Disponibilidade
Sinto hoje vontade de escrever um poema.
Fechei todos os livros
porque o ruído dos outros me incomodava.
Afinal, talvez nem me apeteça escrever o poema.
Olho desolado as coisas em redor:
canso-me;
passeio sem dar conta os olhos pelo quarto,
escorrego em sonhos,
tropeço, ao lusco-fusco, em ecos de quimeras.
E enquanto fico,
Ao lado escorre a vida sem que eu dê por ela.
Balanço
Afinal, toda a minha poesia era verdade...
A noite é infindável, e os dias
são a mesma vastidão de carne apodrecida
morrendo sem saber de que morria.
Os rios são os mesmos, ou as ruas,
que só levam lá de onde não saí.
O silêncio é sempre a única resposta.
Se não pedi, que haviam de me dar?
O fim da noite
A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.
Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.
Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.
E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.
In Poesias completas, Lisboa: Portugália, 1969, p. 35, 285, 314-5.
Adolfo Casais Monteiro (Porto – Portugal, 4/7/1908-S. Paulo, Brasil, 24/7/1972), poeta e ensaísta, foi um dos intelectuais portugueses que a ditadura salazarista levou a se exilarem no Brasil. Fez parte do que veio a se chamar “a missão portuguesa”, sendo aqui “recebido e assimilado, pelos colegas brasileiros, como um interlocutor autorizado e indispensável na cena literária nacional”, nas palavras de Leyla Perrone-Moisés.
Leia mais sobre Adolfo Casais Monteiro
“Adolfo Casais Monteiro”, de Carlos Leone, in
Instituto Camões
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/figuras/acmonteiro.html
Biografia, Wikipédia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adolfo_Casais_Monteiro
Ensaio: “Adolfo Casais Monteiro: o estrangeiro definitivo”, de Maria João Cantinho, in
Revista Agulha
http://www.revista.agulha.nom.br/ag33monteiro.htm
“A crítica viva de Casais Monteiro”, de Leyla Perrone-Moisés, in
A missão portuguesa, de Fernando Lemos e Rui Moreira Leite, org. S. Paulo: Ed. Unesp; Bauru (SP): Ed. Unesc, 2003, p. 52-60
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