segunda-feira, 18 de agosto de 2008

João Rui de Sousa: O rosto (o rasto) da escrita

Vida e morte das palavras

São vivas quando
o coração do vento amadurece
e a voz vem de repente
e não se esquece
de estremecer as trevas
ou de roer as malhas
da rotina
ou de dar lenha e fogo
(matéria inesperada
e sibilina)
a um barco que arrefece.

São mortas quando
a morte nelas cresce
– com os seus cabelos ralos,
suas ramagens crespas, desgastadas,
seus ossos cabisbaixos
rolados sobre o nada.
São mortas se não queimam
a limalha sobrante – esse pó
de cães exaustos, de dias
fatigantes –
e em podridão se instalam.


Pastoreio

É em íngremes serranias – e talvez ao luar –
que acompanho o gado (o vulto
das palavras) de que às vezes sou dono
e sou pastor.

Bem junto a ele, e vislumbrando ao longe
ruínas e caminhos, hortejos e silvedos
(e mesmo um corpo em chamas de guitarra),
reencontro o fio das frases e os poemas
– seus currais.


O infindável dos pretextos poéticos

Até à evidência,
até ao clarear de aves nocturnas
em rotundos prados, até ao fogo
das queimadas
(até à queima de si mesmo
no centro das cavernas, entre cães
de Lascaux, bisontes de Altamira),
até ao gotejar da água e à lasciva
seda de dormir entre folhagens,
até ao lago fundo e até à cinza
duma penumbra errante (pragal
de nostalgia e de quebranto)
– há sempre atalhos rubros
para a escrita,
há sempre airosas rãs
para a nossa fala.


Conselho aos crentes

Não queirais entrar na dor que se constrói
de verso a verso, de sílaba a sílaba,
num fogo que se expande e adere à boca,
às páginas, às estrofes e às palavras,
queimando todo o corpo e a alma desavinda
ou aspergindo a voz da maldição
(a nossa e a do mundo)
na trémula incerteza de si mesma.

Adoradores de fé qualquer (terrena
ou transcendente) que tudo abarque
e salve e concilie:
não quebreis o encanto com tais nuvens
ou torturas de ardor e entendimento;
não procureis a lápide das dúvidas
colhidas em estações de desalento;
não vos afasteis do vosso rumo
de confiante e pendular porfia.

Não vos deixeis – ó crentes, cujo rosto
tem a candura de um áureo chamamento –
cair na tentação da poesia!


Que formalismo

De lamber as palavras como se
rasas de silêncio elas fingissem
e não se trucidassem contra o vento
e não voassem fundo
e não ferissem?

De afagar as palavras como se
um aguçado arame não
nos arranhasse
e não despisse em nós
a veste que se cola,
a casca da aparência?

De alisar as palavras como se
não fosse duro e fundo
o solo de onde partiram
e o lancinante grito
que lá mora?

É sempre um homem que
por elas fala,
é sempre um coração
que aí adeja!

In Quarteto para as próximas chuvas, Lisboa: D. Quixote, 2008.

João Rui de Sousa, nasceu em 1928, em Lisboa. É poeta, ensaísta e pesquisador. Trabalhou na área de espólios literários da Biblioteca Nacional (de Portugal). Este belo livro chegou a mim pela via das fraternas sociabilidades poéticas nascidas na rede, confirmadas por experiências de pessoas em carne e osso. Estou muito grato.

Espero, rara leitora, que aprecie estes poemas vindos da outra margem deste Atlântico que nos une a Portugal.


Este e outros livros do autor:
Editora Dom Quixote
www.dquixote.pt

Para saber mais:

Resenha de Quarteto para as próximas chuvas, por Fernando J. B. Martinho, na Revista Colóquio/Letras:
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/news?i=15

Um comentário:

Victor Oliveira Mateus disse...

Caro Aníbal,

bela homenagem àquele que é hoje
um dos grandes nomes da poesia portuguesa. Não falarei do livro
porque dele falou, e bem, o Fernando Martinho no anexo a este
"post". Direi apenas que, num país
onde os poetas só costumam ser bons depois de mortos, João Rui de
Sousa vê, finalmente, a sua obra
observada e reconhecida como merece
Este livro teve as mais elogiosas
críticas por todo o lado... Falando
ainda da figura, e não da obra, direi que este "boom" em torno deste livro não alterou o estar
do poeta, que se mantém discreto,
sem os tiques de muitos "pseudo-
-divos" que mal publicam dois livros logo se julgam Nerudas de
primeira... Conversador inteligente
ora discorrendo sobre um tema, ora sobre uma experiência... E é aqui que eu queria chegar: o reconheci-
mento (embora tardio)e o êxito
tiveram efeito sobre a obra, não sobre o sujeito, que continua a demonstrar que a poesia não é só "aquilo" que a um poema se acrescenta, mas é também um modo muito específico de assunção da
frágil condição do poeta (e do ser humano em geral) nas sociedades ditas desenvolvidas...
Um abraço.