sábado, 26 de julho de 2008

Carlos Drummond de Andrade: A um jovem (última parte)



Mando-lhe aqui jovem Alípio, outras drágeas de suposta sabedoria, completando assim a instrução que lhe ministrei.

XIV – Procure fazer com que seu talento não melindre o de seus companheiros. Todos têm direito a presunção de genialidade exclusiva.

XV – Faça fichas de leitura. As papelarias apreciam esse hábito. As fichas absorverão o seu excesso de vitalidade e, não usadas, são inofensivas.

XVI – Se sentir propensão para o “gang” literário, instale-se no seio de sua geração e ataque. Não há polícia para esse gênero de atividade. O castigo são os companheiros e depois o tédio.

XVII – Não se julgue mais honesto que o seu amigo porque soube identificar um elogio falso, e ele não. Talvez você seja apenas mais duro de coração.

XVIII – Evite disputar prêmios literários. O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por juízes que o seu senso crítico jamais premiaria.

XIX – Sua vaidade assume formas tão sutis que chega a confundir-se com modéstia. Faça um teste: proceda conscientemente como vaidoso, e verá como se sente à vontade.

XX – Seja mais tolerante com o cabotinismo de seu amigo; quase sempre esconde uma deficiência, e só impressiona a outros cabotinos.

XXI – Quanto ao seu próprio cabotinismo, ele esfriará se você observar que, na hipótese mais cristã, é objeto de tolerância alheia.

XXII – Antes de reproduzir na orelha de seu livro a opinião do confrade, pense, primeiro, que ele não autorizou a divulgação; segundo, que a opinião pode ser mera cortesia; terceiro, que você não admira tanto assim o confrade.

XXIII – Procure ser justo com os outros; se for muito difícil, bondoso; na pior eventualidade, omisso.

XXIV – Opinião duradoura é a que se mantém válida por três meses Não exija maior coerência dos outros nem se sinta obrigado intelectualmente a tanto. E proceda à revisão periódica de suas admirações

XXV – Procure não mentir, a não ser nos casos indicados pela polidez ou pela misericórdia. É arte que exige grande refinamento, e você será apanhado daqui a dez anos se ficar famoso; e se não ficar não terá valido a pena.

XXVI – Deixe-se fotografar à vontade, sem chamar os fotógrafos; não recuse autógrafos, mas não se mortifique se não os pedirem. Homero não deixou cartas nem retratos, mas Baudelaire deixou uns e outros. O essencial se passa com outros papéis.

XXVII – Você tem um diário para explicar-se; é assim tão emaranhado? Para justificar-se: sua consciência anda meio turva? Para projetar-se no futuro: julga-se tão extraordinário?

XXVIII – Trate as corporações com cortesia, pois poderá vir a ingressar numa; com indiferença, pois o mais provável é não ingressar nunca.

XXIX – Aplique-se a não sofrer com o êxito de seu companheiro, admitindo embora que ele sofra com o de você. Por egoísmo poupe-se qualquer espécie de sofrimento.

XXX – Boa composição oral é a de orgulho e humildade; esta nos absolve de nossas fraquezas; aquele nos impede de cair em outras. Quanto aos santos-escritores, é de supor que foram canonizados apesar da condição literária.

XXXI – Seja discreto. É tão mais cômodo!

[1953]


In Carlos Drummond de Andrade, A bolsa & a vida. Crônicas. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 115-118.

Raro leitor, completamos aqui as "recomendações" de Drummond ao Alípio, jovem aspirante a escritor. Já se passaram cinqüenta anos que as escreveu e por elas podemos (supostamente) conhecer sua percepção do que era, para ele, ser escritor, então. E sua sabedoria..

Ser escritor hoje é, ao menos em parte, outra coisa. Todos nós podemos nos achar escritores. Publicar já não é tão difícil quanto antes, ao contrário. A árdua tarefa é encontrar leitores. Existem, raros, preciosos, cúmplices. É para eles que a grande maioria dos que escrevem, escreve. Todos, sobreviventes da galáxia de Gutenberg. Viva Benjamin, salve McLuhan: vocês perceberam antes e nos alertaram. Sim, somos incorrigíveis. Não acha?

Um comentário:

Henrique Chaudon disse...

Amigo Aníbal:
Creio que ao escrever o autor tem em seu espírito a imagem de um "leitor-ideal", a quem se destinam seus textos. Esse abstrato leitor talvez seja um amálgama de todos os autores que o escritor já leu e que verdadeiramente admira, compondo uma espécie de super-ego vigilante, um paradigma.
O que pensarão a esse respeito outros(as)raros(as) leitores(as)?
Abraço.