quinta-feira, 26 de junho de 2008

Franz Kafka, por Otto Maria Carpeaux - II


Acima, Franz Kafka. Fonte: www.vitejte.cz/objekt.php?oid=222&j=en ;
Embaixo: Otto Maria Carpeaux, na calçada da Livraria Pasárgada (Niterói), em 1968.



Meu segundo encontro com Franz Kafka, talvez cinco anos mais tarde., foi outra vez em Berlim, no escritório de uma casa editora. Antes de ir para a Itália, onde continuei os estudos universitários, tinha feito alguns trabalhos para aquela editora, chamada Die Brücke (A Ponte), mas nunca consegui receber dinheiro.

Voltando para Berlim, em 1926, ouvi que a casa acabava de entrar em falência. Fui para lá. O diretor me deixou esperar na ante-sala, mais de meia hora. Num cantinho vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: O Processo, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas.


“Pagar não posso, querido”, dizia o homem, “mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Se você quiser pode levar a tiragem toda. Não vale nada”.

Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto.

Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1a. edição de O Processo é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos paga-se mil dólares por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceito o presente, seria hoje milionário... Aliás, fugindo da fúria nazista, em Viena, março de 1938, perdi minha biblioteca inteira, que foi depois confiscada e dispersada. Mas cheguei, mais tarde, a receber na Bélgica um grupo de volumes que tinha, pouco antes do desastre, emprestado ao cônsul geral do Estados Unidos, em Viena, e que este fez questão de devolver ao legítimo dono. Um desses livros foi aquele exemplares da 1a. edição de O Processo que, desse modo, fica até hoje comigo. E não me pretendo separar jamais do livro, pois foi meu segundo encontro com Kafka.

Otto Maria Carpeux, “Meus encontros com Kafka”, in Reflexo e realidade. Rio de Janeiro: Fontana, s/data, (publicação póstuma), p. 171-182.
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Saiba mais:

Sobre Otto Maria Carpeaux (Viena 9/3/1900-Rio de Janeiro, 3/2/1978), excelente artigo de Leandro Konder. Acesse:
http://www.espacoacademico.com.br/082/82konder.htm

Sobre Franz Kafka (Praga, 3/7/1882-Klosterneuburg, 3/6/1924):
http://almanaque.folha.uol.com.br/kafka.htm

Consulte ainda a Wikipedia:
Otto Maria Carpeaux:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Otto_Maria_Carpeaux
Franz Kafka:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Kafka
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Esta segunda parte do artigo de Carpeaux sobre Kafka apresenta-nos, raro leitor, uma passagem na qual se indicam as vicissitudes por que podem passar os livros e as edições. Da primeira edição de O Processo, de Kafka, considerado um livro “que não vale nada”, encalhada e vendida como “papel estragado”, hoje se paga uma fortuna por um exemplar. Sabe-se, claro, que essa inutilização dos exemplares não vendidos contribuiu decisivamente para o alto preço pago hoje por qualquer exemplar que apareça nos leilões. Isso faz lembrar do ocorrido, igual, com a primeira edição de Florae Fluminensis, do naturalista e editor mineiro Frei José Mariano da Conceição Veloso (1741-1811), mandada publicar em 1825, por D. Pedro I, com seus 12 volumes in folio, que hoje é uma raridade. Quase toda a edição foi vendida, em leilão, pela antiga Tipografia Imperial (Imprensa Nacional), em 14/1/1861. Felizmente há um exemplar na Universidade Federal Fluminense. Quantos exemplares dessas duas edições terão sobrevivido à destruição?

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