quarta-feira, 20 de junho de 2007

Manuel de Barros, O poeta, Pretexto e Palavras... e ainda o “processo de criação”.


O poeta

Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria 13 anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.


In Ensaios fotográficos, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 47

Pretexto

O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares, organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc. etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.

In O livro sobre nada, Rio de Janeiro: Record, 3a. ed., 1997, p. 7.

Palavras

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim de lugar? Foram as palavras pois que desestruturam a linguagem. E não eu.


In Ensaios fotográficos, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 57.


Qual é seu processo de criação?

Como quem lava no tanque dando porrada nas palavras. A escuma que restou no ralo vai ser boa para o começo. Depois é ir imitando os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma. As palavras de nascer adubam-se de nós. Então no meio da coisa pode saltar uma clave ou um rato. Daí a gente tem que trabalhar. O horizonte fica longe que nem se vê. Um horizonte pardo como os curdos. Também faz parte desse processo desarrumar a cartilha. Seduz-me reaprender a errar a língua. Eis um ledo obcídio meu.

In Gramática expositiva do chão, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990, p. 314.

Esta seleção de textos de Manuel de Barros, que fiz com a Lizete, minha mulher, foi (quase) sem nenhum sentido além do puro prazer de ler... e escrever pra você, rara ou raro leitor.
Depois, se puder, vá direto aos livros. Tem lá muito mais.
Imagem (clique nela para ampliar):
Reprodução da capa da revista Poesia Sempre, nº 21, 2005, publicada pela Fundação Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro http://www.bn.br/ , com projeto grático de Victor Burton. Número dedicado à obra de Manuel de Barros, organizado por Luciano Trigo e Ana Cecília Martins.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ora, se esse manuel não é um que intimida gente! Pode um homem assim, brotando grama na cara, falar desse jeito atrevido? Tem graça viver de reinventar sentido pro que nunca foi dito! Poetazinho do diabo, coisa ruim! Senta, embriagado de orvalho, e se mete a babar letra por letra... Até que o papel, encharcado, transborde. E vire lago onde a gente se afogue.
(E a gente com medo do que morde...)

Anônimo disse...

De fato a gente se intimida com a intimidade dessas maravilhosas capacidades de encantamento com palavras. Sonho merecer um dia fazer parte dessa confraria encantada e deixar-me embriagar de vez para esquecer as saudades de mim que esses encantos empalavrados despertam...