Abaladora foi a noite de setembro.
Eu trazia na roupa
a tristeza do trem que me trazia
cruzando uma por uma as províncias:
eu era esse ser remoto
turbado pela fumaça do carvão
da locomotiva.
Eu não era.
Tive de encarar então a vida.
Minha poesia me incomunicava
e me agregava a todos.
Naquela noite
me coube declarar a Primavera.
A mim, pobre sombrio,
me fizeram desatar a vestimenta
da noite desnuda.
Tremi lendo ante duas mil orelhas desiguais
meu canto.
A noite ardeu
com todo o fogo escuro
multiplicando-se na cidade,
na urgência imperiosa do contato.
Morreu a solidão aquela vez
ou nasci eu de minha solidão?
*
Vivi na desordem de pátrias não nascidas,
em colônias que ainda não sabiam nascer,
com bandeiras inéditas que se ensangüentariam.
Vivi na fogueira de povos malferidos
comendo o pão estranho em meu padecimento.
*
Cada um no casaco mais oculto guardou
as alfaias perdidas da memória,
intenso amor, noites secretas ou beijos permanentes,
parcela de felicidade pública ou íntima.
Alguns, inquietos, colecionaram quadris,
outros homens amaram a madrugada esquadrinhando
cordilheiras ou tímbales, locomotivas, números.
Para mim a felicidade foi compartir cantando,
louvando, imprecando, chorando com mil olhos.
Peço perdão pelo mau comportamento:
não teve utilidade minha gestão na terra.
In Ainda, tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
Vivemos hoje, raro leitor, o primeiro dia pleno da Primavera que ontem chegou, um dia lindo nestas terras de Araribóia, em torno da baía de Guanabara. Hoje também se completam 35 anos da morte de um dos maiores poetas latino-americanos de língua espanhola.
Nascido no Chile em 12 de julho de 1904, Pablo Neruda, prêmio Nobel em 1971, faleceu, deixando obra imortal, em 23 de setembro de 1973, poucos dias depois do sanguinário golpe militar que derrubou o governo democrático chileno e matou seu amigo, o presidente Salvador Allende.
Viva a Primavera, viva Pablo Neruda, viva Allende!
Para saber mais:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda
terça-feira, 23 de setembro de 2008
A Primavera e Pablo Neruda, 35 anos depois
Marcadores:
Ainda,
Aún,
Olga Savary,
Pablo Neruda,
poesia chilena,
Primavera
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Amigo Aníbal:
A Primavera chegou com um vento firme e largo, encrespando as águas da baía. O Minguante, pela madrugada, estava uma beleza, e sua mensagem de hoje completa o quadro.
Obrigado!
Caro Henrique,
sua poética contribuição enriquece o registro sobre "o outro" grande poeta e a sempre bem-vinda Primavera.
Obrigado.
Um fraterno abraço,
Aníbal
Caro Aníbal:
Pudesse eu ' escrever os versos mais tristes esta noite'...
Nada posso fazer senão aceitar - envaidecido - o epíteto.
Grande abraço.
Postar um comentário