segunda-feira, 14 de julho de 2008

Autores sem livros, por Gilberto Freyre

Serão sempre os “autores que não têm livros” do tipo daquele fixado a traços de caricatura pelo Sr. Oscar Lopes? Creio que não. A psicologia do autor sem livros é mais complexa do que imagina o Sr. Oscar Lopes no seu fácil filosofar de cronista. É como a psicologia da solteirona.

Quase não há solteirona que não nos possa contar histórias de casamentos e propostas desprezadas. Também os talentos inéditos o são sempre por vontade própria, por soberano desdém à publicidade. Editores que os adulassem, estes não faltaram.

E por serem tantas as solteironas que desprezaram, quando moças, propostas de casamento, e tantos os talentos inéditos por indiferença a toda espécie de sedução editorial, nós nos habituamos a duvidar de que realmente existiam, neste mundo de Deus, autores sem livros que de fato acharam na vida um editor, mesmo medíocre, que lhes fizesse a corte.

Mas o certo é que existem no mundo dessas esquisitices: solteironas que desprezaram milionários e talentos que desprezaram editores.

Há talentos que nasceram para comunicar-se a raros; para influir sobre o ânimo e a sensibilidade de raros. São como as solteironas, as raras solteironas que o são por terem nascido para desposar príncipes; e morrem donzelas porque não lhes apareceu na vida nem sombra de príncipe.

Apareceram-lhes milionários; apareceram-lhes bacharéis em Direito, caixeiros-viajantes, médicos – dezenas deles; elas porém não transigiram com o seu ideal de príncipe; e a transigir com um ideal tão bonito preferiram a donzelice. Semelhantemente há autores inéditos que o são porque os prelos e os públicos que se lhes oferecem não correspondem a certo ideal alto e puro que desenvolveram.

São casos talvez patológicos, o desses talentos e o dessas solteironas; mas existem.

A grande promessa de crítico que foi em Portugal Moniz Barreto desapareceu sem deixar livros – apenas um tênue fascículo; Luís Garrido morreu igualmente autor sem livros; na Inglaterra foram autores sem livros Collins e Addison; entre nós, Carlos de Laet e Afonso Arinos sempre se conservaram arredios do prelo que faz livros e do público que os lê: quase autores sem livros.

Entretanto Afonso Arinos não era nenhum maninho: apenas preferiu ao contacto com o público o contacto com a inteligência dum grupo que o soubesse compreender. E na vida mental do Brasil Arinos foi realidade mais viva e mais criadora que o Sr. Coelho Neto – autor de tantas dezenas de livros.

Rara é a solteirona que de fato recusou a propota de casamento, do milionário ou do caixeiro-viajante ou do bacharel em Direito que um dia se apresentou em sua casa, bonito como um herói de fita de cinema; raro é o talento que de fato se esquivou à sedução do livro pela estranha volúpia da fidelidade a um ideal que não se atinge nunca na vida. Mas esses esquisitões existem.

O livro publicado – que é para o autor, não de todo cretino, o livro publicado, no fim de dois ou três anos, senão a triste caricatura do que devia ter sido? E às vezes é como se fosse um enorme rabo de papel amarrado à inteligência.

De modo que o livro que verdadeiramente satisfaz e delicia o puro artista ou o pensador é o que ele deixa ficar nas primeiras provas tipgráficas da criação mental, nas dobras dos miolos, em estado plástico para ir sendo corrigido, atualizado, recriado de acordo com as conquistas de sua experiência íntima.

Só quando o autor encontra um público capaz de o acompanhar nesse processo de recriação, vale a pena escrever livros. Nesse caso o público é que completa o autor e serve de sexo oposto ao seu espírito.
(1924)

In Gilberto Freyre, Retalhos de jornais velhos, 2a. ed., rev. e aumentada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.


Gilberto Freyre, rara leitora, cada vez nos surpreende em sua antevisão do que só muito tempo depois se tornaria lugar comum, como o que afirma no último parágrafo deste artigo de jornal, publicado originalmente em 1924: a consciência de que é o leitor que completa o autor na recriação do sentido do texto que este publicou.

No mais, este texto bem humorado tem sentido hoje como um comentário sobre o panorama editorial que se apresentava aos autores no Brasil antes de 1930: seriam certamente tão raras as oportunidades de publicação para a maioria dos autores que alguns desses (quase todos) se acomodavam na situação “confortável” de se manterem inéditos, supostamente por opção.

Hoje, como vemos acontecer neste blog e em milhões de outros, com ou sem livros, todos se querem publicar, mesmo se tornando seus próprios editores, indo direto em busca do raro leitor. É isso, mas que tudo fica breve e muita vezes superficial, lá isso fica. É o preço da pressa.

Um comentário:

Henrique Chaudon disse...

Aníbal:
Muito interessante essa postagem.
Atualmente, de fato, qualquer pessoa pode ver seus escritos publicados, seja em pequenas tiragens pagas de seu bolso, seja em meio virtual. Mais difícil é ser conhecido e lido, e reconhecido, se for o caso.
Continua sendo ainda mais difícil ser editado por iniciativa de uma Editora, até mesmo para autores já conhecidos.
Quanto à pressa, ela existe, sim, e não só entre os novatos...
Abraço