impressos hoje pouco acessíveis, divulgamos hoje parte deste texto publicado no primeiro número da revista editada por José de Mello Junior, dedicada à 14ª Bienal Internacional do Livro, realizada em S. Paulo, de 13 a 25 de agosto de 1996. A revista, extinta depois de alguns excelentes números, deixou saudade.

A Bienal, entretanto, continua firme e terá sua 20ª edição nos próximos dias 14 a 24 deste mês, agora no Pavilhão de Exposições do Anhembi, na mesma São Paulo, cidade que a viu nascer. A realização é da Câmara Brasileira do Livro
www.cbl.org.br.

Saiba mais:
www.bienaldolivrosp.com.br

Ao trazer à circulação, agora no mundo virtual, este excerto de Nicolau Sevcenko, o que pode ser, creio, considerado um presente para o nosso raro leitor, também o registro é motivado pelo apreço que merece o historiador paulista, professor titular da Universidade de São Paulo, cuja obra é, por todos os sentidos, admirável. Certamento seu livro Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República, centrado na análise da obra e do tempo de Euclydes da Cunha e de Lima Barreto terá sido um dos mais inteligentes e bem escritos livros que tive o privilégio de ler nos últimos anos, ainda na primeira edição, da Brasiliense, de 1983. Sevcenko publicou outros livros, dos quais se devem destacar Orfeu Extático na Metrópole, 1992, Corrida para o século XXI, 2001, História da Vida Privada no Brasil, vol. 3, do qual foi co-organizador. Todos pela Cia. das Letras, que reeditou também o Literatura como missão.

Você, raro leitor, o que acha de ter acesso à segunda parte do texto acima?

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Hagar Espanha Gomes, O IBBD e os serviços bibliográficos brasileiros










Até 1954 faltava no Brasil uma organização bibliográfica mínima que fosse, ou mesmo uma coordenação. As atividades até então existentes ou não visavam um alcance nacional ou vicejavam em serviços inadequados ou existiam, ainda, como decorrência de ação pessoal de seus responsáveis. Apesar da existência de um órgão como a Biblioteca Nacional, enfrentava ela problemas internos que não lhe permitiam exercer o papel coordenador daquelas tarefas ou, mesmo, executor de outras.

O panorama, à época, reduzia-se, pois, 1) a existência de catálogos de periódicos em São Paulo, com caráter regional, criados que foram na década de 40, quando as dificuldades de obtenção de cópias nos Estados Unidos principalmente, eram agravadas pela guerra. Aquele Estado, pioneiro no movimento de revolução biblioteconômica, nunca almejou transformar-se em serviço nacional, talvez pelo fato de estar ligado a uma Universidade estadual. Se tivesse tentado, por certo seria vitorioso. (...)

In Fichero Bibliográfico Hispanoamericano, v. 12, septiembre 1973. Número especial: “El libro em Brasil”. Buenos Aires: Bowker Editores Argentina S.A., p. 24-28.

Para ler o texto completo, acesse:
http://picasaweb.google.com.br/anibalbraganca/OIBBDEOsServiOsBibliogrFicosBrasileirosHagarEspanhaGomes

O registro e a indicação que fazemos deste artigo de Hagar Espanha Gomes, presidente, à época, do hoje extinto Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), têm suas razões: a primeira é que se trata de texto relevante publicado em periódico estrangeiro, em papel, hoje certamente de difícil acesso, após mais de três décadas, o que nos fez pensar na pertinência de o recolocar em circulação, agora aproveitando os recursos do mundo virtual, visando a sua eventual utilidade para os pesquisadores da história da bibliografia e da ciência da informação brasileiras. Há, decerto, também interesse para os estudiosos da história do livro e das políticas públicas na área.

Em segundo lugar, mas não menos importante: fazer singela homenagem a uma das maiores bibliotecárias brasileiras, cuja trajetória profissional dignifica e eleva o campo da Bibliotecnomia e da Ciência da Informação no país, e que, com uma já longa e sólida folha de serviços prestados, na universidade e fora dela, continua atuante como consultora independente e como livre-docente, certamente como referência para todos os profissionais da área. Pessoalmente, meu respeito, minha admiração e minha estima por Hagar sempre estiveram no máximo patamar. Salve Hagar, a cujo estímulo e amizade devo muitas das melhores experiências que tive no início de minha carreira docente da UFF, na década de 1980!
Para saber mais sobre Hagar Espanha Gomes, acesse:
Biblioteconomia, Informação & Tecnologia da Informação
http://www.conexaorio.com/biti/index.htm

Entrevista Hagar Espanha Gomes a Lena Vania Pinheiro
http://dici.ibict.br/archive/00000170/