segunda-feira, 30 de abril de 2007

Herbert Marshall McLuhan (1911-1980) e a expressão total do ser


A aspiração de nosso tempo pela totalidade, pela empatia e pela conscientização profunda é um corolário natural da tecnologia elétrica. A idade da indústria mecânica que nos precedeu encontrou seu modo natural de expressão na afirmação veemente da perspectiva particular. Todas as culturas possuem seus modelos favoritos de percepção e conhecimento, que elas buscam aplicar a tudo e a todos. Uma das características de nosso tempo é a rebelião contra os padrões impostos. Como que subitamente, passamos a ansiar por que as pessoas e as coisas explicitem seus seres totalmente. Nesta nova atitude há uma profunda fé a ser procurada – uma fé que se refere à harmonia última de todo ser. E é com esta fé que este livro foi escrito.

Trecho de Marshahll McLuhan, no Prefácio a sua obra Os meios de comunicação como extensões do homem, publicado originalmente – Understanding media: the extensions of man – em 1964 e no Brasil, com tradução de Décio Pignatari, em 1969, pela Cultrix, de S. Paulo, p. 20.

Contrariamente à situação presente na época, de refração a seu nome na academia, no final dos anos 1980 começamos a trabalhar e a colocar em discussão com nossos alunos os textos e o pensamento do comunicólogo canadense, com resultados então não muito animadores.

Hoje, McLuhan retomou seu lugar como um dos principais pensadores do século XX e dos que melhor compreenderam a importância do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação para formação da cultura contemporânea. O trecho acima que propomos à discussão com você, rara ou raro leitor, aponta para a relação entre o desenvolvimento dessas tecnologias e as formas de percepção e de conhecimento vigentes, assim como de comportamentos hoje hegemônicos. Quando o canadense escreveu a obra antecipou muita coisa. Podemos pensar aqui, no maio de 1968 na França e nas rebeldias que ocorreram no mundo todo, inclusive no Brasil. E será que ele poderá ter previsto a explosão dos blogs como forma de contribuir para a expressão pessoal total do modo de ser?

Pretendemos voltar aos textos de McLuhan para dialogar com você. Seu comentário será bem-vindo.

domingo, 29 de abril de 2007

Tempo e caminho, de Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

Canta o galo.
Luz preenche o vale:
- Eis a linguagem!
*
Vidas pequenas,
viço do princípio:
luz, solo; verbo.
*
Eu queria um verbo
capaz de reunir o acaso que sou,
ao vale em que moro;
ao sentido do outro com quem vou.
Um verbo com meu semblante
redimindo cismas;
as máculas que se sofreu.
E que me fizesse entender doravante.
*
Linguagem rege o canto,
compreende em palavras,
ilumina de sentido
o baldio dos mundos.
Preenche hiatos,
cria circunstâncias;
dá aos sítios
horizonte e fuga.
*
Houve um início, obscurecido;
um caminho, obstruído;
um anseio por falar,
mote de falácias tantas.
A vontade de sair do escuro,
– esta mesma –
nos lançou no negror;
fazendo-nos ganhar outra verve.

Poemas de Tempo e caminho, belo livro que se propõe composto de “escritos filosóficos mais próximos do gênero poesia”, com epígrafes remetendo a Hegel e Heidegger, editado pela Publit http://www.publit.com.br/ em 2006. Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens, nascido em Niterói (RJ), em 1972, é professor universitário e doutor em Filosofia.

Sem máscara, Branca Eloysa

Sobrenomes

Pra mim palavra traz libertação.
(Palavra-verdade)
Outra não escuto.
Jamais entenderei os deuses,
Sabem a indiferença. Ferocidade.
Desamo o silêncio e o escuro mas
gosto do ruído dos sapos, dos grilos
e da luz dos vaga-lumes.
Escrevo. Escrevo. Escrevo. Assino.
Fico leve. Assumo a vida.
Sem sobrenome.
Pesam demais tantas palavras vindas não se donde.
Quero ser Fulana. Apenas.

Poema que, com outros, compõe um belo livro, Sem máscara, onde a maior parte dos textos é em prosa – cartas, lembranças, relatos. Partes da trajetória existencial de uma guerreira feita escritora, Branca Eloysa. Um livro intenso que emociona o leitor. Editado, no Rio de Janeiro, por Imprimatur – Viveiros de Castro, em 2005, com ilustrações de Miguel Coelho.

sábado, 28 de abril de 2007

Walter Benjamin, o pensador do século XX

Apresentamos a você, rara ou raro leitor, a primeira parte de um dos escritos breves de Walter Benjamin reunidos, sob o título “Proibido colar cartazes!”, no livro Rua de mão única, publicado originalmente em 1928, quando o autor tinha 36 anos. Acreditamos que sua leitura seja útil a todos os escritores e aos aspirantes a. O que acha? Faça seu comentário.
A segunda parte será aqui postada em breve, se a alguém fizer falta.

A técnica do escritor em treze teses

I. Quem tem a intenção de passar à redação de uma obra mais extensa procure seu bem-estar e permita-se, depois da tarefa concluída, tudo o que não prejudica a continuação.

II. Fale do realizado, se quiser; contudo, durante o decorrer do trabalho, não leia nada dele para outros. Toda satisfação que você se proporciona através disso bloqueia seu ritmo. Com a observância desse regime, o crescente desejo de comunicação acaba tornando-se motor do acabamento.

III. Nas circunstâncias de trabalho, procure escapar à mediania do cotidiano. Meia tranqüilidade, acompanhada de ruídos insípidos, degrada. Em contrapartida, o acompanhamento de um estudo musical ou de uma confusão de vozes pode tornar-se tão significativo para o trabalho quanto a perceptível quietude da noite. Se esta aguça o ouvido interior, aquele se torna a pedra de toque de uma dicção cuja própria plenitude sepulta em si os ruídos excêntricos.

IV. Evite utensílios quaisquer. A pedante fixação a certos papéis, penas, tintas, é de utilidade. Não luxo, mas abundância desses utensílios é indispensável.

V. Não deixe nenhum pensamento passar incógnito e mantenha seu caderno de notas tão rigorosamente quanto a autoridade constituída mantém o registro de estrangeiros.

VI. Torne sua pena esquiva à inspiração, e ela a atrairá com a força do ímã. Quanto mais refletidamente você retarda a redação de uma idéia que ocorre, mais maduramente desdobrada ela se oferecerá a você. A fala conquista o pensamento, mas a escrita o domina.

In Rua de mão única. Obras escolhidas, v. 2. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. S. Paulo: Brasiliense, 1987, p. 30-31.
http://www.editorabrasiliense.com.br/

Imagem, fonte: www.culturgest.pt/actual/walter_benjamin.html

Sugerimos que corra à estante ou à livraria e se enriqueça convivendo com esta obra que se pode ler e, especialmente, reler sempre com proveito crescente.

PS1: O título que adotamos repete o do caderno Mais, Folha de São Paulo, 12/07/1992, comemorativo dos 100 anos do nascimento do filósofo, crítico e escritor.

PS2: Nosso trabalho coletivo O consumidor de livros de segunda mão: perfil do cliente dos sebos, acessível em
http://www.escritoriodolivro.org.br/leitura/perfil%20sebo.pdf , concluído nesse dia 12 de julho de 1992, foi também dedicado ao centenário de Walter Benjamin, como forma de homenageá-lo como bibliófilo e “descobridor” de cidades em busca de livrarias e, especialmente, como a grande referência que temos pessoalmente em nosso modesto percurso intelectual.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Alberto de Oliveira, 150 anos de nascimento

Para lembrar o grande poeta brasileiro nascido no dia 28 de abril de 1857, em Palmital de Saquarema (atual Saquarema)-RJ, e que faleceu em Niterói-RJ há 70 anos (19 de janeiro de 1937), oferecemos a você, rara e raro leitor, alguns de seus poemas.

Única

Estás a ler meu livro, e é bem que exprimas
Certo pesar... Nem uma vez, nem uma
O teu nome estas páginas perfuma!
E outros há por aí por títulos e rimas.

“Quem são essas que vêm de estranhos climas,
De idades mortas, da salgada espuma
Do mar, da Grécia, de teu sonho, em suma,
Que mais que a mim tens celebrado e estimas?”

Dirás. E o livro, se meu ser traslada,
Se o fiz de modo tal que me traduza,
Contas dará de quanto em si contém;

Saberá responder que és sempre amada,
Que nele estás, pois foste a sua musa,
E essas mulheres só de ti provêm.

Lendo os antigos

Vamos reler Teócrito, senhora,
Ou, se lhe apraz, de Teos o citaredo;
Olhe a verdura aqui deste arvoredo
À beira da água... E o sol que desce agora.

Lécio, o pastor, nesta colina mora,
Onde as cabras ordenha. Este silvedo
Guarda de Umbrano à flauta a voz canora,
Como este arbusto a Titiro o segredo.

Esta água... Olhe, porém, como é tão pura
Esta água! O chão de nítidas areias,
Plano, igualado, límpido fulgura;

E tão claro é o cristal que, abrindo o louro
Cabelo, em grupo trêmulas sereias
Se vêem lá em baixo neste fundo de ouro.


A um poeta

Não têm teus versos, agora
Que se foi teu claro dia,
O ímpeto, o fogo, a harmonia
De outrora.

A idéia, porém, mais pura,
A idéia aos poucos nascida
De observar a Dora e a vida,
Fulgura.

Assim, posto o sol, os rios
Não são mais como eram dantes;
Tornam-se, em vez de brilhantes,
Sombrios.

Mas da noite o céu, com os mundos
Acesos, na água a feri-los,
Torna-os mais, sobre tranqüilos,
Profundos...


De Notas de um veranista

7 de fevereiro
O meu último pensamento
Ontem, antes de adormecer,
Não foram nem podiam ser
Os morangos que nos serviu o hotel sempre avarento.

Não foram dessa guerra assombros
Que se contam descomunais;
Eu hoje dou a tudo de ombros,
Pouco me importam paz ou guerra, e não leio jornais.

O meu último pensamento,
Fique bem anotado aqui,
Foi ela, o meu doce tormento:
Vinte vezes disse o seu nome – Élena – e adormeci.

Lira quebrada

Tomando-a onde a deixei dependurada ao vento,
Sinto não ser mais esta a lira de outros dias,
Em que, somente a amor votado o pensamento,
Livre e acaso feliz, a descansar me ouvias.

Quebrada vem. Rouqueja apenas um lamento;
As rosas com que, ó Musa, inda há pouco a vestias,
Fanam-se nos festões, soltam-se em desalento,
Vão-se. Ironia ou dor crispa-lhe as cordas frias.

Mas inda assim lhe escuto um resquício de notas
Perpassar a gemer, corre-lhe as fibras rotas
O fantasma do som que a alma um dia lhe encheu:

Como de um velho sino o bronze espedaçado
Guarda em cada fragmento o fragmento de um brado,
O eco de um hino, a voz de um canto que morreu...

Esta recolha foi feita na seleção feita por Geir Campos no volume que preparou para a série Nossos Clássicos e ainda no livro Lírica, ambos abaixo referidos.

Da crítica, sobre Alberto de Oliveira:

“Houve quem visse nele um clássico. Outros, um romântico. A maioria – historiógrafos da Literatura – cataloga-o parnasiano, uma das três pessoas da famosíssima trindade: Bilac-Alberto-Raimundo.

Na figura do escritor como na obra pode-se encontrar parcelas de tudo isso. O homem era grande e sólido, vestia com apuro, postura e palavra de Mestre que, a partir de 1924, prestigiava o título de Príncipe dos Poetas Brasileiros. Este é, pela busca do belo e preocupação formal, classicizante; pela paixão e entusiasmo, contidos mas presentes, romântico; pela adesão à Idéia Nova, desde a primeira hora, e a plasticidade da obra que realizaria, parnasiano.”

Da apresentação de Xavier Placer em Lírica, de Alberto de Oliveira, seleção de Nilo Aparecida Pinto, Rio de Janeiro: S. José, 1971.

“O que o lia o poeta eram ‘os gongóricos e árcades portugueses dos séculos XVII e XVIII, em que era muito versado’, como depõe Manuel Bandeira (...). Embora na ocasião [das lutas pela causa abolicionista] não arredasse pé da sua chácara em Niterói, naturalmente o poeta tomou conhecimento da vitória republicana – pois foi com a ascensão de José Tomás da Porciúncula à presidência do Estado do Rio que ele se viu nomeado oficial de gabinete e, pouco depois, Diretor da Instrução Pública estadual, cargo que deixou em 1897 (...)

A única luta em que tomou parte Alberto de Oliveira foi a chamada “batalha do Parnaso”, tendo como trincheiras as colunas do Diário do Rio de Janeiro, com escaramuças versificadas contra o pieguismo dos últimos românticos; (...) E é A. de O. que esclarece: - ‘o que houve entre nós foi a reação contra o romantismo dos últimos tempos, descorado e flácido, o restabelecimento das boas normas de escrever versos, um protesto contra o enxovalho da língua, um esforço para mostrar, qual não se via, opulenta e nobre, uma cruzada em prol do bom gosto e em favor da arte’.”

Da apresentação de Geir Campos a Alberto de Oliveira, Poesia. Org. de Geir Campos, coleção Nossos Clássicos, v. 32, Agir, Rio de Janeiro, 1969, 2a. ed.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

25 de abril! Poemas de Luís Veiga Leitão

Para lembrar o aniversário da Revolução dos Cravos que, em 25 de abril de 1974, libertou Portugal da ditadura salazarista, propomos a você, rara ou raro leitor, a leitura destes poemas de Luís Veiga Leitão, nascido em Moimenta da Beira (Portugal) a 27 de maio de 1912. Estes versos se referem ao período em que o autor esteve encarcerado como preso político.

Incomunicabilidade

Caneta, lápis, papel
e lâmina de ponta de lua
um autômato do bolso me tirava...
Depois a minha mão ficou nua
da vestimenta que usava.

Mas deram-me uma tinta preta
(nuvem negra dum fogo posto)
e meteram-me no tinteiro...
Na tinta, afogo as mãos, o rosto,
o meu corpo inteiro:

A força, o canto, a voz que encerra,
ninguém, ninguém pode afogar
– como as raízes da terra
e o fundo do mar.

Carta

Lanço as palavras ao papel
como pescador calmo
lança os barcos ao rio.
Só no fundo, no fundo inviolado,
contraio e espalmo
as minhas mãos, mãos de afogado
morrendo à sede.

– Meu amor estou bem –

Quanto te escrevo,
ponho os olhos no teu retrato
pendurado nos ferros da minha cama

para que as palavras tenham o sabor exacto
de quem me ouve,
de quem me fala,
de quem me chama.

– Meu amor estou bem –

Ontem vi a Primavera
numa flor cortada dos jardins.
Hoje, tenho nos ombros uma pedra
e um punhal nos rins.

– Meu amor estou bem –

Se a morte vier, querida amiga,
à minha beira, sem ninguém,
hei-de pedir-lhe que te diga:

– Meu amor estou bem –


A uma bicicleta desenhada na cela

Nesta parede que me veste
da cabeça aos pés, inteira,
bem hajas, companheira,
as viagens que me deste.

Aqui,
onde o dia é mal nascido,
jamais me cansou
o rumo que deixou
o lápis proibido...

Bem haja a mão que te criou!

Olhos montados no teu selim
pedalei, atravessei
e viajei
para além de mim.

In Latitude, 1950, com poemas da prisão, incluído em Obra completa, organizada por Luís Adriano Carlos e Paula Monteiro, publicada em bela edição, ilustrada com desenhos do autor, por Campo das Letras, Porto, Portugal, em 1997. A edição de 1950 teve sua circulação proibida então em Portugal.

Em 1967 Luís Veiga Leitão transferiu-se para o Brasil, talvez, principalmente, para que o filho Luís não fosse convocado à guerra colonial. Após viver alguns anos em Niterói – onde chegou a participar das atividades da Livraria Diálogo – retornou a Portugal no calor da hora do retorno à democracia. Anos depois, quando estava no Brasil para lançamento de sua antologia poética Biografia pétrea, publicada pela Thesaurus www.thesaurus.com.br , de Victor Alegria, faleceu subitamente (em 9 de outubro de 1987) na cidade fluminense que o acolheu e onde fez muitos amigos, como o signatário destas linhas.


Sobre publicação de livros, de Alexandre, o Grande, a Aristóteles, em Plutarco

[A Aristóteles:]

Saúde.
Não aprovo a publicação dos teus trabalhos acromáticos. Em que seríamos superiores aos outros homens se a ciência que nos ensinaste se tornasse comum a todos?
Eu gostaria mais de estar acima dos outros pelos conhecimentos sublimes do que pelo poder.
Adeus.

[as.) Alexandre]

Plutarco. Alexandre e César. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1965, p. 26.

Alexandre Magno (ou o Grande), nasceu a 21 de julho de 356 a.C, filho de Filipe II da Macedônia. Em sua juventude, dos 13 aos 16 anos, teve como preceptor o filósofo Aristóteles. Tornou-se rei da Macedônia aos vinte anos, em virtude do assassinato do seu pai. Após conquistar o maior império até então conhecido, fundado muitas cidades que levaram seu nome, dentre elas Alexandria, no Egito, onde se formou o maior centro de memória e de estudos da Antiguidade, morreu a 10 de junho de 323 a.C., em Babilônia, aos 33 anos. Aristóteles morreu um ano depois.

A frase atribuída a Alexandre – diante da notícia da publicação dos estudos de Aristóteles sobre a percepção das cores – por Plutarco (45-120?), filósofo e prosador grego do período greco-romano, pode levar-nos a refletir sobre as bases do poder e sobre a disseminação do saber. É esta a provocação que fazemos a você, rara ou raro leitor. Faça os seus comentários.

terça-feira, 24 de abril de 2007

A leitura e as palavras nos poemas de Maria Helena Latini

Leitura

Linhas escritas:
fios de alta-tensão,
repouso de passarinho.

Cortante

Pa – la – vra
Vra – vra –vra
Era vidro mastigado puro
Doía. Ainda dói quando lembro.
Amor ferido sangrado
Solidão. Escuro. Quietude.
E aquele frio
O corte
A cicatriz
Di – la – ce – ra – ção.
Fragmentos
Palavras vras – vras – vras.
Vidro moído.

Sucata para fazer pipa

As palavras trituradas em vidro
colei-as uma a uma
E do gume de estiletes
aprontei fina envergadura
de cruz e sustentação

para o meu papel de seda.

Requinte

Eu quero a elegância
da palavra “aspargo”
e uma mesa ornada
lírios brancos
hastes túrgidas
candelabros
linho fino.

In Fio de prumo. Rio de Janeiro: 7letras, 2006.
www.7letras.com.br

domingo, 22 de abril de 2007

Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor e Dia de São Jorge

Segundo nos lembra o sítio do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas:

O "Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor" é comemorado, desde 1996 e por decisão da UNESCO, em 23 de abril, dia de São Jorge. Esta data foi escolhida para honrar a velha tradição catalã segundo a qual, neste dia, os cavaleiros oferecem às suas damas uma rosa vermelha de São Jorge (Saint Jordi) e recebem em troca, um livro. Simultaneamente, é prestada homenagem à obra de grandes escritores, como Shakespeare e Cervantes, falecidos em 1616, exatamente a 23 de abril.

Partilhar livros e flores é prolongar uma longa cadeia de alegria e cultura, de saber e paixão.

Fonte: http://www.iplb.pt/pls/diplb/!get_page?id=636&xcode=2476693&type=D

Nós queremos neste dia compartilhar com você, rara ou raro leitor, uma bela poesia de Mário Benedetti. Não iremos referir por que em nosso país não se marcam datas como esta em favor de maior difusão da leitura e do livro, não.

Vamos apenas tentar prolongar nossa cadeia de cumplicidades, 'de saber e paixão', com um sabor hispânico, vindo de nosso vizinho Uruguai, em homenagem à tradição catalã.

El autor no lo hizo para mí
Mario Benedetti

El autor no lo hizo para mí / yo tampoco
lo leo para él / yo y el libro
nos precisamos mutuamente / somos
una pareja despareja /

el libro tiene ojos tacto olfato
hace preguntas y hace señas
puede ser una esponja que me absorbe
o un interlocutor vacío de prejuicios

el libro y yo tenemos un pasado
en común / con frutales seducciones
yo a veces le confisco a madame bovary
u él me despoja de ana karenina /
si nos empalagamos de esos amores yertos
ya somos otros y nos reconciliamos

el libro me provoca / me arranca confesiones
y yo le escribo notas en los márgenes
es una relación casi incestuosa
nos conocemos tanto que no nos aburrimos
él me describe cielos incendiados
y yo se los extingo con lágrimas marinas

no lo hizo para mí / ¿será por eso
que el rostro no me importa? / es un enigma /
yo sólo quiero descifrar el libro
y quedarme en su vida hasta mañana


Fonte: Mario Benedetti, El olvido está lleno de memoria. Buenos Aires: Sudamericana, 2000, p. 78.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Entre a oralidade e a escrita, Sócrates, segundo Platão

(...)
- Sócrates: Bem, ouvi dizer que na região de Náucratis, no Egito, houve um dos velhos deuses daquele país, um deus a que também é consagrada a ave chamada Íbis. Quanto ao deus, porém, chamava-se Thoth. Foi ele que inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e os dados, e também a escrita. Naquele tempo governava todo o Egito, Tamuz, que residia ao sul do país, na grande cidade que os egípcios chamam Tebas do Egito, e a esse deus davam o nome de Ámon.

Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes, dizendo que elas deviam ser ensinadas aos egípcios. Mas o outro quis saber a utilidade de cada uma, e enquanto o inventor explicava, ele censurava ou elogiava, conforme essas artes lhe pareciam boas ou más. Dizem que Tamus fez a Thoth diversas exposições sobre cada arte, condenações ou louvores cuja menção seria por demais extensa.

Quando chegaram à escrita, disse Thoth: Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria.

Responde Tamuz: Grande artista Thoth! Não é a mesma cousa inventar uma arte e julgar da utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal cousa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos.

Logo, tu não inventastes um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites para teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber, embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em conseqüência, serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios.

- Fedro: Com que facilidade, Sócrates, inventas histórias egípcias assim como de outras terras, quando isso te apraz!
(...)
- Sócrates: O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Também as figuras pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas. O mesmo sucede com os discursos. Falam das cousas como se as conhecessem, mas quando alguém quer informar-se sobre qualquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a repetir sempre a mesma cousa.

Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda parte, não só entre os conhecedores mas também entre os que o não entendem, e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve. Quando é desprezado ou injustamente censurado, necessita de auxílio do pai, pois não é capaz de defender-se nem de se proteger por si.
(...)
- Sócrates: Tu bem vês que aquele que conhece o justo, o bom e o verdadeiro não irá escrever na água essas cousas, nem usará um caniço [papiro] para semear os seus discursos, pois eles se mostrarão incapazes de ensinar eficientemente a verdade.

- Fedro: Provavelmente não fará isso.
- Sócrates: Claro que não. Naturalmente, semeará nos jardins literários apenas por passatempo. Se escrever, será na intenção de acumular para si mesmo um tesouro de recordações para a velhice, se chegar até lá; porque os velhos esquecem tudo. Escreverá também para os que caminham na mesma rua com ele, e se alegrará vendo crescer as tenras plantas. (...)


Excertos de Fedro, in Platão, Diálogos, Ménon – Banquete – Fedro. Trad. Jorge Paleikat, 8a. ed. Porto Alegre: Globo, 1954, p. 255-259.

Esta é talvez a primeira reflexão que se registrou, atribuída a um filósofo – Sócrates – sobre o nascimento da escrita e suas conseqüências para a memória, para o conhecimento e para sua difusão. A origem da escrita muitas vezes é associada a um dom divino, mas os historiadores da escrita fazem, em geral, uma relação de seu nascimento com o desenvolvimento da agricultura e do embrião de estado, com sua administração e contabilidade.

Numa sociedade em trânsito do oral ao escrito, como a grega clássica, onde, com a criação, lá, do alfabeto pleno, com vogais, começam a ampliar-se as práticas de escritas e de leituras, as reflexões atribuídas a Sócrates indicam que, para ele, a escrita traria dois grandes inconvenientes: o primeiro, a perda da memória interna, e o outro, a possibilidade de transmissão de um conhecimento estático e, pior ainda, sem que seu autor pudesse saber se o leitor que teria acesso a ele saberia entende-lo corretamente.

Certamente, seriam resistências de uma cultura baseada na oralidade diante de uma nova tecnologia intelectual, a mais importante da sociedade humana em toda a sua história, a escrita, que iria provocar grandes transformações nas práticas culturais em todas as sociedades por onde, de uma ou outra forma, se estabeleceu, criando o indivíduo, a noção de tempo linear e a idéia de progresso, dentre outras importantes mudanças.

E você, rara leitora ou leitor, já refletiu sobre as diferenças entre as práticas de saber existentes em uma cultura oral, como as de nossos indígenas, por exemplo, e aquelas onde há a presença da escrita como forma de registro e comunicação? Tem alguma história para contar sobre a sabedoria tradicional de uma cultura oral? Ou de alguma pessoa que não chegou a alfabetizar-se?

Faça seu comentário. E releia depois o Fedro inteiro, claro!

terça-feira, 17 de abril de 2007

Um país se faz com homens e livros. Na América!

Um paiz se faz com homens e livros. Minha visita aos monumentos de George Washington e Lincoln provou que a América tinha homens. Ter homens, para um paiz, é ter Washingtons e Lincolns, individualidades tão marcantes que sobre seus vincos não pode a morte. Viva quanto viver a América, seus dois heroes viverão com ella, dia a dia mais sublimados. Já não são homens hoje, decennios passados do desapparecimento da scena, mas semi-deuses. Um seculo mais que transcorra e serão deuses. Crescem sempre. Divinisam-se. Em torno dessas pilastras a America se crystallisa. Nas maiores crises moraes nunca lhe faltará o apoio do general que não mentia e do lenhador que impediu a destruição da obra do general.

Com homens e livros. Nos livros está fixada toda a experiencia humana. É por meio delles que os avanços do espírito humano se perpetuam. Um livro é uma ponta de fio, que diz: Aqui parei; toma a ponta e continua, leitor. (...)

Mr. Slang certa vez me disse que o homem só tinha duas creações, a invenção do alphabeto (com suas naturaes consequencias, livro, imprensa, etc.) e a descoberta do fogo. O alphabeto permitiu o accumulo da experiência individual; o fogo abriu caminho para a dominação da natureza. (...)

Estavamos a caminho da Biblioteca do Congresso – o maior templo que ainda se erigiu ao livro, (...).

- Eil-a, disse Mr. Slang apontando para o colossal monumento que ao entrarmos no Capitol Grounds se nos fronteou. Ha lá dentro, catalogados, á disposição de quem os queira consultar, 3.890.096 pontas de cousas impressas, como sejam livros, mappas, musicas e “prints”, sem contar os manuscriptos. Ora, isso quer dizer que ha alli mais de quatro milhões de pontas de fio. Quadro milhões de vidas passadas no estudo e na elaboração escripta da experiência pessoal armazenam nesta bibliotheca a summula do seu esforço. Philosophos, scientistas, artistas – a gente toda que faz uso do cerebro e, havendo tomado as pontas dos fios legados pelos avós, proseguiu na obra e legou aos netos nova ponta por onde continuem o novello sem fim.

Admirei o monumento com todos os ímpetos da minha capacidade de admiração architectonica, embora sua real grandeza não estivesse na fachada, sim no miolo. Quadro milhões de pontas!....

Tudo alli eram symbolos. A casa das pontas é uma casa de symbolos. (...)

Portas de bronze nas tres entradas representam a Imprensa – “Minerva presidindo a diffusão dos productos da arte graphica”. E paineis com allegorisações da Intelligencia Humana, da Escripta, da Verdade, da Pesquiza, da Tradição, da Memória, da Imaginação.

(...) E as marcas usadas pelos mais celebrados impressores. Um mar de symbolos, uma ansia de juntar tudo quanto a imaginação humana pode conceber para adorar o Livro e a arte do Livro e os autores de livros famosos. Tudo isso obra da collaboração de centenares de artistas tomados dos mais notáveis da Europa e America, pintores, esculptores, imagistas, paineladores, architectos, entalhadores.... Positivamente estávamos na Cathedral do Livro, uma outra S. Pedro de Roma em que o Deus honrado era a Ponta do Fio, como o queria o meu inglez.

- Estou meio tonto, Mr. Slang. Acho que quem vem a esta bibliotheca não tem tempo de abrir um livro. Há cousas demais para distrahil-o e occupar-lhe a attenção.

- É que a bibliotheca em si é um livro - o primeiro a ser consultado. A única differença está em que não é um livro composto em papel, na forma clássica. Não está lendo mil cousas nestes marmores e bronzes? Acho que esta bibliotheca foi o primeiro grande livro que a America compoz. Só tem um defeito: para que o possamos ler é mister havermos lido alguns dos livros de papel que estão dentro. Sem isso limitamo-nos a vel-o.

- Pois subamos a escadaria para ver o primeiro capitulo.. Isto aqui me parece apenas prefacio.
(...)

Excertos, na grafia original, do capítulo VI do livro de Monteiro Lobato, America, 1a. ed. S. Paulo: Nacional, 1932, p. 37...41. Capa de J. U. Campos. É também nesse livro que Lobato apresenta o personagem que inventou para dialogar na exposição de seus pensamentos e reflexões, Mr. Slang: “Annos atraz o bom deus Acaso poz no meu caminho um homem de singular philosophia, conhecido como – o inglez da Tijuca. Suas idéas chocavam, aberrantes que eram das idéas e pontos de vista do monstro de mil corpos e uma só cabeça, chamado Toda-a-gente. Mr. Slang via com os seus olhos azues e pensava com o seu cérebro crystallino. Pensava em linha recta e via com nitidez: - porisso era olhado de esguelha pelos que viam torto e pensavem enevoadamente.” (p. 5)

Amanhã, 18 de abril, o Brasil comemorará o nascimento de Monteiro Lobato (no ano de 1882), um dos seus filhos mais ilustres. Esse dia foi estabelecido para ser o Dia Nacional do Livro Infantil. Homenagem de mérito inquestionável, pois Lobato foi sem dúvida o escritor que mais contribuiu para o enriquecimento da literatura para crianças e jovens em nosso país, com a criação de personagens imortais, como Narizinho, Emília, Tia Anastácia, Dona Benta e outros.

Na área do livro, entretanto, pode-se questionar o epíteto pelo qual é referido o escritor na obra de seus amigos memorialistas e também na de bons pesquisadores, talvez levados por um certo entusiasmo a que é difícil escapar diante de sua figura: o de criador da indústria editorial brasileira.
Equívocos nunca são ingênuos nem desprovidos de ideologia. Este nos quer fazer esquecer tudo o que aconteceu no campo brasileiro do livro durante mais de um século, desde a criação, em 1808, da Impressão Régia, do Rio de Janeiro, até 1918, quando Lobato inicia sua carreira de editor na Revista do Brasil.
E nesse bordão inseriu-se a Câmara Brasileira do Livro ao apropriar-se de Lobato como patrono da indústria do livro, indo buscar no seu livro de impressões, encantadas, da América, onde Lobato esteve por um breve período, como uma espécie de adido comercial na embaixada brasileira, a sua frase – “Um país se faz com homens e livros” – que ficou famosa como um slogan em favor do livro e da leitura no Brasil, sem que quase ninguém soubesse sua origem. Devemos ressaltar o pioneirismo da pesquisadora Alice Mitika Koshiyama, que, no livro Monteiro Lobato: intelectual, empresário, editor, publicado em 1982 e recentemente reeditado pela Edusp, cita a frase como epígrafe e dá a fonte.

As comemorações dos 200 anos da criação da indústria editorial brasileira, ano que vem, certamente oferecerão oportunidades para uma revisão de nossa historiografia do livro.

O que acha você, rara leitora ou leitor, destas questões? E da apropriação da frase do livro sobre os Estados Unidos da América? E da própria frase? Como você a conheceu?

Faça seu comentário.

Sacralização ou estigmatização de Monteiro Lobato?, de Israel Pedrosa


Outro grande brasileiro nascido em 18 de abril é o artista plástico Israel Pedrosa, de 1926, que continua muito ativo, aos 81 anos, na construção de uma obra imortal. Grande admirador de Monteiro Lobato, incluiu em seu novo livro, Na contramão dos preconceitos estéticos da era dos extremos, um ensaio, com o título acima, dedicado à vida e obra do escritor e à rediscussão do “caso” entre ele e Anita Malfati. Na contramão de certa crítica, Pedrosa afirma que “Lobato não era um passadista nem um inimigo do progresso. Certo ou errado, o que ele defendia com todo o vigor era a renovação artística baseada em conhecimento da tradição específica, não o afã da ruptura inovadora a qualquer preço, como sinônimo de Novo”. E defende, ainda, que “Ele era por excelência um modernista que lutava contra um determinado Modernismo que surgia apoiado em teses das vanguardas artísticas internacionais, para ele, internacionalizantes”.

O livro de Israel Pedrosa traz ainda outros ensaios dedicados a artistas como Portinari, Siqueiros, Quirino Campofiorito, Hilda Campofiorito, Newton Rezende, Antônio Parreiras, dentre outros, e, ainda, um dedicado ao poeta de Metanáutica, “A latência poética de Geir Campos”.

A obra, editada por Leo Christiano, será lançada, no próximo dia 16 de maio, às 16h, no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, com palestra do autor.

sábado, 14 de abril de 2007

Eclesiastes, um livro de sabedoria

...
Que proveito tem o homem de toda a fadiga a que se sujeita debaixo do sol?
Uma geração passa, outra geração entra, mas a terra permanece para sempre. O sol se levanta, o sol descamba, anelando pelo lugar donde novamente se levantará. O vento sopra para o sul, volta-se para o norte, num contínuo vaivém sopra o vento. Todos os rios desembocam no mar, sem que o mar transborde. Para onde os rios correm, para lá correm sem cessar.
Tudo é tedioso. Ninguém pode dizer. O olho não se sacia de ver, o ouvido não se enche de tanto ouvir.
....
Qohelet, além de ser sábio, instruiu o povo na ciência, meditou, perscrutou e fez muitas composições a respeito de sentenças. Esforçou-se, Qohelet, por encontrar palavras agradáveis, e por registrar corretamente pensamentos de verdade. As palavras do sábio são como aguilhões e pregos fixados: sentenças colhidas, compostas por um único pastor.

No mais, meu filho, fica prevenido, escrevem-se livros sem fim
e o estudo contínuo cansa o corpo.

Fim do discurso: teme a Deus e guarda seus preceitos, porque este é o dever de todo homem.
Deus julgará todos os atos, mesmo os ocultos, os bons e os maus.

Dos comentários, no livro: Qohelet: o Pregador, no meio da assembléia, ou, conforme o grego, no meio da ekklesia, daí o nome de Eclesiastes (p. 272).

Trad. de Pe. Frederico Dattler S.V.D., in A Bíblia, v. 4 – Os livros sapienciais. S. Paulo: Abril, 1966, p. 272; 287.

Imagem (p. 273): Anônimo, séc. XII. Miniatura, Escola Renana, "Evangeliário", Biblioteca Regional, Karlsruhe, Alemanha.

Trecho retirado do livro Eclesiastes. Além de toda a sabedoria nele contida, que nos ensina a cada releitura, o objetivo de traze-lo aqui, para iniciar uma conversa com você, rara ou raro leitor, é específica: a referência que faz ao "fazer livros".

E, como é possível ocorrer em qualquer tradução, são muitas as versões para a frase e mais ainda ao sentido que a ela se dá. Aqui se diz: "escrevem-se livros sem fim"; já na tradução atribuída a João Ferreira de Almeida, publicada, revista, pela Sociedade Bíblica do Brasil, talvez a mais conhecida, a frase é esta: "não há limite para fazer livros", o que já permite uma outra leitura; a tradução do Centro Bíblico Católico, revista por Frei João José Pedreira de Castro, publicada pela Editora "Avé Maria", indica: "...se podem multiplicar os livros a não mais acabar"; a tradução do Pe. Matos Soares, publicada pela Paulinas, diz: "não se põe termo em multiplicar livros".

Mas a "tradução" que mais freqüentemente se vê usada por editores você certamente conhece, mas eu não consegui ainda saber de quem é: "fazer livros é um trabalho sem fim".

Esta poderia ser usada também por autores. Faz sentido!

Será que sempre estaremos construindo o "nosso" sentido em qualquer leitura ou mesmo em qualquer tradução, que é, afinal, também uma leitura?

De qual sentido mais gosta você, cara leitora? A advertência de que se fazem livros demais e que muito estudo (apenas) cansa o corpo, pois as palavras do mestre são como "aguilhões e pregos fixados", que não se devem mexer nem nada acrescentar? Pois o que conta, afinal, são os atos do homem ou da mulher?

Ou a que indica ser a tarefa de escrever, traduzir, revisar ou de editar livros um trabalho (difícil) de ter fim?

Faça seu comentário.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Professores recebem vale para comprar livros. Enfim!

A Prefeitura do Rio de Janeiro anunciou hoje que a partir da próxima semana, 29.763 professores lotados na Secretaria Municipal de Educação receberão um vale especial, no valor unitário de R$ 50, para a compra de livros do seu interesse. Para facilitar, o vale-livro será entregue no local onde o beneficiário estiver lotado, podendo ser nas escolas, Coordenadorias Regionais de Educação ou na sede da Secretaria, no Centro Administrativo. A distribuição do vale será feita por CPF, de modo a não haver duplicidade na concessão do benefício.
Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/

Sem dúvida, é uma ótima notícia. É ainda muito pouco diante do que se poderia fazer em favor da atualização dos professores e do desenvolvimento da indústria editorial e das práticas de leitura com ações como esta de financiamento direto ao (presumido) interessado. Não se pode exigir que um professor com o salário que percebe possa comprar livros... embora haja quem o faça, sim.

É pouco, inclusive, porque esse vale é para ser gasto em até 180 dias, quando se supõe que um professor tenha que comprar ao menos um livro por mês da sua área de atuação. Mas é um começo. Quem sabe as outras Prefeituras e, especialmente, o Ministério da Educação não percebe o quanto poderia fazer em favor do ensino, do livro, da leitura e do professor, de todos os níveis, fazendo o mesmo, só que com um vale mensal?

Os índices de leitura no Brasil são dos mais baixos do mundo e continuaremos com indicadores vergonhosos em quase tudo na área educacional (há as honrosas exceções sempre) quando comparados com outros países da América Latina - não falemos dos chamados países desenvolvidos - enquanto não houver políticas concretas em favor do livro, da leitura e das bibliotecas. E também do desenvolvimento da educação, em geral. Enquanto continuarmos com os mais baixos índices de alunos que completam um curso superior, daqueles que entram na escola, comparados com outros países vizinhos, não dá pra ter muita esperança.

Para isso a prioridade do governo teria que mudar, obviamente: ao invés do (chamado pelos banqueiros e especuladores, de dentro e de fora do governo) "superavit primário" (para que sobre muuuuuuito dinheiro para eles, sob diversos disfarces, e a salvo da chamada "responsabilidade fiscal") a prioridade deverá ser o desenvolvimento social, educacional e científico brasileiro. Aí teríamos também o desenvolvimento econômico que tanta falta faz ao país, inclusive, para atender aos milhares de jovens que chegam a cada ano ao mercado de trabalho e não encontram emprego.

Só assim poderemos sair de onde estamos - uma ilha cada vez menor de muito ricos, uma classe média que se empobrece, extremamente onerada pela política fiscal às avessas, que penaliza os salários, praticada pelo Estado brasileiro, e uma planície imensa de pobreza, fome, miséria e marginalidade. Sem futuro.

E viva o povo brasileiro que resiste das formas que pode e com a criatividade que tem a essa catástrofe social que vem sofrendo há décadas e continua a sofrer, hoje.

Parabéns, prefeito!

Para quem chegou até aqui na leitura, é necessário dizer que o dito acima é uma simplificação de algo muito complexo. Mas há coisas que se devem dizer no essencial, ou não se conseguem dizer.
E você, rara leitora ou leitor, o que acha? Faça o seu comentário.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

50 anos da Helvética

Abaixo nota e links sobre o aniversário do famoso alfabeto. É coisa de typo-people, mas talvez interesse pro teu blog. Tem foto de componedor bonita, que aparece com melhor qualidade no link do Washington Post.

Dicas de Lia Monica Rossi, de Londres, expert em artes visuais e gráficas e amiga do blog.
Conheça: http://www.art-deco-sertanejo.com/

HELVÉTICA

The fiftieth anniversary of the introduction of the Helvetica typefaceis being marked by a special exhibition at the Museum of Modern Art in New York
http://www.moma.org/exhibitions/2007/Helvetica.html

The importance and impact of Helvetica is discussed in a news articlein the Washington Post on 7th April 2007 under the headline "Oh Yeah,You Know the Type"(free registration required)
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2007/04/06/AR2007040601986.html

Maus efeitos da riqueza, Lúcio Aneu Sêneca

[IX – 2] Habituemo-nos a ter o luxo à distância e a fazer uso da utilidade dos objetos e não de sua sedução exterior. Comamos para matar a fome, bebamos para apagar a sede e reduzamos ao necessário a satisfação de nossos desejos. Aprendamos a andar com nossas pernas, a regular nosso vestuário e nossa alimentação, não sobre a moda do dia, mas sobre o exemplo dos antigos.

Aprendamos a cultivar em nós a sobriedade e a moderar nosso amor ao fausto; a reprimir nossa vaidade, a dominar nossas cóleras, a considerar a pobreza com um olhar calmo, a considerar a frugalidade, apesar de todos aqueles que acharão aviltante satisfazer tão modestamente a seus desejos naturais; a não ter nas mãos, por assim dizer, as ambições desenfreadas de uma alma sempre inclinada para o dia seguinte e a esperar a riqueza menos da sorte do que de nós mesmos.

[4] As despesas de ordem literária, as mais justas de todas, não são estas mesmas razoáveis, a não ser que sejam moderadas. Para que servem inúmeros livros e bibliotecas, se o proprietário encontra apenas o tempo em sua vida para ler as etiquetas? Uma profusão de leituras sobrecarrega o espírito, mas não o ilustra; e melhor seria aplicar-se muito a um pequeno número de autores do que vagar no meio de muitos.

[5] Quarenta mil volumes foram queimados em Alexandria [49aC]. Quantos outros exaltam este esplêndido monumento da magnificência real, como Tito Lívio, que o chama a obra-prima do gosto e da solicitude dos reis. Eu não vejo lá nem gosto nem solicitude, mas orgia da literatura; e quando digo da literatura minto, pois o cuidado pelas letras lá não era cultivado: aquelas belas coleções só eram constituídas para amostra. Quantas pessoas desprovidas da mais elementar cultura têm também livros, que não são de modo algum instrumentos de estudo, mas que adornam suas salas de refeições! Compremos os livros dos quais temos necessidade, não os compremos para ostentação.

[6] É mais moral, dizes tu [a obra é dedicada pelo autor ao amigo Aneu Sereno], assim gastar seu dinheiro, em lugar de o desperdiçar em vasos de Corinto e em quadros. Há vício desde que haja excesso. Por que esta indulgência para um homem que coleciona armários de cidreira e de marfim, que compra obras completas de autores desconhecidos ou medíocres, para bocejar no meio de tantos milhares de volumes, não aproveitando de seus livros a não ser as encadernações e os títulos?

[7] Eis como verás em casa dos mais insignes preguiçosos toda a coleção de oradores e de historiadores e estantes para livros construídas até o teto: pois hoje em dia, ao lado dos banhos nas termas, a biblioteca tornou-se um ornamento obrigatório de toda casa que se preza. Eu perdoaria perfeitamente esta mania, se ela nascesse de um excesso de amor ao trabalho; mas estas obras sagradas, dos mais raros gênios da humanidade, com as estátuas de seus autores, que assinalam sua classificação, são adquiridas para serem vistas e para decorarem as paredes.

Excerto de Da tranqüilidade da alma, in Os Pensadores, V. 1a. ed. Trad. e notas de Giulio Davide Leoni. S. Paulo: Abril, 1973, p. 214-6.

Esta é talvez uma das primeiras admoestações registradas sobre a inconveniência do excesso de livros (neste caso, no contexto de uma condenação de todos os excessos) e do uso deles para ostentação. Na época os livros eram todos manuscritos, copiados um a um, em geral por encomenda, escritos em papiro ou em pergaminho e guardados em forma de rolo na estante, com a etiqueta para fora. Vivemos hoje, dois milênios depois, em que muitos (como eu, admito) estão sufocados no meio de tantos livros não abertos e tantas leituras à espera, que não será demais reler Sêneca [Córdoba, 4aC-Roma, 65dC] e refletir sobre a simplicidade de vida que ele, um estóico, nos propõe para que alcancemos a felicidade. Dizem alguns que um pequeno número de obras não deveríamos deixar de ler e que esse número nos bastaria para alcançar um saber verdadeiro, se as relêssemos até à plena compreensão. O que acha você, rara ou raro leitor? Tem alguma sugestão? Faça seu comentário.

Imagem anônima de um librarius - livreiro romano (c. 100 dC).
Fonte: Bibliopola, de Sigfred Taubert. Hamburg: Dr. Ernst Hauswedell & Co, 1966, p. 3.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Debate: O mundo dos livros na São Paulo do século XIX

Debate no Cedem/Unesp:
O Mundo dos Livros na São Paulo do Século XIX: Instituições e Práticas

O projeto de uma história da circulação de livros, de suas instituições e das práticas de leituras identificadas na cidade de São Paulo, ao longo do século XIX, é fruto de uma conjuntura. Diante de novas tecnologias que parecem ter atingido os circuitos de comunicação impressa, até que ponto o livro atua como força transformadora em nossa sociedade? Ele já teve um dia esse papel?

Expositora: Marisa Midori Deaecto (doutora em História – USP, pesquisadora e autora do livro: Comércio e Vida Urbana na Cidade de São Paulo – 1889/1930. Editora Senac - 2002)

Debatedores:

Tânia Regina de Luca (doutora em História Social – USP, professora do deptº de História da UNESP - Campus de Assis/SP e assessora da Pró-Reitoria de Pesquisa/Reitoria da UNESP - S.Paulo/SP)

Antonio Celso Ferreira (doutor em História Social – USP, professor e diretor da UNESP/Campus de Assis-SP)

Moderador: Paulo Cunha (doutor em Ciências Sociais – UNICAMP e professor de Teoria Política na UNESP – Campus de Marília/SP).

Inscrições pelo e-mail: ssantos@cedem.unesp.br

Data: 17 de abril de 2007 (3ª feira) Horário: 18h – Entrada GratuitaLocal: CEDEM/UNESP - Centro de Documentação e MemóriaPraça da Sé, 108 - 1º andar (esquina c/ r.Benjamin Constant) (11) 3105 – 9903 - www.cedem.unesp.br

Apoio: Instituto Astrojildo Pereira - www.institutoastrojildopereira.org.br

Quem puder estar presente não deve perder - por nada!

A importância do ato de ler, de Paulo Freire



...
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória –, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.

A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe –, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaço, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; ás águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins –, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo-esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. (...)

Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar. (...)

Mas, é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra.

A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.

In A importância do ato de ler. 29a. ed. S. Paulo: Cortez, 1994, p. 12-15.

Paulo Freire é um dos brasileiros mais notáveis de toda nossa história e suas contribuições à Educação têm alcance nacional e internacional. Certamente é um de nossos autores mais traduzidos e respeitados também no exterior.

O trecho acima é parte da conferência que fez na abertura do 3º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, promovido pela Associação de Leitura do Brasil (ALB), em 1982.

Podemos afirmar que o livro que contém essa bela conferência (e outra: “Alfabetização de adultos e bibliotecas populares – uma introdução” e o artigo “O povo diz a sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe”) é um dos grandes best-sellers de nossa bibliografia pedagógica, certamente pela importância que teve e tem para a compreensão da leitura e de suas práticas sociais.

Ela pode ser complementada com a entrevista dada por Paulo Freire a Ezequiel Theodoro da Silva, um dos fundadores da ALB, “Da leitura do mundo à leitura da palavra”, que está no número zero da revista Leitura: Teoria e Prática, de novembro de 1982, publicada pela ALB/Mercado Aberto (Porto Alegre-RS), tendo como jornalista responsável Antônio Hohlfeldt.

Conheça mais da ALB e do COLE em http://www.alb.com.br/ .
Conheça mais de Paulo Freire em www.paulofreire.org
Imagem, fonte e créditos: Instituto Paulo Freire www.paulofreire.org

Você, rara ou raro leitor, quer compartilhar conosco de forma breve suas lembranças de iniciação à leitura? Faça seu comentário.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

A Mário Quintana, de Paulo Roberto Cecchetti


Quando chego bem de noitinha

escuto guisos no breu da varanda;

vem rebolando, jogando as patinhas

com charme, meu Mário Quintana!

Meu gato de nome Mário, é uma expressão poética de amor aos gatos e a Mário Quintana, em forma de livro feito a quatro mãos pelo poeta Paulo Roberto Cecchetti e pelo ilustrador Miguel Coelho, editado pela Traço&Photo, em Niterói, 2005. Como disse Marco Lucchesi na apresentação, um livro que "alcança... todas as idades, todos os jardins e todos os poetas". E me faz pensar em como o gato Mário é um fiel companheiro do autor: Ele fica de plantão/na porta do meu escritório/se o trabalho requer duração/faz dali seu dormitório, como o é também para mim o querido cocker Mel. E você, rara ou raro leitor, tem algum felino ou canino parceiro em suas escritas e/ou leituras? Faça seu comentário.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Literatura, filosofia e amizade – Drummond e Sloterdijk


O que há de mais importante na literatura, sabe? é a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e de Virgílio. Somos amigos pessoais deles. Se alguém perto de mim falar mal de Verlaine, eu o defendo imediatamente; todas as misérias de sua vida são resgatadas pela música de seus versos. Como defenderia um amigo pessoal. (...) o maior prêmio de Estocolmo ou dos Estados Unidos não vale o telegrama de amor que alguém desconhecido, e que não conheceremos nunca, nos manda lá do Pará porque leu uma coisa nossa e ficou comovido e rendido.

Carlos Drummond de Andrade, Tempo, vida, poesia. Confissões no rádio. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 58

*

Livros, observou certa vez o escritor Jean Paul [1763-1825], são cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas. Com esta frase ele explicitou precisamente, de forma graciosa e quintessencial, a natureza e a função do humanismo: a comunicação propiciadora de amizade realizada à distância por meio da escrita. O que desde os dias de Cícero se chama humanitas faz parte, no sentido mais amplo e no mais estrito, das conseqüências da alfabetização.

Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade. Ela é não apenas um discurso sobre o amor à sabedoria, mas também quer impelir outros a esse amor. Que a filosofia escrita tenha logrado manter-se contagiosa desde seus inícios, há mais de 2.500 anos, até hoje, deve-se ao êxito de sua capacidade de fazer amigos por meio do texto. (...)

Faz parte das regras do jogo da cultura escrita que os remetentes não possam antever seus reais destinatários; não obstante, os autores lançam-se à aventura de pôr suas cartas a caminho de amigos não-identificados.

Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. de José Oscar de Almeida Marques. S. Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 7-8.

Não resisti a registrar a coincidência de posições sobre o maior valor da literatura e da filosofia, entre nosso poeta maior, definida em entrevista concedida a Lya Cavalcanti, em programa na Rádio MEC, só muito tempo depois transcrita e publicada, no livro Tempo Vida Poesia, que merece ser revisitado, e a do polêmico filósofo alemão, nascido em 1947, e autor, também, de O desprezo das massas. Ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna.

Para mim, sem qualquer dúvida, os livros foram ponte para a construção de amizades, distantes e, especialmente, próximas. Tudo começou quando, em 1966, iniciei minha atividade de livreiro em Niterói (Encontro, Diálogo, LUFE, Centro do Livro/Livros para Todos, Pasárgada), que se estendeu até 1986. Foram 20 anos fazendo muitos amigos e amigas através de livros e leituras. E vivi ainda, tempos depois, a breve experiência, da criação do Sebo Fino.

Na Universidade, em relação mais delicada e complexa com alunas e alunos, tivemos sempre livros como mediadores, às vezes felizes outras nem tanto. Já então se iniciava um tempo em que, mesmo no ensino superior ler livros ou mesmo capítulos, se faz, em geral, com alguma resistência, maior ou menor. As exceções, de jovens aficicionados pela leitura, confirmam a regra e trazem muitas recompensas.

Quando foi publicado o Livraria Ideal, do cordel à bibliofilia, em 1999, ah!, quantas alegrias, dessas a que se refere o Drummond. Com alguns leitores, ficamos amigos 'para sempre' a partir da história de Silvestre Mônaco e sua livraria em Niterói.

E você, rara leitora e leitor, tem alguma história de amor ou de amizade construída a partir de livros e leituras, como nos indicam Drummond e Sloterdijk? Acrescente seu comentário.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

De quem reclamar?, André Lara Resende

O ritmo da vida moderna não nos deixa tempo para nada por inteiro. A leitura também é fragmentada. É difícil ler do início ao fim. Passa-se os olhos, lê-se em diagonal, para saber do que se trata.

Ando lendo muito picado. Desde que começaram a ser publicados pela Companhia das Letras, tenho sempre algum livro de Nelson Rodrigues na cabeceira e na pasta. Não há leitura mais compatível com o tempo restrito e a toda hora interrompido.

Parágrafos iniciais do artigo com o título acima, Folha de São Paulo, 19/3/1996, 1º caderno, p. 2 – Opinião.

O artigo já tem mais de 10 anos e o ritmo da vida não desacelerou. Você conseguiu ler algum livro inteiro este ano? Mais de um? Quantos? Ou também você, como eu e o ex-presidente do BNDES, também anda lendo muito picado, cara e caro leitor? Faça seu comentário.

Sobre livros e leitura, Arthur Schopenhauer

...
Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos seu processo mental. Trata-se de um caso semelhante ao do aluno que, ao aprender a escrever, traça com a pena as linhas que o professor fez com o lápis. Portanto, o trabalho de pensar nos é, em grande parte, negado quando lemos. Daí o alívio que sentimos quando passamos da ocupação com nossos próprios pensamentos à leitura.

Durante a leitura nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios. Quando estes, finalmente, se retiram, que resta? Daí se segue que aquele que lê muito e quase o dia inteiro, e que nos intervalos se entretém com passatempos triviais, perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria, como quem sempre anda a cavalo acaba esquecendo como se anda a pé.

Este, no entanto, é o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada a todo instante, paralisa o espírito ainda mais que um trabalho manual contínuo, já que neste ainda é possível estar absorto nos próprios pensamentos.

Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pelo peso contínuo de um corpo estranho, o mesmo acontece com o espírito pela imposição ininterrupta de pensamentos alheios. E assim como o estômago se estraga pelo excesso de alimentação e, desta maneira prejudica o corpo todo, do mesmo modo pode-se também, por excesso de alimentação do espírito, abarrotá-lo e sufocá-lo.

Porque quanto mais lemos menos rastro deixa no espírito o que lemos: é como um quadro negro, no qual muitas coisas foram escritas umas sobre as outras. Assim, não se chega à ruminação [em nota: "Na prática, o fluxo contínuo e forte de novas leituras só serve para acelerar o esquecimento do já lido."]: e só com ela é que nos apropriamos do que lemos, da mesma forma que a comida não nos nutre pelo comer mas pela digestão.

Se lemos continuamente sem pensar depois no que foi lido, a coisa não se enraíza e a maioria se perde. Em geral não acontece com a alimentação do espírito outra coisa que com a do corpo: nem a qüinquagésima parte do que se come é assimilado, o resto desaparece pela evaporação, pela respiração ou de outro modo.

Acrescente-se a tudo isso que os pensamentos postos no papel nada mais são que pegadas de um caminhante na areia: vemos o caminho que percorreu, mas para sabermos o que ele viu nesse caminho, precisamos usar nossos próprios olhos.

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É por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante. Esta arte consiste em nem sequer folhear o que ocupa o grande público, o tempo todo, com panfletos políticos ou literários, romances, poemas, etc., que fazem tanto barulho durante algum tempo, atingindo mesmo várias edições no seu primeiro e último ano de vida: deve-se pensar, ao contrário, que quem escreve para palhaços sempre encontra um grande público e consagre-se o tempo sempre muito reduzido de leitura unicamente às obras dos grandes espíritos de todos os tempos e de todos os países, que se destacam do resto da humanidade e que a voz da fama identifica. Só eles educam e ensinam realmente.

Os ruins nunca lemos de menos e os bons nunca relemos demais. Os livros ruins são veneno intelectual: eles estragam o espírito.

Para ler o bom uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos.

Arthur Schopenhauer, Sobre livros e leitura. Über lesen und bücher. Ed. bilíngüe. Trad. de Philippe Humblé e Walter Carlos Costa. Florianópolis: Paraula, 1994, p. 17-19-21; 33 e 35.

Na segunda metade do século XIX, quando se vivia o que chegou a ser chamado de "leituromania", as críticas de Schopenhauer nos lembram críticas feitas hoje ao uso imoderado da televisão e mesmo as que se fazem às práticas de jogos eletrônicos e mesmo da Internet, especialmente pelos jovens. O que lhe parece, cara leitora e raro leitor?

Haverá sempre uma elite (pretensa ou não) para criticar tudo que possa ser acessível a muitos - às massas? O que acha dessas recomendações? Serão radicais, no mau sentido?
Ler muito pode embotar o pensamento próprio ou, como diz, hoje, Michel de Certeau, todo consumo cultural é sempre um ato criador? Faça seu comentário.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Sobre a leitura, de Marcel Proust

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E nisto reside, com efeito, um dos grandes e maravilhosos caracteres dos belos livros (que nos fará compreender o papel, ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual) que para o autor poderiam chamar-se “Conclusões” e para o leitor “Incitações”. Sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde a do autor termina, e gostaríamos que ele nos desse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos.

Estes desejos, ele não pode despertar em nós senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar. Mas por uma lei singular e, aliás, providencial da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de ninguém e que devemos criá-la nós mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos aparece senão como começo da nossa, de sorte que é no momento em que eles nos disseram tudo que podiam nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que ainda nada nos disseram. (...)

Este é o preço da leitura e esta é a sua insuficiência. É dar um papel muito grande ao que não é mais que uma iniciação para uma disciplina. A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constitui. (...)

Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar. Torna-se perigosa, ao contrário, quando, em lugar de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se a ela, quando a verdade não aparece mais como um ideal que não podemos realizar senão pelo progresso íntimo de nosso pensamento e pelo esforço de nosso coração, mas como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros como um mel todo preparado pelos outros e que não temos senão de fazer o pequeno esforço para pegar nas prateleiras das bibliotecas e, em seguida, degustar passivamente num repouso perfeito do corpo e do espírito. (...)

Schopenhauer não avança jamais uma opinião sem apóia-la imediatamente em várias citações,
mas sente-se que os textos citados não são para ele senão exemplos, alusões inconscientes e antecipadas nas quais ele gosta de reencontrar traços de seu próprio pensamento, mas que não o inspiraram em nada. (...)

Se já me deixei levar tão longe por Schopenhauer, teria prazer em completar essa pequena demonstração com a ajuda dos Aforismos sobre a Sabedoria na Vida, que é, talvez, de todas as obras que conheço, aquela que supõe num autor, juntamente com o máximo de leitura, o máximo de originalidade, de forma que no frontispício deste livro, no qual cada página contém várias citações, Schopenhauer pode escrever do modo mais sério do mundo: “Compilar não é o que convém”. (...)

Estes trechos foram sacados para a discussão com nossas raras leitoras (e leitores) do pequeno livro de Marcel Proust, Sobre a leitura, traduzido por Carlos Vogt, e editado pela Pontes, de Campinas, em 1989, p. 30ss. O texto foi publicado originalmente como um Prefácio para o livro de John Ruskin, Sésame et le lys, publicado na França em 1903. Muito além do que aí em cima está, o texto contém recordações (d)escritas com rara beleza – o que não surpreende a ninguém – sobre leituras infantis do autor. A não perder. Direto à estante!

segunda-feira, 2 de abril de 2007

2 de abril - Dia Internacional do Livro Infantil


Querido Francesco, era uma vez um menino loiro, que brincava com o seu pai num grande parque, e havia muitos animais, e uma joaninha que, voando, pousou na sua mão, e o menino compreendeu, sem dar-se conta, que aquela joaninha queria uma história; e quem devia inventar a história era ele, pois a joaninha não tinha uma história dela. E o menino começou a contar uma história na qual a joaninha era um pequeno bicho que vivia nos livros, escondia entre as páginas, e sabia fazer mágica, sabia mudar a ordem das letras impressas, voando de uma página para outra, de forma que cada vez que você pegasse o livro pudesse ler uma história diferente, não muito diferente, no entanto, só um pouquinho. Pois lá bem no fundo, Francesco, as histórias não são tão diferentes assim, umas das outras, só um pouquinho, como a sua história da joaninha, como a deste livro, que mudará toda vez que você voltar a lê-lo, talvez só um pouquinho, para que você possa descobrir coisas sempre novas. Porque é assim que os livros são, pequeno Francesco, não precisam do mundo, é o mundo que precisa deles. Lembre as palavras do venerável Borges: todas las cosas del mundo llevan a uma cita o a un libro...

Epílogo do livro Se uma criança, numa manhã de verão... Carta para meu filho sobre o amor pelos livros, de Roberto Cotroneo, trad. de Mário Fondelli, Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
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O dia 2 de abril, data de nascimento do escritor dinamarquês Hans Christien Andersen, é pouco comemorado no Brasil - talvez por ser 18 de abril - dia de nascimento de Monteiro Lobato - o Dia Nacional do Livro Infantil - mas não só.
A data me trouxe à lembrança a leitura do livro do crítico italiano Roberto Cotroneo que Lizete descobriu e me emprestou. Apesar de não gostar da capa, a referência no título ao livro de Italo Calvino, já citado aqui no blog, tornou-o simpático para mim. A leitura foi agradável e muito proveitosa.

Cotrôneo, citando também Rainer Maria Rilke, em sua Carta a um jovem poeta, escreve uma carta a seu filho Francesco, na qual, através das referências que faz à leitura de certas obras consagradas, como A ilha do tesouro, de Robert Stevenson, O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, ao poema de T. S. Eliot, A terra devastada, e a outras, indica-nos como a literatura pode ser uma forma de aprendizado para a vida, através da experiência de personagens "reais", com quem podemos conviver nas obras de ficção e na poesia.

Você, raro leitor ou leitora, já o leu? Tem algo a contar?

PS: A ilustração acima é a reprodução da capa da obra do italiano C. Collodi, Pinóquio, um dos livros infantis de maior sucesso no mundo, certamente em sua primeira edição integral em português, com tradução de Mary Baxter Lee, editada lindamente pela Francisco Alves e que é uma das raridades do acervo do LIHED/UFF, em breve acessível a pesquisadores na sala 5F da Biblioteca Central do Gragoatá, da Universidade Federal Fluminense – UFF, em Niterói, Rio de Janeiro.