sábado, 22 de março de 2008

Darel, por Rachel Jardim, 1973

Da série As meninas, de Darel Valença Lins

Chamava-se Darel porque os pais estavam acompanhando um filme em série, em que o mocinho se chamava Darel. Só que pronunciavam, é claro, Darél, e não Deirel. Também Deirel não teria lhe assentado, com aquele sotaque nordestino.

Naquela época eu andava meio solta aqui no Rio. Minhas raízes ainda estavam muito em Minas. Por aqui, vagava como alma penada, mais do que existia. (Aliás, vagar sempre foi a minha tendência. E o existir era tão dentro, que ficava imperceptível.) Conheci Cláudio Correia e Castro, menino, em Juiz de Fora. Murgel pelo lado da mãe, primo de Kalma. Por esse tempo ele pintava, ou melhor, gravava. Suas gravuras tinham um pouco da atmosfera de Van Gogh. Lembro-me nitidamente de um par de botinas. Tão solitárias!...

Num domingo, fui ao seu atelier. Ele me apresentou a Darel e também a um rapaz magro, com cara de anjo perdido, chamado Marcelo Grassman. Fisicamente, era o oposto de Darel. Este, não devia ser muito bem alimentado, mas parecia. O outro, dava para ilustrar um quadro sobre a fome.

Cláudio emprestava o seu estúdio para os dois trabalharem, pois ambos, vindos de fora, estavam na fase da sobrevivência.

Darel, quando apareci, desenhava no chão. Eu olhei as gravuras e disse: “Humilhados e Ofendidos, não é?” Ele levantou os olhos: “Você reconhece?” Claro que reconhecia. Elas estão hoje na minha parede: “De Darel para Rachel”.

Eu tinha paixão por Goeldi. Darel sofria fortemente a sua influência. Mas ao contrário de Goeldi, fisicamente não se parecia com o que desenhava (há pintores e escritores que são idênticos, na própria aparência, ao que fazem. Nada mais parecido com Murilo Rubião do que os seus próprios personagens). Era atarracado, vital, corado, muito mais Sancho Pança do que Dom Quixote. Percebia-se logo a firme determinação de vencer, a que preço fosse. Venceu com o talento, mas nunca teria perdido, mesmo sem talento.

Acho que Darel jamais me entendeu muito bem. Não há muita coisa em comum, creio, entre mineiros e nortistas. Mas ficamos amigos. Espantoso como é que naquele tempo, quando passava fome, jamais teve pinta de pobre. Marcelo Grassman parecia miserável. Darel usava sempre uma jaqueta tipo cardigan, meio gasta, que tinha sido de Cláudio, com calças de flanela cinza, também herdadas. Entraria, tranqüilamente, no Country. Suas origens, entretanto, eram as mais modestas. Tinha vocação para rico e “bem”. “Bem” já era, rico ficou. (“Bem”, expressão que aprendi na Faculdade Católica da rua São Clemente. Ali todos eram. Para muitos, era a mais importante condição existencial.)

Ele me dizia coisas engraças: “Quanto criança, chamava as minhas figuras de kalungas. Ainda hei de ganhar dinheiro com meus kalungas.” (Anos mais tarde me falou: “Viu, ganhei dinheiro com os kalungas”....) Ou “Não, não gosto dessa espécie de religião sofisticada, tipo Mosteiro de São Bento. Religião, gosto mesmo, bem simplesinha, filhas de Maria, procissões ‘No céu triunfarei’, etc.”... E falando de um padre conhecido: “Ele é desses tipos de padre que têm sempre, a respeito de Deus, uma frasezinha de algibeira...”

Anos depois, quando estava para me desquitar, fui falar com um padre. Disse-lhe que não acreditava em Deus. Ele respondeu: – Mas Deus acredita na senhora... (como é que ele sabia?) Lembrei-me das frasezinhas de algibeira de Darel e comecei a rir.

Quando Darel tirou primeiro lugar na bienal de São Paulo, quando lhe deram uma sala inteira para expor, fiquei orgulhosa de ter reconhecido nos seus “kalungas” as figuras de Aliocha, Nelly e Natacha. Era fácil. Naquela época, quando eu lia Dostoiewski, sentia frebre. Sentia muita frebre, nos anos 40.


In Os anos 40, Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 90-91

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