quinta-feira, 5 de julho de 2007

Olavo Bilac e uma profissão de fé

Profissão de fé

(...)
Mais que esse vulto extraordinário,
Que assombra a vista,
Seduz-me um leve relicário
De fino artista.

Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto-relevo
Faz de uma flor.

Imito-o e, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,
A idéia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,
Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:

E que o lavor do verso, acaso,
Por tão sutil,
Possa o lavor lembrar de um vaso
De Becerril.

E horas sem conta passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento.

Porque o escrever – tanta perícia,
Tanta requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.
(...)


A um poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício.

Porque a beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.

Língua portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho.


Os poemas foram transcritos do pequeno volume Olavo Bilac, o segundo da extensa coleção Nossos Clássicos, da Agir - uma grande iniciativa editorial para oferecer maior acessibilidade a textos de escritores brasileiros e portugueses consagrados (o primeiro volume é dedicado a Fernando Pessoa), coordenada por Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. O volume que nos serviu é de autoria de Alceu Amoroso Lima, em sua 7ª edição, de 1980. Procure-o em sua próxima visita a uma livraria ou sebo e delicie-se com uma boa recolha de uma obra que, sendo expressão de seu tempo, o é também da riqueza de nossa língua e da sua melhor poesia.

Em 3 de março pp começamos a lançar ao mar nesta rede que, ao contrário da do pescador, liberta e amplia os peixes, estes despretensiosos apontamentos sobre o ler e o escrever. Hoje alcançamos a centésima postagem! Atrevemo-nos a dizer que agora vai se tornando possível atribuir valor qualitativo mais que quantitativo ao adjetivo “raro” que ajuntamos quando nos dirigimos ao nosso leitor e leitora. Isso já poderia justificar as horas ou minutos arrancados do escasso tempo, nosso e seu, rara leitora. Os retornos, as trocas, os comentários, muitas vezes mais ricos que as sementes lançadas, estimulam a continuidade deste exercício que é, em grande parte, homenagem à língua portuguesa, o que levou à escolha (para este centenário) de escritos de Olavo Bilac (1865-1918), cuja obra poética é dela belíssima expressão e permanente culto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais um dia ameno,
sem grandes calores
ou arrepios
A tarde encerra seu turno
e pelo vão do horizonte se vai
Mais uma vez, a noite me cai
feito luva,
veste exata

A lua a iluminar os becos
em que (me) perco
palavra
a
palavra.

*** *** ***

"E horas sem conta passo, mudo,
O olhar atento,
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento."