Foto reproduzida da 4a. capa de Se um viajante numa noite de inverno. Editora Nova Fronteira.
[diálogo ocorrido na editora:]
(...)
– Há uma linha que separa: de um lado os que fazem livros, de outro os que lêem. Quero continuar a fazer parte daqueles que lêem, e por isso presto muita atenção para me manter sempre deste lado da linha. Senão, o prazer desinteressado de ler já não existe, ou ao menos se transforma em alguma outra coisa, que não é o que eu quero.
É uma fronteira imprecisa, que tende a desaparecer: o mundo daqueles que têm relação profissional com os livros está cada vez mais povoado, e tende a se identificar com o mundo dos leitores.
Evidentemente os leitores também são cada vez mais numerosos, mas pode-se dizer que o número daqueles que utilizam os livros para produzir outros livros cresce definitivamente mais depressa que o número daqueles que gostam dos livros para ler.
(...)
Eu sou um leitor, só um leitor, não um autor (...).
– Ah, bem! Bravo, bravo, estou muito contente! (...) Isso me dá muito gosto. Verdadeiros leitores encontro-os cada vez menos.
(...)
Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Romance. Tradução de Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 109-114. Há uma nova tradução para o português, editada pela Cia. das Letras.
No romance sobre autoria, leitura, escritura, editores, livros, livrarias, contrafações e outras experiências vividas no mundo contemporâneo da cultura do impresso, Se um viajante numa noite de inverno, rara leitora, certamente você encontrará outras contribuições de um verdadeiro mestre para sua reflexões sobre o tema “ser leitor e/ou escritor”, que foi referido aqui especialmente nestas últimas postagens, de Gilberto Freyre a Drummond, passando por Blanchot, e nas ricas contribuições até agora recebidas.
Aqui é explicitada a progressão geométrica do número de leitores que lêem para escrever, isto é, que praticam a leitura com intuitos pragmáticos ou utilitários, em relação ao número daqueles que o fazem descompromissadamente, por entretenimento, experiência estética ou simplesmente para ocupar de forma prazerosa o seu tempo de lazer, como o personagem citado, que luta para se manter um simples leitor.
O pequeno excerto do belo texto de Calvino pretende, além de ser um convite à leitura da obra, ser também modesta contribuição para um possível enriquecimento deste foro, ou esquina virtual, onde nos encontramos, sem café, vinho ou cerveja, o que, admitamos, é uma perda se o compararmos com as experiências da boêmia literária dos séculos pré-Internet. Mas não deixa de ser um lugar propiciador de encontros humanos em torno de uma espécie de enorme mesa.
Para saber mais
sobre Italo Calvino (Santiago de Las Vegas, Cuba, 15/10/1923)–Roma, Itália, 19.9.1985):
http://pt.wikipedia.org/wiki/Italo_Calvino
http://en.wikipedia.org/wiki/Italo_Calvino (em inglês)
Um comentário:
Aníbal:
Acredito que a maioria dos autores encontra mais prazer em ler do que em escrever. Mas desse prazer de ler, os autores extraem algo mais do que o leitor não autor.
É porque o leitor/autor quer encontrar, no que lê, um estímulo, um desafio; quer sentir uma inveja positiva.
Acho difícil que um autor possa ler, mesmo desejando, unicamente por 'prazer'. O que vem a ser um espinho incômodo.
Mas cá entre nós, existirá leitor sem alguns fumos de autor?
Abraço, Henrique.
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