- Kauka.
- Como é o nome?
- Kauka!
- Muito prazer.
Esse diálogo, que certamente não é dos mais espirituosos, foi meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao ser apresentado a ele, não entendi o nome. Entendi Kauka em vez de Kafka. Foi um equívoco.
Hoje, o “Kauka” daquele distante ano de 1921 é um dos escritores mais lidos, mais estudados e – infelizmente – mais imitados do mundo. Mas só Deus sabe quantos são os equívocos que formam essa glória. O romancista de O Processo é, para alguns, o satírico que zombou da burocracia austríaca; e para outros o porta-voz da angústica religiosa desta época; e para mais outros o inapelável juiz da fraqueza moral do gênero humano e do nosso tempo; e para mais outros um exemplo interessante do Complexo de Édipo, etc., etc., etc. Tudo, em torno de Kafka, é equívoco. Equívoco também foi aquele meu primeiro encontro com “Kauka”.
Foi em 1921, em Berlim. Embora só contando os anos do século, eu já tinha passado por duas experiências de guerra e revolução. Estudante universitário, agora, que sonhava com uma carreira literária. Berlim, naqueles anos do primeiro pós-guerra, foi um centro de vanguardas: expressionismo, dadaísmo, os primeiros pintores abstracionistas, simpatizantes do comunismo e fundadores de seitas religiosas e vegetarianas, uma boêmia na qual os jovens austríacos desempenhavam papel grande e barulhento – e alguns grandes escritores de verdade: Döblin, Arnold Zweig, Werfel.
No Café Românico, centro de boêmia, esses homens feitos ocupavam mesas especiais, de que ninguém ousava aproximar-se sem ser especialmente convidado; o que não aconteceu nunca. Olhávamos para lá com inveja, escutando para apanhar, talvez, um pedaço de conversa. Rara foi a oportunidade de um convite para as tardes de domingo, no apartamento de um ou outro daqueles escritores, no bairro boêmio, mas elegante, do Bayrischer Platz, hoje um montão de ruínas. E numa dessas tardes cheguei a conhecer pessoalmente Franz Kafka.
Conheci poucos entre os presentes. Fui sumariamente apresentado. Sentindo-me um pouco perdido no meio dessa gente toda, não tendo a coragem de aproximar-me do centro da reunião, da grande e belíssima atriz D. F. – que tinha fama de Messalina – retirei-me para um canto já ocupado por um rapaz franzino, magro, pálido, taciturno. Eu não podia saber que a tuberculose da laringe, que o mataria três anos mais tarde, já lhe tinha embargado a voz. E então se desenrolou “aquele” diálogo.
Foi este o começo e o fim do meu primeiro encontro com Franz Kafka. Ao sair do apartamento, perguntei a meu amigo e introdutor: “Quem é aquele rapaz magro com a voz rouca?” Respondeu: “É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância”.
Otto Maria Carpeux, “Meus encontros com Kafka”, in Reflexo e realidade. Rio de Janeiro: Fontana, s/d, p. 171-182.
Esta é, rara leitora, a primeira parte de um longo artigo de Carpeaux sobre Kafka, um dos escritores que, junto com Herman Hesse, mais me sensibilizaram a juventude, em edições bem distantes do desejável. Hoje se podem encontrar nas livrarias boas edições, com tradução direta do original.
Pode fazer-nos lembrar que a eventual imortalidade ou mesmo o reconhecimento do gênio são improváveis em seu tempo. A obra daquele rapaz “sem importância”, após sua morte, viria a consagrar-se como uma das mais importantes da literatura do século XX.
Hoje se poderá acrescentar à questão a dúvida se a literatura poderá imortalizar? O que acha, rara leitora?
Em breve, faremos aqui o registro do segundo encontro de Carpeaux com Kafka. Você os conhece?
terça-feira, 24 de junho de 2008
Franz Kafka, por Otto Maria Carpeaux - I
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2 comentários:
Amigo Aníbal:
Kafka, segundo é sabido, havia pedido a um amigo que destruísse seus escritos após sua morte. Tivesse o amigo cumprido a promessa e sequer saberíamos da existência do cidadão Franz Kafka...
Como no poema de Bandeira, ele teria morrido tão completamente que não deixaria nem um nome.
Mas, será que Kafka de fato o desejava, e de fato pediu isso a seu amigo?
Creio que jamais saberemos.
É difícil crer que alguém possa se empenhar tão profundamente em algo para depois, simplesmente, destruir.
Por quê não destruiu ele mesmo, se sabia que a morte estava próxima?
Não há quem escreva, por menos reconhecido pelos coevos que seja, que não tenha uma pálida esperança de vir a ser reconhecido em algum futuro. Isso é a verdadeira glória:
o reconhecimento dos pósteros. A história da literatura está repleta desses exemplos.
Desculpe se me alonguei.
Abraço, Henrique.
Caro Henrique,
o pedido de Kafka ao amigo Max Broad certamente espelhava a grande debilidade física e espiritual em que se encontrava, internado num hospital.
Felizmente seus escritos ficaram e a posteridade soube reconhecer o valor de sua obra.
Como você disse, há outros exemplos de reconhecimento póstero, e no seu nível poderíamos citar dois nomes: Fernando Pessoa e Walter Benjamin. Estes também pouco publicaram em vida e sem muita repercussão. A glória só veio após a morte. E que glória!São lidos no mundo inteiro.
Um forte abraço,
Aníbal
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