O principiante
Sua mão mal se movimenta,
custa a escorregar pela mesa,
caracol no jardim da ciência,
desenrolando letra a letra
a obscura linha do seu nome.
Ah, como é leve o átomo puro,
e ágil o equilíbrio do mundo,
e rápido, e célere, o curso
do céu, do destino de tudo!
Mas na terra o pálido aluno
devagar escreve o seu nome.
(Em Retrato natural, p. 355-6)
Jornal longe
Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias,
anúncios, fotografias, opiniões...?
Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra:
e o sol empalidece suas letras infinitas.
Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens?
Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu.
De dia, lemos na flor que nasce e na abelha que voa;
de noite, nas grandes estrelas, e no aroma do campo serenado.
Aqui, toda a vizinhança proclama convicta:
“Os jornais servem para fazer embrulhos.”
E é uma das raras vezes em que todos estão de acordo.
(Em Mar Absoluto e outros poemas, p. 301)
Comunicação
Pequena lagartixa branca,
ó noiva brusca dos ladrilhos!
sobe à minha mesa, descansa,
debruça-te em meus calmos livros.
Ouve comigo a voz dos poetas
que agora não dizem mais nada,
– e diziam coisas tão belas! –
ó ídolo de cinza e prata!
Ó breve deusa de silêncio
que na face da noite corres
como a dor pelo pensamento,
– e sozinha miras e foges.
Pequena lagartixa – vinda
qara quê? – pousa em mim teus olhos.
Quero contemplar tua vida,
a repetição dos teus mortos.
Como os poetas que já cantaram,
e que já ninguém mais escuta,
eu sou também a sombra vaga
de alguma interminável música.
Pára em meu coração deserto!
Deixa que te ame, ó alheia, ó esquiva...
Sobre a torrente do universo,
nas pontes frágeis da poesia.
(Em Retrato natural, p. 335)
Interlúdio
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente – claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales.
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.
Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.
Fico ao teu lado.
(Em Vaga música, p. 183)
Hoje, rara leitora, senti falta de poesia no blog e em mim. Tenho pensado nalguns versos imortais de Cecília Meireles – eu não tinha este rosto de hoje – e busquei na belo volume da sua Obra poética, editada pela Nova Aguilar, de 1983, estes poemas que nos falam de escritura, leitura, livros e ternura. Passou. Espero que aprecie.
sexta-feira, 27 de junho de 2008
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3 comentários:
Olá Anibal
Parabéns pela linda postagem!
Além do sentimento de transitoriedade, desejo de plenitude, fugacidade das coisas e dos seres, o que repercute imensamente em mim na poesia ceciliana é a expressão sincera dos sentimentos.
Bachelard diz que o poeta até pode, através de domínios técnicos, disfarçar os sentimentos, todavia o mesmo não ocorre quando se trata da expressão de sua grande infância: a alma. E, para mim, a poética ceciliana se constitui basicamente de "imagens da infância". Imagens da alma pura e singela de Cecília Meireles.
Bjs
Regina
"Deixa o presente. Não fales.
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado."
___________° nada mais a acrescentar, Aníbal...a não ser a sua peculiar sensibilidade!
beijO,
Rosa.
Ninguém tece bordados com linhas tão sutis como a Cecília!
Obrigado pelos poemas.
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