Meu segundo encontro com Franz Kafka, talvez cinco anos mais tarde., foi outra vez em Berlim, no escritório de uma casa editora. Antes de ir para a Itália, onde continuei os estudos universitários, tinha feito alguns trabalhos para aquela editora, chamada Die Brücke (A Ponte), mas nunca consegui receber dinheiro.
Voltando para Berlim, em 1926, ouvi que a casa acabava de entrar em falência. Fui para lá. O diretor me deixou esperar na ante-sala, mais de meia hora. Num cantinho vi um montão de livros, todos iguais. Tirei um exemplar, abri: O Processo, romance de Franz Kafka. Distraído, comecei a ler sem prestar muita atenção, quando o ex-diretor da ex-Brücke me bateu nas costas.
“Pagar não posso, querido”, dizia o homem, “mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nem vendi três exemplares. Se você quiser pode levar a tiragem toda. Não vale nada”.
Fiquei triste. Tinha esperado um pagamento de 130 marcos e o homem me quer dar seu encalhe. Agradeci vivamente, e com certa amargura. Mas levei comigo aquele exemplar que já tinha aberto.
Foi a maior burrice de minha vida inteira. Toda aquela tiragem foi vendida como papel velho e inutilizada. Um exemplar da 1a. edição de O Processo é hoje uma raridade para bibliófilos. Nos Estados Unidos paga-se mil dólares por um livro desses, ou mais. Se eu tivesse aceito o presente, seria hoje milionário... Aliás, fugindo da fúria nazista, em Viena, março de 1938, perdi minha biblioteca inteira, que foi depois confiscada e dispersada. Mas cheguei, mais tarde, a receber na Bélgica um grupo de volumes que tinha, pouco antes do desastre, emprestado ao cônsul geral do Estados Unidos, em Viena, e que este fez questão de devolver ao legítimo dono. Um desses livros foi aquele exemplares da 1a. edição de O Processo que, desse modo, fica até hoje comigo. E não me pretendo separar jamais do livro, pois foi meu segundo encontro com Kafka.
Otto Maria Carpeux, “Meus encontros com Kafka”, in Reflexo e realidade. Rio de Janeiro: Fontana, s/data, (publicação póstuma), p. 171-182.
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Saiba mais:
Sobre Otto Maria Carpeaux (Viena 9/3/1900-Rio de Janeiro, 3/2/1978), excelente artigo de Leandro Konder. Acesse:
http://www.espacoacademico.com.br/082/82konder.htm
Sobre Franz Kafka (Praga, 3/7/1882-Klosterneuburg, 3/6/1924):
http://almanaque.folha.uol.com.br/kafka.htm
Consulte ainda a Wikipedia:
Otto Maria Carpeaux:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Otto_Maria_Carpeaux
Franz Kafka:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Kafka
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Esta segunda parte do artigo de Carpeaux sobre Kafka apresenta-nos, raro leitor, uma passagem na qual se indicam as vicissitudes por que podem passar os livros e as edições. Da primeira edição de O Processo, de Kafka, considerado um livro “que não vale nada”, encalhada e vendida como “papel estragado”, hoje se paga uma fortuna por um exemplar. Sabe-se, claro, que essa inutilização dos exemplares não vendidos contribuiu decisivamente para o alto preço pago hoje por qualquer exemplar que apareça nos leilões. Isso faz lembrar do ocorrido, igual, com a primeira edição de Florae Fluminensis, do naturalista e editor mineiro Frei José Mariano da Conceição Veloso (1741-1811), mandada publicar em 1825, por D. Pedro I, com seus 12 volumes in folio, que hoje é uma raridade. Quase toda a edição foi vendida, em leilão, pela antiga Tipografia Imperial (Imprensa Nacional), em 14/1/1861. Felizmente há um exemplar na Universidade Federal Fluminense. Quantos exemplares dessas duas edições terão sobrevivido à destruição?
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