...
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória –, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe –, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaço, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; ás águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins –, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo-esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. (...)
Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar. (...)
Mas, é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra.
A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.
In A importância do ato de ler. 29a. ed. S. Paulo: Cortez, 1994, p. 12-15.
Paulo Freire é um dos brasileiros mais notáveis de toda nossa história e suas contribuições à Educação têm alcance nacional e internacional. Certamente é um de nossos autores mais traduzidos e respeitados também no exterior.
O trecho acima é parte da conferência que fez na abertura do 3º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, promovido pela Associação de Leitura do Brasil (ALB), em 1982.
Podemos afirmar que o livro que contém essa bela conferência (e outra: “Alfabetização de adultos e bibliotecas populares – uma introdução” e o artigo “O povo diz a sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe”) é um dos grandes best-sellers de nossa bibliografia pedagógica, certamente pela importância que teve e tem para a compreensão da leitura e de suas práticas sociais.
Ela pode ser complementada com a entrevista dada por Paulo Freire a Ezequiel Theodoro da Silva, um dos fundadores da ALB, “Da leitura do mundo à leitura da palavra”, que está no número zero da revista Leitura: Teoria e Prática, de novembro de 1982, publicada pela ALB/Mercado Aberto (Porto Alegre-RS), tendo como jornalista responsável Antônio Hohlfeldt.
Conheça mais da ALB e do COLE em http://www.alb.com.br/ .
Conheça mais de Paulo Freire em www.paulofreire.org
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória –, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe –, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaço, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; ás águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins –, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo-esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. (...)
Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar. (...)
Mas, é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra.
A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.
In A importância do ato de ler. 29a. ed. S. Paulo: Cortez, 1994, p. 12-15.
Paulo Freire é um dos brasileiros mais notáveis de toda nossa história e suas contribuições à Educação têm alcance nacional e internacional. Certamente é um de nossos autores mais traduzidos e respeitados também no exterior.
O trecho acima é parte da conferência que fez na abertura do 3º COLE – Congresso de Leitura do Brasil, promovido pela Associação de Leitura do Brasil (ALB), em 1982.
Podemos afirmar que o livro que contém essa bela conferência (e outra: “Alfabetização de adultos e bibliotecas populares – uma introdução” e o artigo “O povo diz a sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe”) é um dos grandes best-sellers de nossa bibliografia pedagógica, certamente pela importância que teve e tem para a compreensão da leitura e de suas práticas sociais.
Ela pode ser complementada com a entrevista dada por Paulo Freire a Ezequiel Theodoro da Silva, um dos fundadores da ALB, “Da leitura do mundo à leitura da palavra”, que está no número zero da revista Leitura: Teoria e Prática, de novembro de 1982, publicada pela ALB/Mercado Aberto (Porto Alegre-RS), tendo como jornalista responsável Antônio Hohlfeldt.
Conheça mais da ALB e do COLE em http://www.alb.com.br/ .
Conheça mais de Paulo Freire em www.paulofreire.org
Imagem, fonte e créditos: Instituto Paulo Freire www.paulofreire.org
Você, rara ou raro leitor, quer compartilhar conosco de forma breve suas lembranças de iniciação à leitura? Faça seu comentário.
Você, rara ou raro leitor, quer compartilhar conosco de forma breve suas lembranças de iniciação à leitura? Faça seu comentário.
Um comentário:
EEmbora seja um artigo postado há vários anos, é muito atual. Nas palavras de Paulo Freire pude me encontrar, quando menciona seu quintal, suas árvores, seu início da leitura. Não fora diferente desta que escreve. Uma ameixeira soube muito bem balançar meus pensamentos e minhas canções, que entoava ao balançar contínuo num vai e vem de uma criança que estava descobrindo, por si mesma, o mundo. Percebia-me, sem que o suspeitasse a ler através das folhas das árvores o seu balançar suave, as extensas fileiras de formigas inofensivas, aparentemente, mas que ao serem tocadas mostravam-se fortes ao provocar uma ferroada dolorida, trabalhavam incessantemente, levando pequenas folhas, muitas das quais maiores até que seus tamanhos, instigavam a mente daquela que crescia entre o aconchego suave de um lar amoroso, um vasto céu que se podia enxergar azul, recortado por névoas frias na maioria do tempo – estávamos então na capital paulista (São Paulo da goroa da década de 50). Era o desbravar da pequena menina que despontava para o mundo das letras, dos livros e da leitura. A leitura dos significados, da inquirição, da dúvida, da crítica. Era o ato de ler que não se contentava com a mecanicidade da leitura, mas se importava e buscava seu fundamento. Era a criança que crescia entre livros, numa pequena biblioteca formada pelo pai, a leitura que a mãe lhe fazia a embalar os filhos ao sono, forjava-lhe o prazer do estar entre livros. Livros que faz o povo pensar. Maravilhoso universo. Premio maior de poder sentir o gosto ao ver seu texto O ato de ler ser escolhido pelo ENEM 2006, a figurar como tema motivador para a redação. O amigos do livro, site hospedeiro, facilitador da visibilidade à nível mundial, fora palco desta representação para esta que escreve. Paulo Freire meu tributo sempre. Ao idealizado deste espaço parabéns pela iniciativa e disponibilidade de tantos assuntos, os quais tanto somos carentes e ávidos por saber. Também tenho procurado contribuir com o universo dos livros e da leitura, por meio de alguns blogs, tais quais http://blog-inaja.blogspot.com/ onde procuro colocar experiências próprias como bibliotecária e resgatar um pouco o vasto universo dos livros e das leituras. Recolhendo retalhos, a colcha continua sendo tecida. / Inajá Martins de Almeida
Postar um comentário