domingo, 17 de agosto de 2008

Nicolau Sevcenko, O vampiro de polpa ou confissões de um leitor compulsivo (conclusão)

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Um travo persistente ficou, no entanto, da minha infância mergulhada nos livros. Todos os adultos costumavam se referir, com freqüência, a um diário que meu avô sempre trazia consigo e anotava sem parar. Explicavam que era uma espécie de caderno, com capa de couro preto e detalhes dourados. Procurei sem cessar esse livro misterioso, mas não o encontrava nunca.

Sondei os livros que ficaram de posse dos meus tios e tias., igualmente sem sucesso. O que em particular me excitava nessa busca era encontrar detalhes de uma vida cheia de experiências, as mais extraordinárias.

Nas suas atribuições militares, meu avô lutou na Primeira Guerra, na Revolução e na Guerra Civil. Por isso mesmo é que ele acabou desencadeando o destino sinistro e o exílio da nossa família.

Os detalhes de como isso tudo se deu eram obscuros e os adultos se recusavam terminantemente a evocar e relatar experiências que os marcaram com intensidade traumática. Como conseqüência, meu sentido de origem e minha própria identidade ficavam perturbadoramente turvados. Só o diário, e com ele as devidas explicações, é que poderia trazer paz ao meu espírito.

Aconteceu então, há três anos atrás, de falecer um vizinho nosso, o senhor Vitalin, membro da comunidade, que viera como refugiado com meu avô, de quem era amigo dileto. Ele também deixou uma grande coleção de livros como legado, de que a família queria se desfazer. O que me chamou a atenção e me deixou excitado. A agitação aumentou muito quando me falaram que ele costumava trocar livros com meu avô e, na verdade, havia ficado com boa parte da sua coleção. Uau! O coração bateu forte, será que...? Corri para lá.

Me puz a percorrer os livros com as mãos tremendo. O mesmo padrão da coleção do meu avô: livros antigos, encapados, várias origens, muitas línguas diferentes. Até que, sim, eureka!

Lá estava o diário, exatamente como havia sido descrito, todo anotado com a letrinha miúda e elegante, que eu identificava com a dos manuscritos de meu avô. Levei-o para casa, um enorme esforço de decifração e um desconsolo frustrante. Como havia estudando durante algum tempo num velho mosteiro ortodoxo, nas estepes geladas da Carélia e desejando com certeza garantir a privacidade de seu diário, ele escrevera suas notas em eslavônico antigo.

Essa era uma língua morta, usada apenas pela Igreja Ortodoxa, tornada literária pelos bispos Cirilo e Metódio no século 9º e praticamente abolida após a Revolução. O diário enfim existia, mas era ilegível. O que tornou ainda mais exasperante meu tormento.

Tanto amolei e insisti com o padre da nossa paróquia, até que ele conseguiu me localizar um ancião ainda capaz de ler naquela língua extinta. Ele me apresentou o senhor Gabril, a quem pedi a benção, beijei-lhe a mão e estendi o livro. Ajustando um grosso par de óculos com as mãos trêmulas, quase tanto quanto as minhas, ele examinou longamente o volume no mais absoluto silêncio.

Folheava e lia, para frente e para trás, demorando-se longamente com o dedo a correr sobre as páginas amareladas. Depois de horas, quando minha paciência já estava ensaiando um colapso, ele se pronunciou: “São livros!”

Confuso, perguntei o que ele queria dizer com aquilo. O senhor Gabril explicou então calmamente. “São comentários sobre livros sagrados, pensamentos sobre os mistérios da Igreja e da alma, tal como estabelecidos pelos mestre da Santa Fé Ortodoxa”.

Passada a decepção inicial, fui desde então adquirindo uma tranqüilidade há muito ansiada. Afinal, a orientação que meu avô dera ao curso de suas ações foi fruto de convicções adquiridas na prática persistente da leitura. Se eu quisesse conhecê-lo, deveria ser através de seus livros. Assim também minhas origens, minha identidade e meu destino, repousavam naquela tradição escrita que eu, na minha vida, ampliei, multipliquei e diversifiquei com meu próprio repertório de leituras.

O nexo com meus ancestrais ficou assim reestabelecido pela cadeia dos livros. Quando criança, eu usava os livros em pilhas para construir castelo. Agora eu sinto que moro dentro de suas páginas.


Nicolau Sevcenko, “O vampiro de polpa ou confissões de um leitor compulsivo”, in Livro Aberto, ano I, nº 1, S. Paulo, agosto 1996, p. 22-23.

[Leia a primeira parte do texto, neste blog, na postagem do dia 2/8/2008]

Raro leitor, Henrique Chaudon, poeta de Confissões a Baco, aqui está a segunda parte do artigo de Sevcenko, atendendo a seu interesse de leitura. Admiro muito o autor, um historiador brasileiro que tem oferecido excelentes contribuições bibliográficas ao país, como pesquisador da sua cultura. Quem sabe, em sua próxima visita à livraria, ao sebo ou à biblioteca, irá encontrar alguma de suas obras. Vale a pena conferir. Obrigado pela sua participação no blog, sempre enriquecedora.

Um comentário:

Henrique Chaudon disse...

Caro amigo Aníbal:
Eu é que agradeço a atenção.
A ventura de encontrar o tão desejado diário, e a decepção que se seguiu ao conhecer-lhe o conteúdo, podem bem servir de metáfora a tantos anseios que temos na vida...
Mas a lição que desse episódio o autor extraiu é o que importa. De fato, a biblioteca de um homem pode muito bem nos dar um esboço desse homem.
Grande abraço.