sábado, 12 de abril de 2008

O saco de livros, de W. Somerset Maugham (1874-1965)

Algumas pessoas lêem para se instruir, o que é louvável, outras por prazer, o que considero inocente, e algumas por hábito – e isto já não se pode dizer que seja nem inocente nem louvável. Creio poder afirmar que pertenço a este terceiro lamentável grupo. Uma conversa longa me enfada, os jogos me cansam, e meus próprios pensamentos – na opinião de muitos o infalível recurso do homem sensato – esgotam-se com facilidade.

Recorro então ao meu livro, como o fumante de ópio ao seu cachimbo. Prefiro ler o catálogo do Army and Navy Stores, ou o Guia Bradshaw, a ficar sem leitura, e posso mesmo dizer que passei horas agradabilíssimas debruçado sobre esses dois livros.

Houve época em que nunca saí de casa sem levar no bolso o catálogo de uma livraria de segunda mão. Não conheço leitura mais proveitosa. Claro que ler desta forma é tão condenável como valer-se de um entorpecente. Até hoje me admiro do desplante dos grandes ledores que, por possuírem tal qualidade, zombam dos ignorantes. Sob o ponto de vista do que é a eternidade, será preferível ter lido mil livros a ter feito um milhão de regos com arado?

Admitamos que a leitura seja para nós apenas uma droga, sem a qual não podemos passar – quem, entre os desse grupo, desconhece a inquietação que dele se apodera depois de se ver durante muito tempo privado de leitura, a apreensão, o nervosismo, e o suspiro de alívio exalado ao ver uma página impressa?... – e não sejamos, portanto, mais vaidosos do que os pobres escravos da agulha hipodérmica ou da garrafa.

E assim, como o viciado em algum entorpecente não pode viajar sem levar consigo uma boa provisão do bálsamo fatal, jamais me aventuro a ir muito longe sem carregar um certo número de livros. Eles me são tão necessários que, quando noto num trem que muitos dos meus companheiros de viagem não trouxeram um único sequer, me sinto tomado de verdadeiro espanto. Mas é terrível o problema quando me disponho a uma viagem longa.

De alguma coisa me valeu a experiência. Certa vez, tendo por motivo de doença ficado durante três meses preso numa cidadezinha das montanhas, em Java, esgotei a minha provisão de livros e me vi obrigado, por não conhecer a língua holandesa, a comprar os livros escolares onde, creio eu, os javaneses inteligentes aprendiam o francês e o alemão. E por isso, depois de vinte e cinco anos, reli as frias peças de Goethe, as fábulas de La Fontaine, as tragéidas do terno e preciso Racine. (...)

Desde essa época faço questão de carregar sempre o maior saco existente feito para roupa usada, enchendo-o até a borda com livros apropriados para todas as ocasiões e as várias disposições de espírito. Pesa uma tonelada, e troncudos carrregadores vergam ao seu peso. Os funcionários da Alfândega olham-no com desconfiança, mas afastam-se consternados quando lhes dou minha palavra de que apenas contém livros. O inconveniente é que a obra que desejo ler sempre se acha no fundo, não podendo eu alcançá-la sem despejar no chão todo o contéudo do saco. Mas não fosse por isso, talvez eu nunca tivesse conhecido a estranha história de Olive Hardy.


(...)
In Ah King. Contos. Trad. de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, s/d. Coleção Nobel, n. 59, p. 121-159.


A Editora Globo apresenta Somerset Maugham, , na orelha deste livro, como “o Maupassant inglês”, afirmando que “poucos escritores alcançaram na literatura e no teatro contemporâneos o sucesso de William Somerset Maugham, sem fazer concessões ao chamado grande público”.

Nunca fui um leitor de Maugham, - tenho resistência a ler best-sellers - mas como livreiro vivi um tempo em que ele ainda tinha muitos leitores, especialmente por causa de seus livros Histórias dos Mares do Sul, Um gosto e seis vinténs, O fio da navalha e Servidão humana. Alguns foram adaptados para o cinema, com grande êxito.

Este Ah King me foi oferecido por um gentilíssimo diplomata chileno, Pedro José Correa, bibliófilo, que se desfez de sua extensa biblioteca, de leitor “por hábito”, quando voltou para seu país de origem.

Este conto - que é bem mais longo -, me fez refletir sobre um tempo em que a leitura de entretenimento era uma prática cultivada por muitos. Até mesmo no Brasil. Antes do sucesso da televisão com seus teledramas ou filmes da tarde, da noite e da madrugada. Hoje é prática para raros. E mais raros são ainda os que se lembram de Somerset Maugham, cujos livros certamente só se encontram nos sebos. Á sua espera, cara leitora, arrisca?

Leia mais sobre Somerset Maugham em
http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Somerset_Maugham

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