domingo, 22 de junho de 2008

Leitura e pensar por si mesmo, segundo Arthur Schopenhauer

A mais rica biblioteca, quando desorganizada, não é tão proveitosa quanto uma bastante modesta, mas bem ordenada. Da mesma maneira, uma grande quantidade de conhecimentos, quando não foi elaborada por um pensamento próprio, tem muito menos valor do que uma quantidade bem mais limitada, que, no entanto, foi devidamente assimilada. Pois é apenas por meio da combinação ampla do que se sabe, por meio da comparação de cada verdade com todas as outras, que uma pessoa se apropria de seu próprio saber e o domina. Só é possível pensar com profundidade sobre o que se sabe, por isso se deve aprender algo; mas também só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profundidade.

No entanto, podemos nos dedicar de modo arbitrário à leitura e ao aprendizado; ao pensamento, por outro lado, não é possível se dedicar arbitrariamente. Ele precisa ser atiçado, como é o fogo por uma corrente de ar, precisa ser ocupado por algum interesse nos assuntos para os quais se volta; mas esse interesse pode ser puramente objetivo ou puramente subjetivo.

Este último se refere apenas às coisas que nos concernem pessoalmente, enquanto o interesse objetivo só existe nas cabeças que pensam por natureza, nas mentes para as quais o pensamento é algo tão natural quanto a respiração. Mas mentes assim são muito raras, por isso não se encontram muitas delas em meio aos eruditos.

O efeito que o pensamento próprio tem sobre o espírito é incrivelmente diferente do efeito que caracteriza a leitura, e com isso há um aumento progressivo da diversidade original dos cérebros, graças à qual as pessoas são implidas para uma coisa ou para outra.

A leitura impõe ao espírito pensamentos que, em relação ao direcionamento e à disposição dele naquele momento, são tão estranhas e heterogêneos quanto o selo em relação ao lacre, sobre o qual imprime sua marca.

Desse modo, o espírito sofre uma imposição completa do exterior para pensar, naquele instante uma coisa ou outra, isto é, para pensar determinados assuntos aos quais ele não tinha na verdade nenhuma propensão ou disposição.

Em contrapartida, quando alguém pensa por si mesmo, segue seu mais próprio impulso, tal como está determinado no momento, seja pelo ambiente que o cerca, seja por alguma lembrança próxima. No caso das circunstâncias perceptíveis, não há uma imposição ao espírito de um determinado pensamento, como ocorre na leitura, mas elas lhe dão apenas a matéria e a oportunidade para pensar o que está de acordo com sua natureza e com sua disposição presente.

Desse modo, o excesso de leitura tira do espírito toda a elasticidade, da mesma maneira que uma pressão contínua tira a elasticidade de uma mola. O meio mais seguro para não possuir nenhum pensamento próprio é pegar um livro nas mãos a cada minuto livre. Essa prática explica por que a erudição torna a maioria dos homens ainda mais pobres de espírito e simplórios do que são por natureza, privando também os seus escritos de todo e qualquer êxito. Como disse Pope, eles estão: “Sempre lendo para nunca serem lidos”.

Os eruditos são aqueles que leram coisas nos livros, mas os pensadores, os gênios, os fachos de luz e promotores da espécie humana são aqueles que as lerem diretamente no livro do mundo.

No fundo, apenas os pensamentos próprios são verdadeiros e têm vida, pois somente eles são entendidos de modo autêntico e completo. Pensamentos alheios, lidos, são como as sobras da refeição de outra pessoa, ou como as roupas deixadas por um hóspede na casa. (...)

A leitura não passa de um substituto do pensamento próprio. Trata-se de um modo de deixar que seus pensamentos sejam conduzidos em andadeiras por outra pessoa. Além disso, muitos livros servem apenas para mostrar quantos caminhos falsos existem e como uma pessoa pode ser extraviada se resolver segui-los. Mas aquele que é conduzido pelo gênio, ou seja, que pensa por si mesmo, que pensa por vontade própria, de modo autêntico, possui a bússula para encontrar o caminho certo.

Assim, uma pessoa só deve ler quanto a fonte dos seus pensamentos próprios seca, o que ocorre com bastante freqüência mesmo entre as melhores cabeças. (...)

Às vezes é possível desvendar, com muito esforço e lentidão, por meio do próprio pensamento, uma verdade, uma idéa que poderia ser encontrada confortavelmente já pronta num livro. No entanto, ela é cem vezes mais valiosa quando obtida por meio do próprio pensamento. (...)

A verdade meramente aprendida fica colada em nós como um membro artificial, um dente postiço, um nariz de cera, ou no máximo como um enxerto, uma plástica de nariz feita com a carne de outros. Mas a verdade conquistada por meio do próprio pensamento é como o membro natural, pois só ela pertence realmente a nós. Essa é a base da diferença entre o pensador e o mero erudito. (...)


In Arthur Schopenhauer, A arte de escrever. Org., trad., pref. e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 39-44.

Propomos, rara leitora, que este excerto do texto de Schopenhauer, ao contrário do que afirma seu autor, pode nos fazer pensar “por nós próprios” sobre nossa relação com as leituras e, portanto, com os pensamentos alheios. Certamente se lêssemos apenas este grande filósofo correríamos o risco sobre o qual somos alertados, isto é, seríamos, no máximo, schopenhauerianos, repetidores de suas verdades, ou mesmo eruditos sem pensamento original.

Entretanto, o bom leitor bebe em muitas fontes e as compara e pensa, reunindo suas próprias reflexões às trazidas pelos textos que lê, assim enriquecendo-as. E, ao contrário do que diz o autor, nós também escolhemos nossas leituras, a partir dos nossos próprios interesses, nascidos dessas reflexões anteriores, e não por mero acaso ou imposição exterior. O que acha você?

Mas, ao lançar o olhar sobre o entorno, não nos negamos a concordar com Schopenchauer, que valeria mais um biblioteca “modesta, mas bem ordenada”...

2 comentários:

Gracinda Rosa disse...

Aníbal
Este é mais um tema envolvente que você nos oferece.Já refleti muito sobre ele. Concordo com você quando diz que "nós também escolhemos nossas leituras". Buscamos o que nos interessa, o que nos agrada. Às vezes, porém, somos levados a buscar novos assuntos e novos autores, que vão abrindo maiores horizontes, por rumos nem sequer suspeitados em nossas habituais escolhas. Quantas surpresas! Foi o caso, entre outros, do livro "Terra Virgem", de Constâncio Vigil, que me indicaram quando eu era ainda bem jovem, e que abriu novos caminhos às minhas reflexões sobre a vida e que releio até hoje.
Quanto à biblioteca "bem ordenada", nem sempre isso é possíve, o que, em verdade, não chega a diminuir nosso amor pelos livros.
No meu entender, ler e refletir se completam. Ler sem refletir, sim, me parece inútil. Já falei demais.
Um grande abraço da Gracinda.

Eduardo Ribeiro disse...

Anibal,

Quero disponibilizar para meus alunos da faculdade um trecho de A Arte de Escrever - do prefácio do Sussekind, no qual se faz uma crítica a frases longas e o aposto. Na frase constante do prefácio, citada do livro, diz-se que (sobre o aposto) "deve se dar a regra e o exemplo ao mesmo tempo" ou algo assim. Obrigado