domingo, 3 de junho de 2007

A liberdade, o livro e a leitura, Fernando Pessoa

Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha quer não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca.

Em 16/3/1935. Publicado in Seara Nova, n.º 526, de 11-09-1937, incluído no livro Poesias, de Fernando Pessoa, "Cancioneiro" (a concluir a informação).

Este poema, rara ou raro leitor, já tantas vezes citado e inserido na "rede", me veio de novo à lembrança após a postagem do texto de A arte dos ociosos, de Hermann Hesse, abaixo. Pareceu-me haver um parentesco nesses textos de dois dos maiores escritores do século XX. Ambos cultivadores do amor à natureza, ao silêncio, à simplicidade. Do real à representação e desta à vida e à representação, num constante ir e vir, abrindo horizontes, aguçando sensibilidades e criando uma obra imortal.

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