Prezado Alípio:
Ontem à noite, ao sair você de nosso apartamento, aonde fora em busca de sabedoria grega e só encontrou um conhaque e um gato por nome Crispim, assentei de reduzir a escrito o que lhe dissera. Aula de ceticismo? Não. Ele se aprende sozinho.
A única coisa que se pode remotamente concluir do que conversamos é: não vale a pena praticar a literatura, se ela contribuir para agravar a falta de caridade que trazemos do berço.
Por isso, e porque não adiantaria, não lhe dou conselhos. Dou-lhe anticonselhos, meu filho. E se o chamo de filho, perdoe: é balda de gente madura. Poderia chamar-lhe irmão, de tal maneira somos semelhantes, sem embargo do tempo e do pormenor físico: cultivamos ambos o real ilusório, que é um bem e um mal para a alma.
Pouco resta fazer quando não nascemos para os negócios nem para a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação da nuvem. Que pelo menos ele não nos torne demasiado antipáticos aos olhos dos coetâneos absorvidos por ocupações mais seculares.
Recolha pois estes apontamentos, Alípio, e saiba que eu o estimo:
I – Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.
II – Ao escrever, não pense que vai arrombar as portas do mistério do mundo. Não arrombará nada. Os melhores escritores conseguem apenas reforçá-lo, e não exija de si tamanha proeza.
III – Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos, e use o substantivo.
IV – Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.
V – Leia muito e esqueça o mais que puder.
VI – Anote as idéias que lhe vierem na rua, para evitar desenvolvê-las. O acaso é mau conselheiro.
VII – Não fique baboso se lhe disserem que seu novo livro é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.
VIII – Mas se disserem que seu novo livro é pior do que o anterior, pode ser que falem a verdade.
IX – Não responda a ataques de quem não tem categoria literária: seria pregar rabo em nambu. E se o atacante tiver categoria, não ataca, pois tem mais que fazer.
X – Acha que sua infância foi maravilhosa e merece [ser] lembrada a todo momento em seus escritos? Seus companheiros de infância aí estão, e têm opinião diversa.
XI – Não cumprimente com humildade o escritor glorioso, nem o escritor obscuro com soberba. Às vezes nenhum deles vale nada, e na dúvida o melhor é ser atencioso para com o próximo, ainda que se trate de um escritor.
XII – O porteiro do seu edifício provavelmente ignora a existência, no imóvel, de um escritor excepcional. Não julgue por isso que todos os assalariados modestos sejam insensíveis à literatura, nem que haja obrigatoriamente escritores excepcionais em todos os andares.
XIII – Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.
[1953]
(fim da primeira parte)
In Carlos Drummond de Andrade, A bolsa & a vida. Crônicas. 1a. edição. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 113-115.
Carlos Drummond de Andrade (31/10/1902-17/8/1987) é considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos. Seus textos em prosa, como contista e cronista, são sempre experiências de leitura prazerosas e enriquecedoras. Devo confessar: a admiração que inspira sua personalidade parece conseguir superar a que tenho por sua obra. Mas isto, sei, é bobagem. Esta admiração pelo personagem só existe nessa dimensão porque ele é o autor desses textos que amamos.
Faz 21 anos que Drummond – jamais aceitou ingressar na Academia – se tornou imortal.
Vamos, rara leitora, reler nosso poeta maior? O que nos sugere? O texto dirigido por Drummond a Alípio lhe diz algo ainda hoje, mais de 50 anos depois de publicado na imprensa?
Para saber mais:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
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4 comentários:
A carta ao "Alípio" lembrou-me Rilke e a carta ao poeta... Abraços, Simone Amorim [me organizando para o Intercom... fiquei feliz com a aprovação]
Caro Aníbal,
regressado à "bloguelândia" não resisti a Drummond. Nunca resisto!
Duas questões me tocaram fundo: primeira, a de que"não vale a pena praticar a literatura, se ela contribuir para a agravar a falta de caridade que trazemos do berço".
A outra tem a ver com a velha dicotomia real/ficção... hoje, sentado numa esplanada de um miradouro, com uma amiga minha e o vosso (ou nosso?) Ruy Espinheira Filho deambulámos em torno disso,
aliás, já Descartes tomava tal tema
com grande inquietação. Haverá mesmo fronteira entre real e ficção? Parece que os astrofísicos andam baralhados também com isso.
Um abraço.
P.S. entreguei a um grande poeta brasileiro, e amigo comum, uma "coisa" para si...
Caro Victor,
sua "participação" é motivo de só alegrias. A afinidade de não resistir a Drummond. Ao contrário, deixar-se penetrar por ele, embeber-se dele.
As interações luso-brasileiras, outra.
E mais: amigo comum, presente próximo... quanta coisa boa.
Ficção e realidade, juntas.
Obrigado.
Um fraterno abraço,
Aníbal
Gosto muuuito de Drummond!!!
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