sábado, 1 de novembro de 2008

Carlos Drummond de Andrade e a primeira emoção literária

Recordemos, rara leitora, daquele que sempre se recusou a ingressar na Academia, e que é, não obstante, um dos grandes imortais de nossa literatura: Carlos Drummond de Andrade.

Em 1902, na Itabira do Mato Dentro, Estado de Minas Gerais, em 31 de outubro, chegou ao mundo aquele que viria a ser um de seus maiores poetas brasileiros. Este dia ficou para sempre marcado por esse fato.

Assim, lembremos de um dos oito programas dominicais que fez na Rádio Ministério Educação e Cultura – Rádio MEC, PRA-2, uma série de entrevistas concedidas a Lya Cavalcanti. A transcrição [?] dessas entrevistas compõe o livro Tempo Vida Poesia, Confissões no Rádio, publicado pela Record, em 1986. Esta é a primeira das entrevistas (p. 11 a 14 do livro):

Mal, Obrigado

- Boa noite, poeta. Como vai?

- Mal, obrigado. Todas as vezes que a gente começa uma coisa, há a premonição de não dar certo...

- Ué, você não confia no seu programa?

- Eu? Nem um pouco. Mas vamos experimentar, como fazem tantos reformadores sociais. Se não der certo, não corremos o risco dos atores no palco. Você volta para o seu escritório na Câmara dos Deputados...

- E você para a sua casa.

- É, o rádio tem isso de bom, como a televisão. Não precisa xingar, bater ou matar ninguém: basta girar o botão, ou desligar.

- É verdade que sua idéia não deixa de ser... petulante. Me desculpe, mas isso de fazer memórias pelo rádio...

- Tá desculpada. No fundo, você está sendo é gentil, insinuando que sou ainda muito jovem para contar minha vida, e que ela continua. Na verdade, a vida que continua sempre é a dos outros. A da gente vai ficando reduzida a certos interesses fundamentais, e mesmo não perdendo em intensidade, será uma intensidade concentrada em área menor. Uma lâmpada, e não um lustre, entende?

- Ai de mim, vou começando a entender.

- Pois é isso. Chega um momento em que a pessoa, fatalmente, se joga numa poltrona macia, estica as pernas e diz: Bem, vamos recordar, como na Ceia dos Cardeais.

- E você vai abrir sua vida diante de todo mundo? Que falta de gosto, para não dizer: que horror!

- Falta de gosto ou horror, por quê? Então você acha que ela mais... quer dizer, menos publicável do que a dos outros?

- Não é isso. É que para mim o processo de recordação tem qualquer coisa de íntimo, de intramuros, passado entre duas pessoas. Se você o pratica pelo microfone, está fazendo conferência, dando aula, posando, até mentindo sem querer. Acaba desvirtuando a pureza do traço para interessar o público no seu desenho. E isso é uma pouca-vergonha, desculpe a expressão.

- Sossegue, Lya. Não vou dar um show de mim mesmo ao público. Nem o público havia de gostar, pois afinal eu não desintegrei o átomo, não ganhei a Segunda Guerra Mundial, não descobri a penicilina... Que é que me pode ser atribuído na história da humanidade, ou mesmo da contracultura? Nada. Rabisquei papelório burocrático e uma versalhada do tipo livre. Os homens e mulheres notáveis, do ponto de vista humanitário, científico, político, esses é que têm imagem digna de multiplicação.

- Mas já me disseram que você escreve bem, e nessa qualidade...

- Não exageremos. Não há código para decidir o que é escrever bem ou mal. E há ainda o problema grave: o que merece ser escrito, bem ou mal, para o bem de todos? O que eu pensava em fazer pelo rádio não era me contar, era contar o que eu vi outros fazerem, ao longo de algumas dezenas de anos de vida literária. Isso me dispensaria de contar o que eu mesmo fiz, se é que fiz alguma coisa, e se não teria sido melhor deixar de fazê-la.

- Mas você não contar tudo que viu, é claro.

- Não. Mas gostaria de contar também como é que a ação dos outros se reflete no espírito da gente. A vida literária pode ser comparada a uma superfície espelhante, não direi manso lago azul, em todo caso um lago ou piscina. Cada escritor que surge e se reflete nele é por sua vez reflexo mais ou menos vivo de outros escritores, que por sua vez... Em suma, a literatura é um fenômeno de imitação ou repetição. Não havendo, por exemplo, o laguinho dos suplementos e revistas literárias, como diminui o número de poetas!

- Muitos não fariam falta. No seu caso especial, quais foram as imagens que você começou a refletir no espelho? Ou por outra, que fizeram de você um literato?

- A primeira reminiscência de sentido literário, que me acode, não é propriamente de um texto de literatura, em verso ou prosa, mas de um personagem de romance. Não do romance em si, mas da figura projetada por ele. Porque o texto não era bem texto, era uma coleção de legendas de uma coleção de figuras, na versão infantil do Robinson Crusoé, de Defoe, na revista O Tico-Tico, publicação da maior importância na formação intelectual das crianças do começo deste século. Creio que lhe devo minha primeira emoção literária, pois, quando Robinson conseguiu se mandar da ilha, senti um nó na garganta: eu queria que ele continuasse lá o resto da vida, solitário e dominador... Emoção produzida por uma personagem literária, um mito.

- Mas você é o tipo do caramujo, puxa! Ainda fedelho, e já sonhava com ilhas desertas.

- Não era bem a solidão da ilha que me encantava no Robinson, era talvez, inconscientemente, a sugestão poética.


Fica a sugestão, rara leitora, que tal ir à biblioteca mais próxima - a da sua sala? - e ler ou reler essas entrevistas. A segunda é "Leituras de garoto".

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