sexta-feira, 20 de junho de 2008

Sobre a leitura, Marcel Proust

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E nisto reside, com efeito, um dos grandes e maravilhosos caracteres dos belos livros (que nos fará compreender o papel, ao mesmo tempo essencial e limitado que a leitura pode desempenhar na nossa vida espiritual) que para o autor poderiam chamar-se “Conclusões” e para o leitor “Incitações”.

Sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde a do autor termina, e gostaríamos que ele nos desse respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos. Estes desejos, ele não pode despertar em nós senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar.

Mas por uma lei singular e, aliás, providencial da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de ninguém e que demos criá-la nós mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos aparece senão como começo da nossa, de sorte que é no momento em que eles nos disseram tudo que podiam nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que ainda nada nos disseram.

Aliás, se lhes fizermos perguntas, às quais não podem responder, também pedimos-lhe respostas que não nos instruirão em nada. Porque é um efeito do amor que os poetas consigam fazer com que demos uma importância literal a coisas que não são para eles mais do que significativas de emoções pessoais. Em cada quadro que nos mostram, parecem dar-nos apenas uma ligeira impressão de uma paisagem maravilhosa, diferente do resto do mundo e no coração da qual gostaríamos que eles nos fizessem penetrar. (...)

O que os faz parecer diferentes e mais belos que o resto do mundo é que eles trazem em si, como um reflexo intangível, a insaciável impressão que deram ao gênio, e que nós veríamos errar tão singular quanto despótica sobre a face indiferente e submissa de todas as regiões que ele teria pintado.

Essa aparência com que eles nos encantam e nos decepcionam e para além da qual gostaríamos de ir, é a própria essência dessa coisa, de algum modo, sem espessura – miragem estática sobre uma tela – que é uma visão. E essa bruma que nossos olhos ávidos gostariam de penetrar é a última palavra da arte do pintor.

O supremo esforço do escritor como artista não consegue senão erguer parcialmente para nós o véu da feiúra e da insignificância que nos deixa negligentes diante do universo. Então, ele nos diz: (...) “Olhe a casa de Zelândia, rosa e brilhante como uma concha. Olhe! Aprenda a ver!” E neste momento ele desaparece.

Este é o preço da leitura e esta é a sua insuficiência. É dar um papel muito grande ao que não é mais que uma iniciação para uma disciplina. A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constituiu.
(...)

In Marcel Proust. Sobre a leitura. Trad. de Carlos Vogt. Campinas: Pontes, 1989, p. 30-32.

Este pequeno trecho, rara leitora, de um singelo livro, nada mais que o prefácio que escreveu Marcel Proust para a tradução que fez para o francês do romance Sesame and Lilies (Sésame et les Lys), de John Ruskin, em 1905, pode dar-lhe uma pista da riqueza de reflexões e sugestões que o grande escritor - e maior leitor - colocou ao nosso alcance para nos “incitar” a outras descobertas sobre o significado da leitura em nossas vidas. Aproveitemos.

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