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domingo, 15 de junho de 2008

Ler e escrever, segundo Peter Gay





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É claro que ler, assim como escrever, é um ato que possui muitas dimensões. Se escrever um romance é um complexo compromisso entre as necessidades instintivas e defensivas do autor, sua fome de aplauso e sua paixão pela experimentação, a leitura pode gratificar um desejo de informação sobre a vida, de alívio da realidade, de momentos de excitação erótica ou de deleite com a forma e o humor.

Tanto no autor como no leitor reverberam as mesmas paixões humanas, e ambos abrigam as mesmas necessidades humanas, mas suas experiências particulares são muitas vezes bastante diferentes. O escritor pode não experimentar as paixões que excita. Quase sempre, ler é uma regressão semelhante a brincar – regressão porque desperta e reúne memórias, brincadeira porque o leitor sabe bem, mesmo quando está profundamente absorvido em sua história, que aquilo não é verdade e que sempre pode escapar a seu encantamento. Enquanto a mágica funciona, porém, a obra de ficção rememora (ou inventa, pungentemente) recordações infantis valiosas. O leitor torna a viver entre encontros edípicos e intimidades ainda anteriores, experimentando, por momentos de enlevo, a ilusão de uma felicidade que pode nunca ter conhecido.

O ato de ler ocupa todas as principais instituições da mente: prova o id ao simular a satisfação dos instintos, lisonjeia o ego com belezes formais, aplaca o superego ao incluir o leitor numa comunidade moral invisível em que é feita justiça aos maus e aos inocentes ou (o que satisfaria a mais perseguidora das consciências) em que o sofrimento assola a todos como parte da condição humana.

Os prazeres trazidos pelo leitura advêm do fato de ser uma atividade econômica, no sentido psicanalítico do termo: ela encerra, com um gasto de energia bem inferior ao que seria exigido pela ação na realidade, aventuras esplêndias e prazeres proibidos, e tudo com pouquíssimo risco para o consumidor.
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In A paixão terna. A experiência burguesa, da Rainha Vitória a Freud, vol. 2. Trad. de Sérgio Flaksman. S. Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 144-5.

Rara leitora, este pequeno excerto de um grande livro faz parte do cap. III, “A obra de ficção”, em que Peter Gay (Berlim, 1923), historiador freudiano, analisa de modo muito percuciente e inovador as práticas de leitura e escrita no século XIX na Europa, e a importância que tiveram para os leitores as grandes obras de ficção, desde as mais refinadas, como as de Gógol, George Eliot, Balzac, Zola, Maupaussant, Eça de Queiroz, Turguêniev, Dickens, Flaubert, Machado de Assis, Tchackeray etc., até aquelas histórias simplesmente “agradáveis e amenas”.


Ler e escrever podem ser experiências das mais complexas, refinadas, criativas, agradáveis e enriquecedoras do ser humano. Viva o leitor! Viva o autor! Viva o tipógrafo, o artista gráfico, o encadernador, o editor, o livreiro, o distribuidor, a professora, os pais. De todos eles (e mais) depende o desabrochar dessa potencialidade no espírito dos homens e mulheres. Viva!

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Dez razões para escrever, segundo Roland Barthes


Como escrever não é uma atividade normativa nem científica, não posso dizer por que nem para que se escreve. Posso apenas enumerar as razões pelas quais imagino escrever:

1. por necessidade de prazer que, como se sabe, não deixa de ter alguma relação com o encantamento erótico;

2. porque a escrita descentra a fala, o indivíduo, a pessoa, realiza um trabalho cuja origem é indiscernível;

3. para pôr em prática um “dom”, satisfazer uma atividade instintiva, marcar uma diferença;

4. para ser reconhecido, gratificado, amado, contestado, constatado;

5. para cumprir tarefas ideológicas ou contra-ideológicas;

6. para obedecer às injunções de uma tipologia secreta, de uma distribuição guerreira, de uma avaliação permanente;

7. para satisfazer amigos, irritar inimigos;

8. para contrbiuir para fissurar o sistema simbólico de nossa sociedade;

9. para produzir sentidos novos, ou seja, forças novas, apoderar-me das coisas de um modo novo, abalar e modificar a subjugação dos sentidos;

10. finalmente, como resultado da multiplicidade e da contradição deliberadas dessas razões, para burlar a idéia, o ídolo, o fetiche da Determinação Única, da Causa (causalidade e “boa causa”) e credenciar assim o valor superior de uma atividade pluralista, sem causalidade, finalidade nem generalidade, como o é o próprio texto.

In Roland Barthes, Inéditos, vol. 1 – teoria. S. Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 101-2.

Além de tudo o que pretende com sua escritura, e não é pouco, como se pode perceber acima, um dos objetivos de Barthes, parece-nos, raro leitor, neste como em outros textos, é tirar-nos qualquer resquício de certezas, abalar eventuais convicções e fazer-nos pensar de novo. Além, claro, de nos provocar o prazer da leitura pela beleza de seu texto. Se quer um pouco mais de Barthes, sugiro, rara leitora, ler – ou reler – o seu pequeno grande livro O Prazer do Texto (S. Paulo: Perspectiva, 3a. ed., 1993), fruto de uma conferência, que se tornou um clássico sobre o escrever e o ler.

E você, rara leitora, escreve e lê por prazer? Ou por quê?