domingo, 28 de fevereiro de 2010

Meu encontro com o sino, Geir Campos



Das igrejas o que melhor recordo são meus contatos (não religiosos) com os sinos, por exemplo.

Havia então em Campos três igrejas mais ou menos próximas, no centro da cidade: duas na Praça de São Salvador, e uma na então Rua da Constituição. E era nos meses de novenas, principalmente, em maio sobretudo, que lá íamos, eu e outros meninos, tocar os sinos para a altissonante convocação dos fieis.

Não havia, em nosso gesto – mais para a brincadeira – a menor intenção sagrada. Em vez disso, o que havia era pura vocação lúdica: puxar as cordinhas dos sinos, dois ou três em cada torre, fazendo-os bimbalhar ao nosso gosto, ou afinal pendurar-nos à corda grossa do sino maior, levando-o a girar num redobro que, para nós, nada poderia ser de lúgubre ou melancólico.
(...)

Tudo isso estava já longe, arquivado na mais doce das lembranças, quando, numa véspera de Natal, minha irmã caçula chegou da rua e colocou em cima da mesa, onde a família acabava de almoçar, um pequeno sino de papelão, que lhe haviam dado de presente, recheado de bombons.

Fiquei olhando aquele sino de brinquedo, fazendo força para pensar em outra coisa; mas sem poder tirar dele a vista. Toda a infância me ocorreu, naquela contemplação contrafeita, a começar pelas subidas às torres das igrejas campistas; e dei por mim com uns versos forçando a saída, tentando-me com força e dar-lhes forma escrita.
(...)

Lutava eu contra a premência de escrever, contra uma espécie de necessidade orgânica; mas com vontade de não ceder, de largar o lápis e o papel, de esquecer aquilo. No mais, o tema seria banal; dali não poderia sair coisa que se aproveitasse. E eu assim resistia, sabotando descaradamente as Musas, coitadas; e elas teimavam, forçando-me a pegar o lápis e a anotar o que me viesse à cabeça, não importava a caligrafia, aliás horrível...

Com aqueles rabiscos, difíceis – mesmo para mim – de ler, saí para dar uma volta; andei mais de meia hora, à toa. Só o que eu não queria era voltar, para não recomeçar tudo aquilo de novo.

Três ou quatro horas mais tarde, quando eu já me considerava com a digestão completamente feita, retomei os papeis rabiscados e comecei a tentar organizar aqueles rabiscos; o que dele resultou foi o poema intitulado “O sino”, último de meu livro Arquipélago. É um dos poemas mais ‘sofridos’ que escrevi: sofrido fisicamente, organicamente sofrido.

Excerto de “Meu encontro com o sino”, in Bragança, Aníbal e Santos, Maria Lizete dos, org. A profissão do poeta & Carta aos livreiros do Brasil. Niterói: Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 2002, p. 139-141. Para comprar: www.estantevirtual.com.br


Hoje, lembra-me Dora Sodré, Geir faria 86 anos. Deixou-nos uma belíssima obra, composta por livros de poesia (dentre outros, Metanáutica, 1970, e Tarefa, 1981), de contos, como O vestíbulo (2ª. ed., 1979), crônicas, peças de teatro, livros infanto-juvenis, teses, ensaios, traduções etc., que o fizeram um dos marcos da literatura brasileira do século XX. Seu ensaio “Carta aos livreiros do Brasil” (1960) continua sendo a melhor análise da situação então vivida no mercado editorial.

Este registro pretende ser uma homenagem ao escritor admirável, ao cidadão combativo, ao amigo terno, e a todos os seus leitores, a quem recomendamos a Antologia Poética, organizada por Israel Pedrosa, editada por Leo Christiano em 2003, que é quase sua obra poética completa. Acesse http://www.leochristiano.com.br/

Você, rara leitora, conhece a poesia de Geir Campos?

2 comentários:

Gabriela disse...

Conheço ainda não... Mas vou até ela.

http://google.com.profiles/dadave66 disse...

Amei a sua experiência...belíssima!
Idalina