sexta-feira, 6 de abril de 2007

Literatura, filosofia e amizade – Drummond e Sloterdijk


O que há de mais importante na literatura, sabe? é a aproximação, a comunhão que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e de Virgílio. Somos amigos pessoais deles. Se alguém perto de mim falar mal de Verlaine, eu o defendo imediatamente; todas as misérias de sua vida são resgatadas pela música de seus versos. Como defenderia um amigo pessoal. (...) o maior prêmio de Estocolmo ou dos Estados Unidos não vale o telegrama de amor que alguém desconhecido, e que não conheceremos nunca, nos manda lá do Pará porque leu uma coisa nossa e ficou comovido e rendido.

Carlos Drummond de Andrade, Tempo, vida, poesia. Confissões no rádio. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 58

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Livros, observou certa vez o escritor Jean Paul [1763-1825], são cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas. Com esta frase ele explicitou precisamente, de forma graciosa e quintessencial, a natureza e a função do humanismo: a comunicação propiciadora de amizade realizada à distância por meio da escrita. O que desde os dias de Cícero se chama humanitas faz parte, no sentido mais amplo e no mais estrito, das conseqüências da alfabetização.

Desde que existe como gênero literário, a filosofia recruta seus seguidores escrevendo de modo contagiante sobre amor e amizade. Ela é não apenas um discurso sobre o amor à sabedoria, mas também quer impelir outros a esse amor. Que a filosofia escrita tenha logrado manter-se contagiosa desde seus inícios, há mais de 2.500 anos, até hoje, deve-se ao êxito de sua capacidade de fazer amigos por meio do texto. (...)

Faz parte das regras do jogo da cultura escrita que os remetentes não possam antever seus reais destinatários; não obstante, os autores lançam-se à aventura de pôr suas cartas a caminho de amigos não-identificados.

Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. de José Oscar de Almeida Marques. S. Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 7-8.

Não resisti a registrar a coincidência de posições sobre o maior valor da literatura e da filosofia, entre nosso poeta maior, definida em entrevista concedida a Lya Cavalcanti, em programa na Rádio MEC, só muito tempo depois transcrita e publicada, no livro Tempo Vida Poesia, que merece ser revisitado, e a do polêmico filósofo alemão, nascido em 1947, e autor, também, de O desprezo das massas. Ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna.

Para mim, sem qualquer dúvida, os livros foram ponte para a construção de amizades, distantes e, especialmente, próximas. Tudo começou quando, em 1966, iniciei minha atividade de livreiro em Niterói (Encontro, Diálogo, LUFE, Centro do Livro/Livros para Todos, Pasárgada), que se estendeu até 1986. Foram 20 anos fazendo muitos amigos e amigas através de livros e leituras. E vivi ainda, tempos depois, a breve experiência, da criação do Sebo Fino.

Na Universidade, em relação mais delicada e complexa com alunas e alunos, tivemos sempre livros como mediadores, às vezes felizes outras nem tanto. Já então se iniciava um tempo em que, mesmo no ensino superior ler livros ou mesmo capítulos, se faz, em geral, com alguma resistência, maior ou menor. As exceções, de jovens aficicionados pela leitura, confirmam a regra e trazem muitas recompensas.

Quando foi publicado o Livraria Ideal, do cordel à bibliofilia, em 1999, ah!, quantas alegrias, dessas a que se refere o Drummond. Com alguns leitores, ficamos amigos 'para sempre' a partir da história de Silvestre Mônaco e sua livraria em Niterói.

E você, rara leitora e leitor, tem alguma história de amor ou de amizade construída a partir de livros e leituras, como nos indicam Drummond e Sloterdijk? Acrescente seu comentário.

4 comentários:

Anônimo disse...

Cada vez que entro no Blog sinto-me puxada - às vezes docemente,às vezes impetuosamente - a uma aventura assim de amizade medida por livros e lembranças... Para mim foram poucos os momentos na vida em que pude saborear uma amizade acompanhada de livros. Por vezes os livros me arrebatam de tal forma que me alieno de tudo o mais e de todos...Será realmentre possível "comungar" um livro com alguém?

Aníbal Bragança disse...

Cara Cynthia,
mesmo que o percurso de experiência da leitura - a construção do sentido - seja sempre muito pessoal, há pessoas que fazem parte de uma "confraria" e como tal percebem e compartilham afinidades na forma de sentir o mundo e as pessoas. Eu sinto-me quase irmão de todos os que leram e se emocionaram com as experiências de dos personagens de Hermann Hesse.
E outros. Quero descobrir parceiras e parceiros em Graham Greene, especialmente em O coração da matéria. Você o leu?
Um abraço,
Aníbal

Veronica Arteira disse...

Posso usar o seu artigo, com o devido link, no meu blog? Há um movimento " Atentado Cultural"

- No sábado, dia 20, façamos a diferença. Deixe um livro (você sempre tem um que não lerá mais) num ponto de ônibus, praça de alimentação, banco de jardim, balcão de padaria, açougue, farmácia...
Se você apoia esta ideia, compartilhe e divulgue em outras mídias.
UM DIA = UM LIVRO. 20 DE AGOSTO. UM SÁBADO "A GOSTO".
Com dedicatória no livro ainda fica mais legal. -

e vou divulgar no blog. Gostaria de ilustrar com os trechos dos livros que citou aqui.
Aguardo contato.

Veronica Arteira disse...

Já postei lá, professor. Pode conferir e participar do movimento!
Abraços e obrigada!