sábado, 15 de novembro de 2008

Fernando Sabino: Os livros que (não) lemos

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Eu estava no 4º ano de ginásio, e a dissertação do exame final versava sobre o tema “Minhas leituras prediletas”. Monteiro Lobato. Depois Sherlock Holmes, Búfalo Bil, Beau Geste. Já atingi aquela fase a que se refere Pedro Nava, na qual o médico tem coragem de dizer ao cliente “não sei o que o senhor tem”: reafirmo hoje o que escrevi naquele tempo, aos 14 anos, isto é, que a melhor leitura que já fiz na vida foi a de um livro de aventuras de índios chamado Winnetou, de Karl May.

O que andei lendo então? Passando os olhos pelas estantes, descubro, conformado, que não foi nem a centésima parte do que esperava ler. E muito menos do que afirmo (o que é pior, acreditando eu próprio) haver lido. Já não falo dos livros cuja leitura me dispensei de iniciar, baseado no pressuposto daquela “boutade” de Oswald de Andrade: não li e não gostei. Falo dos que deixei de terminar, dos que li em diagonal, ou dos que ficaram para sempre com aquela dobrinha numa das páginas do meio, para que eu um dia retomasse a leitura.

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Aos 17 anos eu andava com um exemplar de O Banquete de Platão debaixo do braço (naquela edição de capa dura da Athena Editora). Mas bom mesmo era Edgar Wallace: O Homem de Marrocos, por exemplo, tenho a certeza de que resistiria (ou não?) a uma releitura. (E o Círculo Vermelho, [de A. Conan Doyle] em que o assassino era o próprio detetive.) Apanhava livros na Biblitoeca Pública de Belo Horizonte, ou lia lá mesmo, um por noite. (E Um Perfil na Sombra, [de Edgar Wallace] ia me esquecendo. Perdão, leitores.)


Já havia lido quase toda a Coleção Terramarear, de Song-Kay, o Pirata, [de Emilio Salgari], a Ilha de Coral, [de Robert Michael Ballantyne] passando pela série de Tarzã. Lia-se de verdade, naquele tempo. Mas veio o vício da literatura e de súbito me vi às voltas com Los Dioses Tienen Sed, de Anatole France, ou Los Paradisos Artificiales, de Baudelaire.

Por que em espanhol? Porque com a guerra, não havia livros franceses ou ingleses, e tínhamos de nos iniciar mesmo em castelhano: os argentinos da Espasa-Calpe (coleção Austral), os chilenos da Zig-Zag (em papel ordinaríssimo), os mexicanos da Fondo de Cultura. Pouco importava que para mim muslo [coxa] fosse músculo, ciruelas [ameixas] fossem ceroulas e un rato [um momento] fosse um rato mesmo – ia lendo o que me caía nas mãos. (...)

Os brasileiros, nem se fala: José Lins, Graciliano Ramos, Rachel, Jorge Amado, Mário e Oswald de Andrade; Cyro dos Anjos, Cornélio Pena, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, que o Etienne me emprestava. Andavam na moda dois livros raros: A Mulher Que Fugiu de Sodoma, de José Geraldo Vieira, e Sob o Olhar Malicioso dos Trópicos, de Barreto Filho.


Os poetas, era para saber de cor: Bandeira, Drummond, Vinicius, Schmidt, Cecília, Murilo, Jorge de Lima, Cassiano. Dos mais antigos, a obrigação era ter lido os romances e contos de Machado de Assis, Os Sertões, de Euclides da Cunha (só “O Homem”; “A Terra” era muito chato); O Ateneu, de Raul Pompéia; e Memórias de um Sargento de Milícias. O resto – Coelho Neto, Alencar, Macedo – era melhor que se dessem por lidos. Uma olhada nos poetas simbolistas, outra nos inconfidentes, outra nos parnasianos, e chega!

De português estava farto: já devia ter lido Camilo, Herculano, Garrett, e mais longe ainda: Frei Luís de Sousa, Gil Vicente. Mas o melhor era mesmo ficar no Eça. E depois mergulhar nos poetas, de Camões a Fernando Pessoa, de Antero de Quental a Camilo Peçanha. Passando, como requinte, por Mário de Sá-Carneiro.

Livro é que não faltava: a Coleção Nobel da Editora Globo, por exemplo. Os que todo mundo tinha obrigação de já haver lido: Sporkenbrooke, de Charles Morgan; Os Thibault, de Roger Martin du Gard; Jean Cristophe, de Romain Roland; A Montanha Mágica, de Thomas Mann; A Condição Humana, de Malraux – livros colossais, de leitura interminável. Não se falando em Cervantes, Dostoievski e Tolstoi.

O máximo da satisfação literária: poder afirmar em sã consciência já haver lido todo o Dom Quixote, Os Irmãos Karamazov e Guerra e Paz.

Três anos de vida em Nova York e quase outro tanto em Londres, com o aprendizado compulsório do inglês, lançaram-me na vertigem de um novo mundo literário, que vai de Shakespeare a Eliot, de Dickens a Norman Mailer, de Conrad a Hemingway. E mais, de Lewis Carrol a James Thurger, de Ruskin a Herbert Read, de Henry James a Henry Miller, de Manley Hopkins a Eliot e Ezra Pound. E daí?


Quando conseguir terminar jamais a leitura de Ulysses. Um dia me vi lendo ensaios de C. M. Bowra, I. A. Richards, F. R. Leavis e outros críticos de nome abreviado, sobre os absconsos segredos da poesia. Que diabo de doença era essa, que acabaria me levando, como a tanta gente boa, às raias do estruturalismo? Parei em tempo.

E descobri que o escritor da minha preferência era mesmo o romancista policial Raymond Chandler, criador do detetive Philip Marlowe. Estava curado do vírus literário.
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1.7.74.


Fernando Sabino, “Os livros que (não) lemos”, in Gente II. Rio de Janeiro: Record, p. 65-70.

O artigo é mais longo. Recortei o que pode suscitar algumas lembranças ou até, quem sabe?, algum debate sobre as nossas leituras e não leituras. E sobre o por que ler os clássicos? E o porque ler, simplesmente, o que nos dá prazer, erudito ou não. O que pensa, rara leitora?

A leitura integral do artigo e, mais ainda, de todo o livro, pode ser muito interessante. Peça na sua livraria os dois volumes de Gente, compostos com artigos originalmente escritos para o Jornal do Brasil, em 1973-1974. São entrevistas, crônicas, artigos sobre temas e principalmente pessoas, interessantes para Fernando Sabino... para nós também.

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