sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Charles Baudelaire (1821-1867), a auréola do poeta e a glória literária

Atravessava eu o Bulevar com um pouco de precipitação, para livrar-me dos carros, quando a minha auréola se desprendeu e caiu na lama do macadame. Por felicidade, tive tempo de apanhá-la, mas, um instante depois insinuou-se em meu espírito a desgraçada idéia de que aquilo era um mau presságio; e desde então a idéia não me quis sair da cabeça, deixando-me sem tranqüilidade durante o dia inteiro.

Do “Diário Íntimo”, em Meu coração desnudado. Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 34

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– O quê! Você por aqui, meu caro? Você, num lugar suspeito! Você, o bebedor de quintessências! Você, o comedor de ambrosia? Em verdade, tenho de surpreender-me!

– Meu caro, você conhece meu pavor pelos cavalos e pelos carros. Ainda há pouco, enquanto eu atravessava a avenida, com grande pressa, e saltitava na lama por entre este caos movediço em que a morte chega a galope por todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento brusco, escorregou da minha cabeça para a lama da calçada. Não tive coragem de juntá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que deixar que me rompessem os ossos. E depois, pensei, há males que vêm para bem. Posso agora passear incógnito, praticar ações vis e me entregar à devassidão, como os simples mortais. E eis-me aqui, igualzinho a você, como vê!

– Você deveria ao menos mandar anunciar esta auréola, ou mandar reavê-la pelo comissário.

– Ora essa, não! Me sinto bem aqui. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. E também, penso com alegria que algum poeta ruim há de juntá-la e vesti-la impudentemente. Fazer alguém feliz, que prazer! E sobretudo um feliz que vai me fazer rir! Pense em X ou em Z, puxa! Que divertido vai ser!

“Perda de auréola”, in Pequenos poemas em prosa. Edição bilíngüe. Tradução de Dorothée de Bruchard. Florianópolis: Editora da UFSC ; Aliança Francesa de Florianópolis, 1988, p. 217. Há reedição, de 1996.

Estes são textos para nossa vã reflexão, rara leitora. Talvez voltemos a eles. Talvez acrescentemos Walter Benjamin como guia.

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