quarta-feira, 16 de julho de 2008

Autor sem livro, por Maurice Blanchot

Que pensemos em Joubert como num escritor que nos é próximo, mais próximo do que os grandes nomes literários de que foi contemporâneo, não é apenas à obscuridade, aliás distinta, em que viveu, morreu e em seguida sobreviveu, que o ficamos a dever.

Não basta ser em vida um nome frouxamente iluminado para cintilar, como esperava Stendhal, um ou dois séculos mais tarde. Nem sequer basta a uma grande obra ser grande e manter-se firmemente à distância, para que a posteridade, um dia reconhecedora, a restitua ao brilho do dia.

É possível que a humanidade um dia conheça tudo, os seres, as verdades e os mundos, mas haverá sempre um obra de arte (talvez a arte na sua totalidade) que escapa a este conhecimento universal.

Esse o privilégio da actividade artística: o que ela produz, frequentemente até um deus o deve ignorar.

A verdade é que muitas obras se esgotam prematuramente por serem demasiado admiradas. Essa grande fogueira da glória com que os escritores e os artistas, à medida que envelhecem, se regozijam, e que lança as últimas chamas por ocasião da sua morte, queima neles uma substância que doravante faltará a sua obra.

O jovem Valéry procurava em todos os livros célebres o erro que os torna conhecidos: juízo de aristocrata. Mas muitas vezes tem-se a impressão de que a morte vai trazer finalmente silêncio e calma à obra abandonada a si própria.

Em vida, até o escritor mais desprendido e mais negligente luta pelos seus livros. Vive, é quando basta; mantém-se por detrás deles, através dessa vida que lhe resta e que lhes dá de presente. Mas a sua morte, ainda que passe despercebida, restaura o segredo e encerra de novo o pensamento.

Irá este, ao ficar só, desdobrar-se ou estreitar-se, desfazer-se ou realizar-se, encontrar-se ou ficar em falta perante si próprio? E ficará ele alguma vez só? Nem o esquecimento recompensa sempre aqueles que parecem tê-lo merecido pelo dom de grande discrição que possuíram.

Joubert teve esse dom. Nunca escreveu um livro. Apenas se preparou para escrever um, procurando com determinação, as condições justas que lhe permitiram escrevê-lo. Depois, até esse desígnio ele esqueceu.

Mais precisamente, o que Joubert procurava, essa nascente da escrita, esse espaço onde escrever, essa luz a circunscrever no espaço, exigiu dele, afirmou nele disposições que o tornaram impróprio para todo o trabalho literário comum ou o levaram a desviar-se dele.

Foi, por isso, um dos primeiros escritores inteiramente modernos, preferindo o centro à esfera, sacrificando os resultados à descoberta das suas condições e escrevendo, não para acrescentar um livro a outro livro, mas para se tornar senhor do ponto de onde lhe parecia que saíam todos os livros e que, uma vez encontrado, o dispensaria de os escrever.

(...)

Por que é que Joubert não escreve livros? Desde muito cedo, só presta atenção e interesse ao que se escreve e ao facto de escrever. Jovem, está muito próximo de Diderot; um pouco mais tarde, de Restif de la Bretonne, ambos literatos de quantidade. Os anos de maturidade quase não lhe trazem outros amigos que não sejam escritores célebres, através dos quais a sua vida se liga à literatura e que, além disso, conhecendo os seus talentos consumados de pensamento e de forma, o empurram suavemente para fora do silêncio.

Finalmente, ele não é de modo nenhum um homem a quem as dificuldades de expressão paralisem: as suas cartas, numerosas, extensas, são escritas com essa aptidão para escrever que é como que o dom do seu século e à qual ele alia cambiantes de espírito e ornatos de frase que o mostram sempre feliz por falar e feliz em palavras.

Contudo, este homem extremamente capaz e que quase todos os dias tem ao seu lado um caderno onde escreve, não publica nada e não deixa nada para ser publicado. (...)

Joubert, apesar de aparentemente só redigir reflexões deveras abstractas, não duvida, autor sem livro e escritor sem escrito, de que já se encontra na pura dependência da arte. “Aqui, estou fora das coisas civis e na pura região da Arte”. (...)

In Maurice Blanchot. O livro por vir. Trad. de Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio d’Água, 1984, p. 59-65. Recentemente foi lançada um edição brasileira deste livro nada fácil, pela Martins Fontes, certamente com uma tradução melhor.

Este fragmento, retirado de “A questão literária”, segunda parte da obra O livro por vir, do ensaísta e crítico francês Blanchot, pretende propor um diálogo com o texto de Gilberto Freyre aqui publicado. Tão distantes, ambos trataram do tema do escritor sem livros, da efemeridade/imortalidade da obra literária. Isso lhe diz algo, raro leitor?

Para saber mais:

Sobre Maurice Blanchot (1907-2003):
http://www.mauriceblanchot.net/blog/ (em francês) e
“A conversa infinita: a palavra plural – Maurice Blanchot”, por Ademir Demarchi, em
http://www.storm-magazine.com/arquivo/ArtigosDez_Jan/Artes/a_jan2002_1b.htm#A%20Palavra%20Plural

De Joseph Joubert (1754-1824): leia alguns pensamentos, a começar por este:
“A política tira a metade do espírito, a metade do bom senso, três quartos da bondade e certamente todo o repouso e a felicidade", em:
http://pt.wikiquote.org/wiki/Joseph_Joubert

Um comentário:

Henrique Chaudon disse...

Aníbal:

"De modo que o livro que verdadeiramente satisfaz e delicia o puro artista ou o pensador é o que ele deixa ficar nas primeiras provas tipográficas da criação mental, nas dobras dos miolos, em estado plástico para ir sendo corrigido, atualizado, recriado de acordo com as conquistas de sua experiência íntima."
Este fragmento de Gilberto Freyre parece ilustrar à perfeição a atitude de Joubert. Aliás, creio ser lícito supor que a quantidade de 'autores sem livro' é imensa.
Não só no domínio das artes mas também no da vida prática certamente infinitos atos ou obras permanecem unicamente na imaginação de seus autores em potencial. Não realizar é a única forma de não errar. Felizmente há também os muitos que erraram e erram, dia a dia. O que nos move e sustenta são essas tentativas e erros. Mas há muitos acertos, sem dúvida.
Grande abraço.