sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O admirável livreiro Albino Jordão, cego e surdo, nas Memórias da Rua do Ouvidor, de Joaquim Manuel de Macedo

Capítulo XIV:

No Brasil ninguém morre enquanto não morre deveras de moléstia física e desaparecendo na cova do cemitério. Só assim, com esses testemunhos de óbito; porque tem-se visto muita gente moralmente morta, que de um dia para outro reaparece viva, sem que se saiba como, nem porquê. No comércio isso já é trivial, e em política sediço.

(...)

Aquela casa nº 113, ainda do lado esquerdo, acanhada, estreita, mas de três pavimentos, cujo letreiro chamador de fregueses anuncia o Café de Londres, e excelente Restaurant, foi levantada no lugar onde se mostrava a antiga e pequena casa térrea de duas portas, que ainda em 1838 era loja de livros do Albino Jordão.

Lembro sempre dele! Lembro-me da sua modesta loja de livros novos e velhos, de obras encadernadas ou em brochura, que se vendiam ali a barato preço. Em meu tempo de estudante fui freguês do Albino Jordão, e entre outras obras, comprei-lhe as Memórias Históricas de Pizarro e as Memórias para Servir à história do Reino do Brasil, do Padre Luís de Gonçalves dos Santos, por alcunha – o Perereca –, as quais de tanto socorro me têm sido em estudos, como este que estou fazendo.

O Albino Jordão era, quando o conheci, homem já velho, vestindo sempre jaqueta, e desde muito cego e surdo. Contra a cegueira não tinha recurso, que não fossem a memória surpreendente e o tato explicavelmente aprimorado; contra a surdez, que não era completa, absoluta, socorria-se de famosa e tradicional buzina que o fazia ouvir o que os fregueses da loja procuravam.

Albino Jordão tinha dois ajudantes, meninos ou rapazes de quatorze a dezesseis anos, de instrução nula e de pouco zelo: quando eles, porém, não serviam de pronto a algum freguês e demoravam-se, procurando o livro pedido, o cego, levantava-se da sua cadeira, punha a buzina no ouvido, e ciente do que se pedia, ia sempre certeiro e sem nunca enganar-se, tomar o livro na estante e no lugar onde estava, ainda mesmo quando lhe era necessário subir por pequena escada portátil para ir buscá-lo.

Eram na verdade admiráveis a memória, o tato, e o tino que a cegueira apurava naquele velho cego; mas para que pudesse tanto, era só e exclusivamente ele o ordenador, e colocador dos livros nas estantes da sua loja.

Albino Jordão foi, como livreiro, contemporâneo dos notáveis e célebres livreiros Saturnino, João Pedro da Veiga e Evaristo Ferreira da Veiga, filhos do primeiro; mas em sua loja, que não podia rivalizar com a daqueles, vendia em geral obras já usadas, livros em segunda mão, e portanto baratíssimos, e se por isso deve ser tido em conta do primeiro alfarrabista da cidade do Rio de Janeiro, foi de tanto proveito para o público, e de tão sã consciência na sua indústria, que nunca lhe caberia o nome feio que os estudantes do Imperial Colégio de Pedro II deram ao vil belchior de livros velhos estabelecido na vizinhança daquele colégio da Rua de S. Joaquim, nome um pouco obsceno que a princípio se estendeu a todos os chamados hoje alfarrabistas.

A Rua do Ouvidor deve perpetuamente lembrar o seu Albino Jordão, o primeiro livreiro que teve, o precursor, ou antecessor dos Srs. Laemmert, Garnier, e ainda outros, o Albino Jordão, enfim, cuja buzina foi tão famosa, como a tesoura de Mme. Josephine e muito mais útil do que ela, se as minhas Ex.ªs. leitoras permitem que eu assim pense.

In Joaquim Manoel de Macedo, Memórias da Rua do Ouvidor [1878], Biografia, introdução e notas de M. Cavalcanti Proença. Ilustrações de Percy Lau. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966, p. 165-166.

A pesquisa que desenvolve Gabriel Costa Labanca, mestrando em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, sobre a história das Edições de Ouro, que tive a satisfação de ver adiantada no recente Exame de Qualificação, me fez nascer a vontade de compartilhar com você, rara leitora, esta obra de Joaquim Manuel de Macedo (Itaboraí, RJ, 1820-Rio de Janeiro, 1882) - o notável autor de A Moreninha -, editada na fase áurea dessa importante editora brasileira de livros de bolso. A obra é uma excelente fonte de nossa história cultural, inclusive em suas referências aos livreiros da rua mais importante de sua época.

Algum de nossos raros leitores certamente leu, por escolha espontânea ou por indicação de seu(sua) professor(a), pelo menos uma edição de bolso publicado pela Tecnoprint no selo Edições de Ouro. Verdade?

Torcemos pelo final do trabalho de Gabriel Labanca, com a segura orientação de Tânia Bessone, que certamente dará ótima contribuição para nossa história editorial.

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