sábado, 2 de agosto de 2008

Nicolau Sevcenko, O vampiro de polpa ou confissões de um leitor compulsivo

Eu praticamente nasci no meio dos livros. Desde que me lembro, a vista que se descortinava à frente do meu berço era a de uma estante repleta. Meu avô tinha uma grande coleção de livros, muitos antigos, alguns modernos, quase todos com encadernação costurada e capa dura. Eles compunham uma grnde coleção, que foi se dispersando à medida que seus seis filhos se casavam, levando cada qual um lote de herança. Havia livros nas estantes, em baús e empilhados no porão da casa. Eu e meu irmão costumávamos brincar com eles, construindo castelos e fortes, que acabavam desmoronando no meio das batalhas.

Uma das minhas avós tinha uma outra coleção gigantesca, que se manteve completa por mais tempo e com a qual eu pude conviver em gozo de maior intimidade. Tanto esses como os do meu avô eram livros estranhos, em várias línguas e caracteres exóticos: russos, alemães, ingleses, lituanos, estonianos, poloneses, franceses, italianos, finlandeses, suecos, americanos, cadadenses, argentinos, brasileiros.

Formavam um repertório geográfico que indicava a trajetória errática da minha família de refugiados, morando um pouco em cada canto do mundo e fugindo cada vez que a história, em versões de tragéida, ameçava chegar-lhes outra vez aos calcanhares, ou melhor, aos pescoços. Sempre que partiam, arrastavam seus baús cheios de livros, a cada viagem mais numerosos.

De forma que, seja por força do hábito, pela atração da curiosidade ou por compulsão atávica, acabei desenvolvendo uma fixação descontrolada pelos livros. Não é que eu não consiga dormir sem antes ler, eu não durmo se não houver a imagem de uma estante cheia na minha frente. Em hotéis, uso o truque de pregar um pôster de estante de livros diante da cama.

Leio na sala, na cozinha, no banheiro. Não desgrudo do livro durante as três referições, enquanto escovo os dentes ou quando paro o carro num farol. Me tornei professor não porque li muitos livros, na verdade optei pela profissão sabendo que ela me forçaria a ler mais ainda. Detesto telefone, campainha ou passarinho porque me interrompem a leitura. Meu melhor presente foi quando meu amigo Roney me deu um livro todo plastificado – para que eu pudesse ler no chuveiro.

Não que a leitura seja um prazer! Todo mundo sabe a concentração desgastante e exaustiva que ela exige, proporcionando quanto muito uma satisfação oblíqua, que não contempla jamais as solicitações do corpo. A gratificação dos livros provém sobretudo de um expansão da imaginação e da experiência preciosa de se sentir aprendendo a manejar com autonomia os recursos da linguagem e do pensamento. O que ademais nos liberta das constrições das doutrinas e das idéias feitas, e não é pouco.

É essa sensação extra de liberdade, crescimento e autoconfiança que os livros transmitem, acrescentando cada nova geração com o melhor das experiências das anteriores e difundindo entre os leitores a coesão afetiva de compartilhar um fundo comum de sabedoria, respeito e generosidade.

É por isso, acredito eu, que os livros tendem a se tornar aditivos. A cada um que você lê, deseja outros e mais outros, sempre em doses crescentes em quantidade, concentração e duração do efeito.

Nesse sentido, o livro é, literalmente, uma droga. Benigna contudo, nos melhores casos. Daí a injustiça de se identificar os leitores obsessivos com ratos de biblioteca ou com corujas togadas.


Nem roedores nem rapinantes, os leitores compulsivos ficariam melhor retratados como vampiros de polpa, o que lhes reconheceria um resíduo de humanidade, ainda que sufocada pela maldição que os monstrifica e força a viver no pó e nas trevas, sob um pálido foco de luz. Mas cuidado! Como sua mordida contamina, transmitindo o mal, em caso de ele se aproximar, não hesite em afugentá-lo mostrando dois controles remotos sobrepostos em forma de cruz.
(...)

In revista Livro Aberto, S. Paulo: Editora Cone Sul, ano 1, nº 1, agosto/setembro de 1996, p. 22-23.

Dando continuidade à vã pretensão de resgatar textos importantes que ficaram “depositados” em impressos hoje pouco acessíveis, divulgamos hoje parte deste texto publicado no primeiro número da revista editada por José de Mello Junior, dedicada à 14ª Bienal Internacional do Livro, realizada em S. Paulo, de 13 a 25 de agosto de 1996. A revista, extinta depois de alguns excelentes números, deixou saudade.

A Bienal, entretanto, continua firme e terá sua 20ª edição nos próximos dias 14 a 24 deste mês, agora no Pavilhão de Exposições do Anhembi, na mesma São Paulo, cidade que a viu nascer. A realização é da Câmara Brasileira do Livro
www.cbl.org.br.

Saiba mais:
www.bienaldolivrosp.com.br

Ao trazer à circulação, agora no mundo virtual, este excerto de Nicolau Sevcenko, o que pode ser, creio, considerado um presente para o nosso raro leitor, também o registro é motivado pelo apreço que merece o historiador paulista, professor titular da Universidade de São Paulo, cuja obra é, por todos os sentidos, admirável. Certamento seu livro Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República, centrado na análise da obra e do tempo de Euclydes da Cunha e de Lima Barreto terá sido um dos mais inteligentes e bem escritos livros que tive o privilégio de ler nos últimos anos, ainda na primeira edição, da Brasiliense, de 1983. Sevcenko publicou outros livros, dos quais se devem destacar Orfeu Extático na Metrópole, 1992, Corrida para o século XXI, 2001, História da Vida Privada no Brasil, vol. 3, do qual foi co-organizador. Todos pela Cia. das Letras, que reeditou também o Literatura como missão.

Você, raro leitor, o que acha de ter acesso à segunda parte do texto acima?

Um comentário:

Henrique Chaudon disse...

Amigo Aníbal:
Eu gostaria, sim, de ter acesso à continuação desse texto.
Abraço.