terça-feira, 14 de outubro de 2008

O vicio literario, segundo Olavo Bilac [em 1905]

Um jornal assignalou hontem uma feição nova do Rio: “O aspecto dos pontos urbanos em que se vendem jornaes. Feição nova, não propriamente pelos pontos, que são antigos, mas pelo stock exposto, que é agora mais volumoso. Com effeito, o Rio conta hoje nada menos de doze diarios, sendo oito da manhã, trez da tarde e um da noite. Assim, a exposição dos vendedores é mais vasta e as pilhas de folhas mais altas. E ha ainda os semanarios, que orçam por numero equivalente, alguns jornais dos Estados e alguns supplementos illustrados de jornaes estrangeiros”.

Seria esta uma novidade consoladora, se não soubessemos, como affirma o proprio jornal, que o numero dos leitores dos jornaes diarios, no Rio, fica muito áquem de cem mil...

O forasteiro, que por aqui passasse, observando as nossas cousas pela rama, ficaria realmente admirando a nossa cultura: porque deveria ser intensamente culta uma cidade que sustenta oito jornaes diarios. Mas, se dissessemos a esse forasteiro que os analphabetos, na população d’esta cidade, estão na proporção de dois para um, - o homem escancararia os olhos, não podendo comprehender a simultaneidade e a coincidencia d’essa prosperidade da imprensa com a falta de instrucção popular.

Para fazer cessar o seu pasmo, e restituir-lhe o equilibrio cerebral, seria preciso que lhe explicassemos longamente muitas cousas, - entre as quaes esta, que é de explicação difficil: a prosperidade da imprensa é apenas apparente, e constitue sómente um dos symptomas de certo vicio, que é muito nosso, - o vicio literario.

Não é sem razão que se diz que “o mundo é mal feito”. Muito mal feito! O homem é fraco, as virtudes são poucas, os vicios são muitos, o caminho que leva á felicidade é um só e escarpado, e as estradas que levam á ruina são varias e lisas...

Ha mais vicios do que virtudes, - e cada dia se inventam vicios novos. E, se é verdade que foi Deus quem fez aquellas e o Diabo quem inventou e inventa estes, - é força confessar que o genio do mal tem muito mais imaginação e muito mais fertilidade do que o genio do bem...

Mas, de todos os vicios velhos e novos da sociedade brazileira, estou em dizer que o mais espalhado e pernicioso é o literario.

Só quem vive rabiscando chronicas e noticias para os jornaes e que póde saber como é espantosamente numerosa a produccção literaria no Brazil. Não ha dia em que não cheguem a cada escriptorio de jornal trez ou quatro volumes de versos e novellas.Vêm do extremo norte, do extremo sul, dos sertões do centro, de todos os pontos do vasto paiz. Já houve uma semana, em que recebi (não ha nisto o menor exagero!) dezoito livros de poesias!

“Publicar um livro!” – é o sonho de todos os adolescentes, e até de todos os homens maduros, nesta harmoniosa terra em que todos os sabiás são poetas e todos os homens são sabiás.

E todos esses livros são editados pelos proprios autores! E, quando se pensa no resultado pratico e benefico, que para a industria, o commercio, a lavoura, as sciencias, as artes, e a instrucção do povo, se tiraria de uma outra e melhor applicação do tempo, do dinheiro, do esforço intellectual, da energia moral, da paciencia, da esperança que se gastam inutilmente com a concepção, a composição e a impressão de todos esses folhetos lyricos, - não se póde deixar de sentir certo rancor contra os velhos poetas e os velhos criticos, que, affirmando ser a nossa raça a mais lyrica de toda a terra, injectaram em nós este terrível e avassalador veneno da mania literaria!

Verdadeira mania, verdadeira doença... Comprehender-se-ia bem a nossa superproducção literaria, se neste paiz houvesse leitores. Mas não ha. As edições dos livros e folhetos que se publicam não saem das typographias: o autor manda brochar cem ou duzentos exemplares, que dá aos amigos; e o resto da tiragem é dado em pasto ás traças vorazes, quando não é vendido a peso, para embrulhar manteiga...

Mas o mal não seria grande, se essa mania apenas manifestasse por meio da publicação continua e torrencial de folhetos de versos e contos...

O que ha de terrivel neste vicio é que fazemos literatura em tudo, e a proposito de tudo, em todas as idades, em todas as classes, em todas as profissões. É um horror! Ha literatura nas mensagens presidenciaes, nos relatorios dos ministros, nos artigos de fundo, nos noticiarios, nos annuncios, nos compendios de mathematica, nos tratados de anatomia, nos códices de pharmacia, nas theses de doutoramento, nas balas-de-estalo, nos annaes do parlamento, nas revistas scientificas, nos manuaes de escripturação mercantil, nas taboas de logarithmos, e até nos quadros estatisticos!

Ainda ha poucos dias, tendo necessidade de verificar alguns apontamentos sobre a meteorologia do Rio de Janeiro, consultei um livro de demographia, escrito por um “homem pratico”, por um “homem-de-sciencia”, - d’esses que têm a vida regulada como o movimento de um chronometro, e declaram sempre desprezar a poesia, preferindo passar um anno no hospicio entre malucos a passar uma hora num café entre poetas.

Pois aqui tendes a phrase que encontrei no livro d’esse homem; aqui a tendes, sem a alteração de uma virgula nem de uma letra: “A cidade é sempre suavemente acariciada pelas brisas; de manhã, e á noite, ha os zephyros chamados terraes; e, quando, á tarde, elles deixam de amenisar a temperatura, apparecem as auras consoladoras do mar...”

Os zephyros chamados terraes! as auras consoladoras do mar!

Fechei o livro, - e fui procurar informações meteorologicas... nas Lyras de Dirceu.

O facto de existirem tantos jornaes em uma cidade em que quase ninguem lê jornaes, - é uma das consequencias d’esse vicio literario.

Ainda no collegio, fundamos jornaesinhos manuscriptos, em que ensaiamos o primeiro vôo. Não ha lyceus, nem escolas, nem faculdades superiores, nem clubs literarios que não tenham os seus jornaes. Agora, até as tavernas e os armazens de secos e molhados têm jornaes: O Pharol do Barateiro, A Atalaia dos Freguezes, O Bom Mercado, A Estrella do Bom Toucinho, o Arauto da Carne Seca...

Quem é capaz de dizer quantos jornalistas ha no Rio de Janeiro? O jornalismo é a bahia salvadora em que vêm ancorar os naufragos de todas as outras profissões. Todo o homem, que não póde aqui intitular-se outra cousa, logo se lembra de intitular-se jornalista. As confeitarias, os botequins, os theatros, os clubs de dança, as casas de jogo, todas as casas e todas as ruas da cidade estão cheias de jornalistas!

Mas, emfim, quem lê todos esses jornaes? lemol-os nós, que os fazemos, - assim como também os livros de versos são lidos pelos autores. É um caso de... Não! Não posso escrever a comparação que o caso me suggere!

E, emquanto isso, - nada se faz para criar um publico. O analphabetismo progride, engrossado pelas levas de immigrntes que nos chegam da Europa. De onde vêm os povoadores que attrahe a Directoria do Povoamento? não vêm da França, nem da Suissa, nem da peninsula escandinava, onde não ha homem adulto ou adolescente, que não saiba ler e escrever: - vêm das peninsulas meridionaes da Europa, e da Polonia, e da Armenia, onde ha aldeias inteiras que nunca viram uma carta de abc...

Como se o numero dos analphabetos nacionaes não fosse consideravel! Ainda hontem, ao jantar, como falassemos d’estas cousas que sempre me preoccupam, disse-me um amigo: “Quer você horrorizar-se? pois, ouça isto! Ha algum tempo, estive, em Minas, em uma pequena povoação chamada Os Teixeiras, a 14 leguas de Bello Horizonte, no municipio de Itaúna, perto do rio Paráopeba. Essa aldeia tinha 237 habitantes, - e d’esses 237 habitantes apenas dois sabiam ler!”

Não tratamos de criar um publico, - nem de criar um povo livre. Estamos criando um povo de escravos.

E fundamos jornaes, e publicamos livros de versos e de novellas, e de dia em dia nos dedicamos com maior ardor ao vicio liteario...

E este vicio é mais enganador e mais allucinador do que o do opio, porque até nos dá esta illusão de delirio vesanico: a existencia de uma literatura nacional em um paiz que não saber ler!

(1905)

In Ironia e piedade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1926 [1ª. ed.: 1916], p. 187-192.

Este retrato, raro leitor, das práticas de leitura, escrita e edição no Brasil de início do século XX, faz pensar em como o vício literário se manteve de certa forma até hoje, embora sempre restrito a parcela muito pequena da sociedade.

E hoje formar leitores de livros, o público reclamado por Bilac, é bem mais difícil, todos sabemos. Depois das maravilhas do cinema, do rádio, da televisão, temos agora a da Internet e dos computadores! E continuamos a publicar, e muito, em relação ao número de leitores efetivos.

Entretanto, segundo o mexicano Gabriel Zaid, “se todos os que desejam ser lidos na verdade lessem, haveria uma explosão sem precedentes, já que nunca tantos milhões de pessoas sonharam em ser publicados. Mas o narcisismo dificilmente gratificante do “leia-me que eu o lerei” degenerou-se em um narcisismo que nem ao menos é recíproco: “Não me peça que preste atenção em você, você presta atenção em mim Não tenho o tempo, nem o dinheiro, nem o desejo de ler o que você escreveu, quero seu tempo, seu dinheiro e seu desejo. Não me importam suas preocupações, que tal você pensar nas minhas?”.

Sabemos que a realidade de hoje é bem diferente da de um século atrás. Mas, ainda assim, vale (re)ler Olavo Bilac (na grafia original para nos lembrar da nova reforma ortográfica), junto com o ótimo livro de Gabriel Zaid, Livros demais! – Sobre ler, escrever e publicar, editado aqui pela Summus, em 2004, com tradução de Felipe Lindoso. Eles nos ajudam a pensar os desafios atuais da cultura letrada em nosso país. Escreva-nos para dizer o que pensa sobre isso, raro leitor. Se chegou até aqui, certamente, o tema lhe interessa muito.

2 comentários:

Henrique Chaudon disse...

Caro Aníbal:
Eis aí uma postagem que mereceria ser amplamente divulgada!
Vou repassar, data venia, a algumas pessoas. Grande abraço,

Beatriz Vieira disse...

olá
Realmente em nosso país é muito complicado a questão de leitura.
A própria cena de leitura é vista com deboche e "intelectualismo".
Penso que é melhor unirmos forças e trocarmos idéias com quem já tem certo interesse pelos livros.
Saudações.