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quinta-feira, 22 de maio de 2008

Portugal na Poesia Sempre, revista da Biblioteca Nacional

Arte poética
Rosa Alice Branco (1950- )

Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.

O que é então o poema?
Um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!

Os poetas esquecidos
Luís Filipe Castro Mendes (1950- )

Ficaram pelo caminho.
Não lhes foi sua a idade.
São nota de rodapé
para a posteridade.

Ficaram pelo caminho
na agonia esquecida
de que o escuro temor
lhes devorasse a vida.

Ficaram pelo caminho.
Fizeram o seu tempo.
Na morte sem abrigo
e que tem assento.

Ilesos da glória
que a fama não deu,
sem cruz nem vitória,
bem longe do céu

Da história literária,
gazeta ou Parnaso,
têm morte diária
ou leitores de acaso.


O poema ensina a cair
Luiza Neto Jorge (1939-1989)

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.


Lição de Buda
Casimiro de Brito (1938- )

Não creias em nada
Não creias em nada seja qual for o livro
Que tenhas lido a pedra
Onde esteja gravado
Não creias em nada seja quem for
Que te tenha dito

Não creias em nada
Ainda que eu próprio o tenha dito
Não creias em nada
A não ser que a tua mente a tua razão
Em vazio desfeita
Tenha dissolvido o sim e o não

Não creias em nada
Sequer no vaso onde se fundem a noite
As estrelas e as águas do mar
Que nada são nada sabem
Porque não há nada
Que se possa segurar


Princípios
Nuno Júdice (1949- )

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

O primeiro soneto do Português Errante
Manuel Alegre (1936- )

Eu sou o solitário o estrangeirado
o que tem uma pátria que já foi
e o que não é. Eu so o exilado
de um país que não há e que me dói.

Sou o ausente mesmo se presente
o sedentário que partiu em viagem
eu sou o inconformado o renitente
o que ficando fica de passagem.

Eu sou o o que pertence a um só lugar
perdido como o grego em outra ilíada
Eu sou este partir este ficar.

E a nau que me levou não voltará.
Eu sou talvez o último lusíada
em demanda do porto que não há.


Estes são, rara leitora, alguns do poemas que compõem parte do número 26 da revista Poesia Sempre dedicada a Portugal, publicada recentemente, embora com data de 2007. Seu editor é o poeta Marco Lucchesi. Belo trabalho de conteúdo e forma, esta devida ao projeto original de Victor Burton, adapatado por Adriana Moreno. Vale lembrar que ainda há neste número um belo ensaio sobre o cineasta Manoel de Oliveira, uma “Crônica de vislumbres” sobre o pintor Antonio Bandeira, com reproduções de algumas de suas obras, e mais.
Uma publicação da Fundação Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, presidida em boa hora por Muniz Sodré. Visite www.bn.br