domingo, 17 de agosto de 2008

Waly Salomão (1943-2003) – A saudade e a lição do poeta


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JMJ - Você disse em certo texto que “saudade” era uma palavra a ser banida do dicionário. Que tipo de relação você mantém com o passado?

WALY – Eu acho que não há uma simbiose assim tão perfeita entre o poeta e a pessoa. Marcel Proust já falava isso. Quer dizer, o escritor é diferente do ser social. No momento em que se está escrevendo, o que move a pessoa a escrever é diferente da vida corriqueira. É como se o escritor fosse uma construção.

Por exemplo, quando você me diz isso da saudade, é também um sentimento de Waly e do poeta. Afinal de contas, eu não tenho essa vida assim tão separada da poesia. Mas me assombrou o termo “banido”, porque aí se vê o um lado terrorista, quase de explosão, como um sentimento.

Há dezenas de pessoas que falam que a palavra da língua portuguesa que não existe em outras línguas é “saudade”. Quer dizer, então, que eu quis realmente dinamitá-la Por isso eu estou me chamando de terrorista. Dinamitar um sentimento do senso comum tão estabelecido que chega até às raias da mitologia. As pessoas falam como se nenhuma outra língua tivesse uma palavra que exprimisse essa sensação. O que está longe de ser verdade, é uma grande mentira.

Muitas outras línguas têm palavras que expressam uma sensação semelhante ao conjunto de sensações englobadas pela palavra “saudade”. Isso não é próprio do português, nem do brasileiro. Então, para que ficar amarrando a nossa burra, a nossa bula, o nosso cavalo nesse mourão da saudade portuguesa? Temos que inventar a mistura que deu no Brasil. Temos que inventar outras saídas bastante originais, fortes e enérgicas para o mundo.

JMJ – Quando você fala, Waly, dá a impressão de que aí tem uma divisão.

WALY – (risos) Eu falo por entre as divisões, eu acho. É nos interstícios delas, é nas frestas delas. Mas, principalmente, eu sinto por entre. Primeiro que eu já começo no meio das coisas, não é? E, de repente, afasto umas divisões e me aproximo de outras.

O poema em que fala em saudade não por acaso se chama “Ars poética, operação limpeza”. E a epígrafe que eu uso nele é de um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos, Sá de Miranda: “assim me tem repartido/ extremos que não entendo”.

A epígrafe já mostra essa divisão, mostra um poeta que se sente doloridamente dividido por extremos, não pelo mediano. Um poeta que nem entende esses extremos que ele é. Mas o que digo que abomino na palavra “saudade” é a meleira, que eu chamo no poema de “enxurro”. (...)

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JMJ – O “paraíso artificial” de Waly é espreguiçar nos braços dos livros?

WALY – É, nisso eu cumpro o verso de Castro Alves que diz “Livros à mancheia”. O que não dá na contracultura ou no movimento hippie é esse culto à ignorância. Eu preciso ler, ler, ler... É como se não me bastasse, como se não tivesse ponto terminal. O meu veículo, o meu ônibus, não tem ponto terminal. Então, estou sempre atrás de novas camadas de leituras, de interpretações do mundo, pois não há uma interpretação finalista do mundo. Eu estou sempre em movimento, buscando novas significações, novos sinais. Eu acho que é assim que o homem tem que ser.

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JMJ – Como Waly vê o autor na divulgação de sua obra? O autor como “marketeiro” de si mesmo?

WALY – O livro está pronto, lavo as minhas mãos. Eu acho que quando se está fazendo um poema não se é um mercador, pois o poema está sendo desdobrado na sua inteireza, na sua pureza, na sua autonomia em relação ao real. Mas, depois do livro pronto, aí já é um objeto, é uma mercadoria no balcão em meio a tantas outras mercadorias. Então, propugno que o autor – e é o que eu faço, ou tento fazer – arregace as mangas e vá vender seu peixe como uma mercadoria como outra qualquer. Isso não o desmerece.
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JMJ – Como fica o “poeta-divulgador” diante dos meios de comunicação de massa, diante da indústria cultural?

WALY – Claro que não vai ter o mesmo aparato mercadológico, competitivo, de um livro de um Paulo Coelho, ou de um livro de um Jorge Amado, de um Umberto Eco. Apesar de tudo, eu acho uma grande alegria, tenho um grande contentamento quando uma pessoa traz um livro meu e pede um autógrafo.

O Jornal do Brasil publicou a resenha do meu livro agora no início de junho. Isso foi muito bom. Eu sou “milionário de contradições”, na expressão maravilhosa de Oswald de Andrade, porque eu mesmo, quando vejo aquela fila enorme que tem tido nos meus lançamentos, fico penetrado de uma sensação de que a pessoa que despendeu 12 ou 15 reais para comprar meu livro vai se decepcionar. Então é muito gratificante. As pessoas que vêem o livro tiram esse ou aquele cabaço da cabeça. Então, eu vejo que a poesia tem essa função ativa no mundo também.

Entrevista concedida a José de Mello Junior (junho de 1996), in Livro Aberto, ano I, nº 1, S. Paulo, agosto de 1996, p. 14-19.

Na busca de recuperar e recolocar em circulação certos textos que ficaram preservados, mas talvez “sepultados” em impressos esgotados, rara leitora, oferecemos excertos de uma entrevista concedida pelo poeta, músico e letrista Waly Salomão, que certamente irá contribuir para nossas discussões e reflexões sobre o ler, escrever e publicar.

Waly Salomão, autor de sucessos inesquecíveis da música popular brasileira, teve uma breve, mas marcante, experiência no Ministério da Cultura, como Secretário Nacional do Livro e da Leitura, no início do primeiro governo de Lula e da gestão do ministro Gilberto Gil, de quem era amigo pessoal. Faleceu pouco tempo depois de ter tomado posse, deixando projetos inacabados e perplexos e tristes muitos de nós, seus admiradores. A seguir, abriu-se um conturbado período na área que dirigira no Ministério da Cultura, que lamentavelmente demorou a se encerrar.

Para saber mais sobre a vida e a obra de Waly Salomão:

Uol Música:
http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/waly-salomao.asp

Jornal de Poesia:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/wsalomao.html#heloisa

Jornal Poesia Viva:
http://www.uape.com.br/poesiaViva24/poesia_wally.htm#alto

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