sexta-feira, 4 de abril de 2008

Rubem Fonseca: Dinheiro, magreza e livros

(...)
Assim como quem ganha muito dinheiro, mais dinheiro quer ganhar; a pessoa, quanto mais magra fica, mais magra quer ficar. (...) O que os livros têm a ver com dinheiro e magreza, conforme sugere o título deste pensamento imperfeito? Tudo. Os bibliomaníacos, quanto mais livros têm, mais livros querem ter, tornam-se também metacompulsivos, como os ricos e os magros. E o excesso dessas coisas pode fazer mal? Vejamos.

Dinheiro: o sujeito que é muito rico pode tornar-se um harpagão, como o personagem de Molière, exatamente por saber quanto o dinheiro vale. Marx disse que todo capitalista é um avarento. (...)

Magreza: a pessoa que é muito magra pode sofrer de doenças causadas por sua minguada morfologia. Menos resistentes a doenças, como tuberculose, são indivíduos expostos a maiores desgastes físicos do que os não-magros. (...)

E livros? Existe o problema do excesso de livros, nesta época de internet, em que a pessoa tem acesso a todos, repito, todos os livros importantes da literatura universal, apenas clicando os endereços eletrônicos de alguns sites?

Sabemos que quem não tem um livro, também não quer ter dois. Mas quem tem dois, acaba querendo ter três, e depois quer uma estante pequena, e depois um estante cobrindo toda uma parede. Começa a freqüentar livrarias e sebos. Acaba igual ao José Mindlin. E isso é um problema? É. Vai faltar espaço. Até (ou principalmente) para as bibliotecas públicas esse problema existe e sempre existiu, mesmo no mundo antigo, em que as coleções de escritos eram pequenos depósitos de manuscritos de pele de cabra ou rolos de papiro. Com a invenção de Gutemberg e as que se seguiram, a produção de livros cresceu vertiginosamente em todo o mundo. As bibliotecas públicas estão sufocadas de livros, pois partem do critério de que devem ter tudo que é publicação.

Os bibliômanos também acabam asfixiados pelos livros. Quando entro nos sebos ou passo por essas barracas de livros montadas periodicamente nas praças, contemplo aquela quantidade de livros, a maioria de autores obscuros e títulos desinteressantes, pergunto a mim mesmo o que faria com aqueles volumes se os tivesse nas minhas estantes já atulhadas de autores obscuros e títulos desinteressantes. Venderia? Doaria? Ninguém se interessaria por recebê-los de graça e eu teria que jogá-los no lixo seletivo de papéis e jornais velhos?

A verdade é que quando você tem muitos livros eles acabam se tornando um fardo pesado, mesmo se a sua casa for ensolarada e livre de mofo e cupins, o que é uma sorte grande. Sei que a maioria das pessoas tem poucas estantes em casa (ou nenhuma). Estão, portanto, fora destas cogitações. Mas alguns sofrem desse problema. O que fazer com os livros que você compra obsessivamente e que não encontram lugar nas suas estantes?

O problema do indivíduo não é tão complicado quanto o das grandes bibliotecas públicas, onde, segundo um bibliotecário, os livros crescem como ervas daninhas. Um pesquisador americano, Stanley J. Slote, lançou um livro, em l973, denominado Capinando as bibliotecas, mas pelo que se sabe o seu livro ainda não foi capinado. Ele é um precursor do monitoramento dos padrões de uso das bibliotecas, sugerindo que os livros devem ser divididos em duas categorias: os que são lidos e os que não são lidos. Os que não são lidos devem ser removidos e guardados em um depósito. Nos casos extremos devem ser eliminados. Ou seja, depois de algum tempo (vinte, cinqüenta, cem anos?) só serão encontrados nas bibliotecas públicas os preferidos do grande público, os mais fáceis de ler, certamente.

O Machado de Assis que se cuide.
In O romance morreu, crônicas. S. Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 128-132

A visita de hoje à Siciliano (já assumidamente incorporada à rede Saraiva) rendeu a compra, não programada, do livro de Rubem Fonseca, por causa da crônica acima e de outra, talvez ainda mais interessante, que dá título ao livro, sem o ponto de interrogação do original.

Tais temas me fizeram lembrar da alegria, misturada com pesar, ao encontrar em sebos obras raras (e valiososas para mim) com o carimbo de descarte da biblioteca por esse boçal critério quantitivo de uso; remeteram-me também a Gabriel Zaid, que escreveu uma pequena obra prima Livros demais!, publicada no Brasil pela Summus, e de um texto de Otto Maria Carpeaux, o grande crítico e enciclopedista de origem austríaca, onde escreveu que um editor lhe ofereceu quitar uma dívida com um monte de exemplares encalhados de um livro que havia publicado de um desconhecido, Franz Kafka. Carpeaux lamentava não ter aceito, dizendo que poderia ter ficado rico com a venda dos volumes algumas décadas depois. Mas trouxe-me à consciência, também, o pesado fardo que carrego, mesmo vivendo em casa ensolarada, livre de mofo e cupins, ao menos aparentemente.

E você, rara leitora, raro leitor, como é sua relação com os seus livros? Chegam a ser fardo ou não?

2 comentários:

Gracinda Rosa disse...

Anibal
No final do texto postado no dia 4/4, você coloca uma boa pergunta sobre a relação que seus leitores têm com o livro. Não posso dizer que comecei com um título, depois dois, passando a uma estante, etc. Meu primeiro contato com a leitura ocorreu, aos oito anos, quando meu pai adquiriu a coleção do Tesouro da Juventude, ainda com a velha ortografia. Os 18 volumes dessa coleção foram minha única fonte de leitura até que, já ginasiana, tive acesso à Biblioteca Estadual, em frente ao Liceu, onde estudava. Pude, então, ampliar minhas escolhas, ainda com livros de empréstimo. Quando comecei a trabalhar, passei a comprar livros, pouco a pouco, e hoje, no meu apartamento, vivo cercada por eles, sem que, no entanto, me sinta "asfixiada". Além de ocuparem a biblioteca, espalham-se pelos quartos, pela sala, pelo corredor e chegam ao quartinho de serviço, cercado de livros por todos os lados. Meus livros, que sempre me parecem poucos, jamais serão "um fardo pesado". São, na verdade, uma das maiores alegrias de minha vida. A idéia de viver sem eles me parece dolorosa.
Você perguntou, eu respondi.
Um abraço afetuoso da Gracinda.

Aníbal Bragança disse...

Caríssima Gracinda,
obrigado pelo seu belo depoimento. Ele me fortaleceu a convicção da importância inestimável que teve, em muitos anos, o Tesouro da Juventude. Embora não o tivesse em casa, li-o muito na biblioteca do Colégio Nilo Peçanha, onde estudei o ginasial. Era (e é com certeza) um manancial riquíssimo para exploração de qualquer leitor.
Um carinhoso abraço,
Aníbal