quarta-feira, 4 de abril de 2007

Sobre a leitura, de Marcel Proust

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E nisto reside, com efeito, um dos grandes e maravilhosos caracteres dos belos livros (que nos fará compreender o papel, ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual) que para o autor poderiam chamar-se “Conclusões” e para o leitor “Incitações”. Sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde a do autor termina, e gostaríamos que ele nos desse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos.

Estes desejos, ele não pode despertar em nós senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar. Mas por uma lei singular e, aliás, providencial da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de ninguém e que devemos criá-la nós mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos aparece senão como começo da nossa, de sorte que é no momento em que eles nos disseram tudo que podiam nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que ainda nada nos disseram. (...)

Este é o preço da leitura e esta é a sua insuficiência. É dar um papel muito grande ao que não é mais que uma iniciação para uma disciplina. A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constitui. (...)

Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar. Torna-se perigosa, ao contrário, quando, em lugar de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se a ela, quando a verdade não aparece mais como um ideal que não podemos realizar senão pelo progresso íntimo de nosso pensamento e pelo esforço de nosso coração, mas como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros como um mel todo preparado pelos outros e que não temos senão de fazer o pequeno esforço para pegar nas prateleiras das bibliotecas e, em seguida, degustar passivamente num repouso perfeito do corpo e do espírito. (...)

Schopenhauer não avança jamais uma opinião sem apóia-la imediatamente em várias citações,
mas sente-se que os textos citados não são para ele senão exemplos, alusões inconscientes e antecipadas nas quais ele gosta de reencontrar traços de seu próprio pensamento, mas que não o inspiraram em nada. (...)

Se já me deixei levar tão longe por Schopenhauer, teria prazer em completar essa pequena demonstração com a ajuda dos Aforismos sobre a Sabedoria na Vida, que é, talvez, de todas as obras que conheço, aquela que supõe num autor, juntamente com o máximo de leitura, o máximo de originalidade, de forma que no frontispício deste livro, no qual cada página contém várias citações, Schopenhauer pode escrever do modo mais sério do mundo: “Compilar não é o que convém”. (...)

Estes trechos foram sacados para a discussão com nossas raras leitoras (e leitores) do pequeno livro de Marcel Proust, Sobre a leitura, traduzido por Carlos Vogt, e editado pela Pontes, de Campinas, em 1989, p. 30ss. O texto foi publicado originalmente como um Prefácio para o livro de John Ruskin, Sésame et le lys, publicado na França em 1903. Muito além do que aí em cima está, o texto contém recordações (d)escritas com rara beleza – o que não surpreende a ninguém – sobre leituras infantis do autor. A não perder. Direto à estante!

3 comentários:

Unknown disse...

Que sensibilidade para algo que parece tão esquecido no dia a dia de nosso povo: o hábito da leitura. Adorei o blog visitarei-o sempre que puder. Bjo!

Esther Lucio Bittencourt disse...

anibal, hoje não sei mais o que seja o prazer espiritual que uma leitura possa proporcionar. li e reli esta postagem e fico pasmada que ainda se fale e pense em espírito como algo inerente ao ser humano.

você conseguiu mobilizar uma inquietude em mim, neste momento. não sei nomeá-la. há tempos não penso sobre o prazer da leitura. apenas usufruo-o ou não. que coisa, não?
abraços

R.Joanna disse...

Li este texto numa edição original em francês, completo na sua magnitude. Cheguei a este blog porque procurava uma tradução em português para o dar a ler a todos aqueles de quem gosto.

Aplaudo este Ler, escrever e contar, e as suas belíssimas escolhas.