quarta-feira, 23 de abril de 2008

23 de abril, dia de São Jorge, Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor

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Vendo que não conseguia mover-se, buscou refúgio no seu costumeiro remédio, que era pensar em alguma passagem dos livros; e a loucura lhe trouxe à memória a de Valdovinos e do marquês de Mântua, quando Carloto o feriu na montanha: história sabida dos meninos, não ignorada dos moços, celebrada dos velhos, que ainda acreditavam nela; e, com tudo isso, não mais verdadeira que a dos milagres de Maomé. Pareceu-lhe que esta vinha a calhar para o transe em que se achava; e assim, com mostras de grande sentimento, começou a revolver-se pelo chão e a dizer com debilitado alento o mesmo que dizia o ferido cavaleiro do bosque:

- Onde estás, senhora minha,
Que te não dói o meu mal?
Ou não o sabes, senhora,
Ou és falsa e desleal.

E desta maneira prosseguiu no romance, até aqueles versos que dizem:

- Ó nobre Marquês de Mântua,
Meu tio e senhor carnal!

Quis a sorte que, quando chegou a este verso, acertasse de passar por ali um lavrador de sua localidade e seu vizinho, que acabara de levar ao moinho uma carga de trigo e que, vendo estendido aquele homem, se acercou dele e perguntou-lhe que era e que mal sentia, pois com tanta tristeza se queixava.

Dom Quixote acreditou, sem dúvida, que era aquele o marquês de Mântua, seu tio, e assim, ao invés de lhe responder, continuou o romance, narrando sua desgraça e os amores do filho do Imperador com sua esposa, tudo da mesma maneira como está no livro.

Espantou-se o lavrador com aqueles disparates; e tirando-lhe a viseira, já despedaçada pelas bordoadas, limpou-lhe o rosto, qu estava coberto de pó. Mal acabou de fazê-lo, reconheceu-o e disse:

- Senhor Quixana (que assim se devia chamar quando tinha juízo e ainda não havia passado de fidalgo sossegado a cavaleiro andante), quem pôs vosmecê neste estado?

Mas a tudo o que lhe era perguntado, ele respondia com o romance. Vendo isto, o bom homem lhe tirou como melhor pôde o peito e espaldar da armadura, para ver se tinha alguma ferida; mas não percebeu sangue, nem sinal algum. Procurou levantá-lo do solo e, com não pouco trabalho, o içou no seu jumento, por lhe parecer mais tranqüila montaria. Recolheu as armas, inclusive os fragmentos da lança, e amarrou-as sobre o Rocinante; depois, segurando a rédea deste e o cabresto do asno, se encaminhou para o povoado, bastante pensativo de ouvir os disparates de Dom Quixote.


Início do capítulo V do Dom Quixote [El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha], composto por Miguel de Cervantes de Saavedra, publicado inicialmente em 1605, em Madrid.
Nesse capítulo e no seguinte se narram as desgraças do cavaleiro Quixote, que endoideceu com as leituras que fez, o que levou seus amigos a buscar na sua biblioteca “os autores dos danos”, para os destruir.


Pequena parte do que é considerado um dos livros mais importantes de toda a história da Humanidade. Seu autor faleceu em 23 de abril de 1616. Nesse dia também morreu o imortal William Shakespeare. A Unesco instituiu, em 1995, este como o Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor, consagrando em nível mundial o que já ocorria na Espanha e na Inglaterra. Em muitos países e cidades hoje é dia de festa do livro e da leitura. Na Catalunha comemora-se o Dia de São Jorge, do Livro e da Rosa.

Uma boa homenagem à importância do livro e da literatura nas nossas vidas é começar hoje a ler ou reler o Dom Quixote, que em 2006 mereceu edições comemorativas do seu quarto centenário. A que usamos para esta brevíssima transcrição (p. 87-91) é a dos antigos e inesquecíveis Clássicos de Bolso da Ediouro, 1965, com tradução de Almir de Andrade e Milton Amado, com introdução de Brito Broca, prefácio de Luiz da Câmara Cascudo e ilustrações de Gustave Doré, inicialmente publicada pela Editora José Olympio, do Rio de Janeiro.

Leia mais:
Amigos do Livro:
http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=3713
Unesco Brasil:
http://www.unesco.org.br/unesco/premios/diadolivro2007/mostra_documento
Unesco:
http://portal.unesco.org/es/ev.php-URL_ID=42278&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html

4 comentários:

Gracinda Rosa disse...

Aníbal
Que melhor citação poderia ser escolhida, para esse Dia Mundial do Livro, do que uma passagem do inesquecível Dom Quixote? Relê-lo seria, para quem ama os livros e tem hoje essa ótima oportunidade de homenageá-los, uma forma ideal de tornar o dia mais marcante. Li-o, pela última vez, numa publicação da Abril Cultural, de 1981. São 609 alentadas páginas. Fico inclinada a seguir a sua sugestão, fazendo, talvez, o que me é habitual: intercalar capítulos de uma nova leitura com outros da leitura que estava em andamento. (No caso, umas belas “Fábulas Italianas”oferecidas por Ítalo Calvino, numa edição da Companhia de Bolso). De qualquer modo, folhear um livro querido, num dia tão especial, já enche o coração de alegria. Obrigada pelas boas páginas que você nos oferece.
Um grande abraço da Gracinda.

Iasnara disse...

Prof.
A loucura que mais me atormenta é não ter todo tempo que os livros merecem.



Abrç.

Aníbal Bragança disse...

Cara Gracinda,
seus comentários são contribuições maravilhosas para nossos raros (e especiais) leitores. Quem sabe você nos escreve algo sobre o Fábulas italianas. Adoro tudo o que li do Calvino. O romance "Se um viajante numa noite de inverno" é uma viagem maravilhosa sobre o mundo da escritura, da leitura, do livro e da literatura. E como escreve bem!
Como é sempre um prazer também ler o Cervantes... depois de 4 séculos continua nos encantando com seus personagens paradigmáticos e suas aventuras exemplares.
Obrigado pelas suas contribuições e carinho.
Um abraço,
Aníbal

Aníbal Bragança disse...

Oi, "Sentir",
o que você sente é uma experiência cotidiana de todos nós que vivemos nesta sociedade que a cada vez nos oferece mais opções - exigindo empenhos e participações - obrigando-nos a escolhas de Sofia. O que iremos abandonar?
As escolhas podem nos trazer felicidades. Ou não.
Uma refeição deve ter cores diferentes no prato.
Aníbal