sábado, 16 de agosto de 2008

Cora Coralina (1889-1985): poemas de formação

“Autobiografia”

Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

(...)

Numa ânsia de vida eu abria
o vôo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia
caída e a república
que se instalava.

(...)

Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.

Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.

Sendo eu mais doméstica do
que intelectual.
Não escrevo jamais de forma
consciente e raciocinada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a consciência de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contramarcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira
do que escritora, sendo a Arte culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que estão ligadas a vida e
a saúde humana.

Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.

Sobrevivi, me recompondo aos bocados,
à dura compressão dos
rígidos preconceitos do passado.

(...)

A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.

Foi assim que cheguei a este livro
sem referências a mencionar.

Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem menção honrosa.
Nenhuma láurea.

Apenas a autenticidade de minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.
(...)

In Meu livro de cordel. Poemas e crônicas. 1ª. ed. Goiânia (GO): P. D. Araújo – Livraria e Editora Cultura Goiana, 1976, 11-13.


Nasci antes do tempo

Tudo o que criei ou defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por quê?

Quando menina,
ouvia dizer sem entender
quando coisa boa ou ruim
acontecia a alguém:
fulano nasceu antes do tempo.
Guardei.

Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou:
você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.


Mestra Silvina

Vesti a memória com meu mandrião balão.
Centrei nas mãos meu vintém de cobre.
Oferta de uma infância pobre, inconsciente, ingênua,
revivida nestas páginas.

Minha escola primária, fostes meu ponto de partida,
dei voltas ao mundo.
Criei meus mundos...
Minha escola primária. Minha memória reverencia minha velha Mestra.
Nas minhas festivas noites de autógrafos, minhas colunas de jornais
e livros, está sempre presente minha escola primária.
Eu era menina do banco das mais atrasadas.

Minha escola primária...
Eu era um casulo feio, informe, inexpressivo.
E ela me refez, me desencantou.
Abriu pela paciência e didática da velha mestra,
cinqüentanos mais do que eu, o meu entendimento ocluso.

A escola da Mestra Silvina...
Tão pobre ela. Tão pobre a escola...
Sua pobreza encerrava uma luz que ninguém via.
Tantos anos já corridos...
Tantas voltas deu-me a vida...

No brilho de minhas noites de autógrafos,
luzes, mocidade e flores à minha volta, bruscamente a mutação se faz.
Cala o microfone, a voz da saudação.

Peça a peça se decompõe a cena,
retirados os painéis, o quadro se refaz,
tão pungente, diferente.

Toda pobreza da minha velha escola
se impõe e a mestra é iluminada de uma nova dimensão.

Estão presentes nos seus bancos
seus livros desusados, suas lousas que ninguém mais vê,
meus colegas relembrados.
Queira ou não, vejo-me tão pequena, no banco das atrasadas.

E volto a ser Aninha,
aquela em que ninguém
acreditava.

Meu epitáfio

Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.

In Cora Coralina. Melhores poemas. 2ª. ed., rev. e ampl. Seleção de Darcy França Denófrio. S. Paulo: Global, 2004.

Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto, surgiu para o mundo literário nacional em 1980 "pelas mãos" de Carlos Drummond de Andrade quando a apresentou no Jornal do Brasil como “mulher extraordinária, diamante goiano, cintilando na solidão, e que pode ser contemplado, em sua pureza no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, que definiu como um livro “comovedor”. Nessa época já contava Cora Coralina mais de 90 anos de idade. Teve um reconhecimento tardio.

Para conhecer mais da sua obra, dentre outros, há o estudo de Darcy França Denógrio, professora da Universidade Federal de Goiás, responsável pela seleção dos seus Melhores poemas, volume editado pela Global, no qual incluiu o ensaio “Cora dos Goiases”.

Os poemas que ora lhe apresentamos, rara leitora, podem ser testemunho, na sua "autenticidade", de uma formação singular nas artes da escrita no Brasil, fora de seus centros, quando da passagem do século XIX para o XX, na sua modernidade inacabada. Para sempre inacabada.

Para saber mais:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

2 comentários:

Anônimo disse...

"...um vago desejo de analfabetismo." Que beleza de verso!

Beatriz Vieira disse...

nao conhecia ainda Cora Coralina... Otima sugestao!!