sábado, 5 de julho de 2008

Hermann Hesse: Leituras e livros

Os livros não existem para tornar mais dependentes ainda pessoas já de si tão dependentes. Muito menos existem eles para dar a homens de si inaptos para viver uma mera ilusão ou sucedâneo de vida. Ao contrário. Os livros só têm valor quando nos estimulam a viver, quando servem à vida e lhe são úteis. Desperdiçada toda hora de leitura da qual não resulte para o leitor uma centelha de energia, uma impressão de rejuvenescimento, um sopro do novidade e de viço.

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Ler sem pensar, ler distraidamente, é como passear por entre belas paisagens com os olhos vendados. Tampouco devemos ler para esquecer-nos a nós e à nossa vida cotidiana, mas, ao contrário, para reassumirmos em nossas mãos firmes e da maneira mais consciente e madura a nossa própria existência. (...)

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Sempre nos conforta a alma o livro antigo que a nós se dirige com sua voz vinda de tão longe. Podemos ouvi-la ou não. E se, de repente, certas palavras ou expressões mais percucientes nos atingem de cheio com o seu brilho, não as recebemos como de um livro de hoje, escrito por este ou aquele autor. Ao contrário, acolhemo-las como de primeira mão, como um grito de gaivota ou um raio de sol.

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Podemos tranqüilamente deixar de ler muitos manuais, compêndios e históras da filosofia. Qualquer obra de um pensador original nos fornece coisa melhor, pois nos faz pensar em nós mesmos e nos educa e revigora a consciência.

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Quanto mais, ao longo do tempo, a necessidade que sente o povo de se divertir e de se instruir é satisfeita graças às novas invenções da técnica, tanto mais valor e autoridade ganham os livros. Não obstante todo o progresso atual, felizmente essas novas descobertas como, por exemplo, o rádio, o cinema etc., ainda não conseguiram retirar ao livro impresso as funções lhe são próprias.

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Ocorre com a leitura o mesmo que com qualquer outra espécie de prazer: este será sempre mais profundo e duradouro, quanto mais intimamente e com amor a ele nos entregamos.

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Segundo minha própria experiência, não há propósito melhor para as férias do que o de não ler uma só linha. E, depois, se a oportunidade for favorável, nada mais delicioso do que ser infiel àquele propósito e ler um livro realmente bom.


Hermann Hesse, “Leituras e livros”, in Para ler e pensar. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, s/d.

Passou-nos despercebido o dia de aniversário de nascimento de Hermann Hesse (2/7/1877-9/8/1962). Só hoje o registramos aqui, com esta seleção de seus pensamentos sobre livros e leituras, extraídos de Para ler e pensar, um volume que reúne aforismos extraídos de seus livros e cartas.

Hesse, alemão, é um dos mais admiráveis escritores da literatura ocidental, Prêmio Nobel em 1946, autor de clássicos modernos como os romances O lobo da estepe, Sidarta, Demian, O jogo das contas vidro, Narciso e Goldmund, dentre outros sucessos.

Que tal, rara leitora, um retorno a seus livros, hoje menos em voga do que nos anos de minha juventude (já se passou muito tempo...), mas sempre capaz de nos encantar e de nos fazer pensar, como ocorre com estas suas reflexões sobre livros e leituras?

Um comentário:

Henrique Chaudon disse...

Aníbal:
Das reflexões a respeito de livros e leituras feitas por veneráveis autores, que V. tem postado, essas de H. Hesse me parecem as mais diretas e sinceras.As menos 'literárias'. Até onde sei, Hesse foi um homem que amou e viveu profundamente a vida, os homens, a natureza. Ele não foi um escritor 'cerebrino'. Suas reflexões, portanto, são perfeitamente 'aplicáveis' a leitores comuns como nós.