sábado, 28 de junho de 2008

Michel de Montaigne (28/2/1533-13/9/1592), Dos livros

Bem sei que me ocorre não raro falar de coisas que são melhor e mais precisamente comentadas pelos mestres do ofício. O que escrevo resulta de minhas faculdades naturais e não do que se adquire pelo estudo. E quem apontar algum erro atribuível à minha ignorância não fará grande descoberta, pois não posso dar a outrem garantias acerca do que escrevo, não estando sequer satisfeito comigo mesmo. Quem busca sabedoria, que a busque onde se aloja: não tenho a pretensão de possuí-la. O que aí se encontra é produto de minha fantasia; não viso explicar ou elucidar as coisas que comento, mas tão-somente mostrar-me como sou. Talvez as venha a conhecer a fundo um dia, ou as tenha conhecido, se por acaso andei por onde elas se esclarecem. Mas já não as recordo. Embora seja capaz de tirar proveito do que aprendo, não o retenho na memória: daí não poder assegurar a exatidão de minhas citações. Que se veja nelas, apenas, o grau de meus conhecimentos atuais.

Não se preste atenção à escolha das matérias que discuto, mas tão-somente à maneira por que as trato. E, no que tomo de empréstimo aos outros, vejam unicamente se soube escolher algo capaz de realçar ou apoiar a idéia que desenvolvo, a qual, sim, é sempre minha.

Não me inspiro nas citações; valho-me delas para corroborar o que digo e que não sei tão bem expressar, ou por insuficiência da língua ou por fraqueza dos sentidos. Não me preocupo com a quantidade e sim com a qualidade das citações. Provêm todas, ou quase, dos autores antigos que hão de reconhecer embora não os mencione.
(...)

Gostaria por certo de possuir, acerca do que comento, um conhecimento completo, mas, para o adquirir, não quero pagar o elevado preço que custa. Tenho a intenção de viver tranqüilamente, sem me aborrecer, durante o tempo que me resta, e não desejo quebrar a cabeça com o que quer que seja, nem mesmo com a ciência que muito prezo.

Não busco nos livros senão o prazer de um honesto passatempo; e nesse estudo não me prendo senão ao que possa desenvolver em mim o conhecimento de mim mesmo e me auxilie a viver e morrer bem, “essa meta para onde deve correr o meu corcel”.

As dificuldades com que deparo lendo, não me preocupam exageradamente; deixo-as de lado, após tentar resolvê-las uma ou duas vezes. Se me detivesse nelas, perder-me-ia e perderia meu tempo, pois meu espírito é de tal índole que o que não percebe de imediato menos entende em se obstinando. Não sou capaz de nada que não me dê prazer ou que exija esforço, e atardar-me demasiado em um assunto, ou nele me concentrar demoradamente, perturba minha inteligência, cansa-a e me entristece. Embacia-se-me a vista e se enfraquece, de modo que tenho de interromper a leitura e repeti-la como quando queremos perceber o brilho de certos tecidos, e precisamos olhá-los várias vezes e de vários modos.

Se um livro me entedia, pego outro e só me dedico à leitura quando não sei que fazer; e o enfado me domina. Quase não leio livros novos; prefiro os antigos que me parecem mais sérios e bem feitos; não procuro tampouco autores gregos, porque meu espírito não pode tirar partido do conhecimento insignificante que tenho da língua grega.

Entre as obras de mero passatempo, agradam-me entre os modernos o “Decamerom”, de Boccaccio, Rabelais e “Os Beijos”, de Jean Second, se é que este último, escrito em latim, pode incluir-se entre os modernos.

Quanto aos Amadis e outros romances do gênero, não me interessaram sequer quando os li em criança. Direi mesmo, o que há de parecer ousado ou temerário, que meu espírito envelhecido não aprecia mais a leitura, não somente de Ariosto mas ainda do bom Ovídio. Sua imaginação, sua facilidade, que outrora me encantavam, não me distraem mais agora.

Exprimo livremente minha opinião acerca de tudo, mesmo daquilo que, por ultrapassar meus conhecimentos intelectuais, considero fora de minha alçada. O meu comentário tem entretanto por fim revelar meu ponto de vista, e não julgar do mérito das coisas.
(...)

Michel de Montaigne, Ensaios, II. “Dos livros”, tradução de Sérgio Milliet. S. Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 196-201. Coleção “Os Pensadores”, v. XI.

Certamente o livro Ensaios, publicado postumamente, em 1595, nos seus 3 volumes, é um dos clássicos da cultura ocidental. O “Dos livros”, dentre outros, tem sido citado desde então. Por isso, o incluímos aqui, em pequenos excertos, para animar o raro leitor a relê-lo ou a conhecê-lo integralmente. Pouco mais de cem anos após a invenção da tipografia por Gutenberg, que iria contribuir decisivamente para a construção do mundo moderno, tendo a cultura letrada como o grande eixo das transformações na religião, na política, na ciência, Montaigne era, como se vê, um cético, certamente, um transgressor. Inspirou, no século XVIII, os Iluministas. Segundo o apresentador da edição, “Montesquieu (1689-1744) classificou-o entre os poetas da filosofia e Voltaire colocou-o no exército dos que atacam ‘l’Infâme’, a Igreja: ‘Montaigne, esse autor encantador. / ora profundo, ora frívolo, / de tudo duvidava impunemente/ e zombava mui livremente / dos estúpidos tagarelas da Escola”.

Deve-se atinar para a dimensão do que escreveu (acima) sobre os livros e a leitura: “não me prendo senão ao que possa desenvolver em mim o conhecimento de mim mesmo e me auxilie a viver e morrer bem”. Que de mais alto se poderia desejar, raro leitor?

Um comentário:

Henrique Chaudon disse...

Amigo Aníbal:
Quanta lucidez e sabedoria transparecem nos excertos que V. selecionou!
Essa relação de Montaigne com os livros e com o Conhecimento, de um modo geral, é reconfortante para todos nós, pobres leitores e pequenos e grandes ignorantes...
Abraço, e obrigado.