Dizia o meu amigo, molhando a garganta em lentos goles de uísque: sou um vigia das horas mais inúteis da tarde. Eis o meu posto e o ofício: uma janela transparente e nela os meus olhos pregados na vidraça. Do que vejo ou não vejo, pouco preciso. O importante é esse ofício da espera, afinal a tarde cumpre seu expediente lá fora, enquanto seus homens prometem vencer o livro de ponto. Sou um colecionador das promessas dos jornais.
E dizendo isto voltou a tomar outro longo gole de uísque e com seus olhos úmidos de ironia alisou a barba mansamente. Com uma mão levou o charuto aos lábios, num gesto lento e perfeito. Com a outra, aquela que usara para também lentamente repousar o copo sobre a mesinha do lado, afagou a barba enfiando os dedos no emaranhado dos cabelos grisalhos e ásperos. E nada mais disse ou pareceu desejar dizer.
Do silêncio que derramou em torno de si mesmo inventou uma floresta de sombras e nelas desapareceu como um duende. Estava ali. Bem perto dos olhos e das mãos, mas ao mesmo tempo parecia tão distante que qualquer palavra, mesmo pronunciada com cuidado, quebraria a fina lâmina de cristal que filtrava as suas ilusões. Era preciso esperar que todo o seu vôo se completasse como numa circunavegação em torno de si mesmo.
Só então pude notar como a matéria engana o espírito. E como a humanidade de um homem é feita das insondáveis razões do ser. Ali estava um homem diante de sua solidão, mas seus gestos aparentemente maquinais o faziam mais humano a cada instante. Todas as vezes que seus dedos caminhavam silenciosamente como centopéias, em busca do copo, e venciam os pequenos obstáculos da tolha de crochê, mais ele se humanizava.
De repente era como se da fumaça de seu charuto nascessem arandelas azuis que iam subindo até o teto da pequena sala de paredes forradas de livros. Só um homem, um vaqueiro e seus olhos de nanquim, vigiava o nosso silêncio. Do fundo, saltava pelo corte luminoso da porta uma réstia de luz da outra sala. E projetando no chão a silhueta distorcida da mesa cercada de cadeiras, criava uma confusão fantasmagórica de luzes e sombras.
O alarme de um carro disparou lá fora. O ruído foi tão perto, e tão estridente, que a vibração estilhaçou o vidro que separava os nosso silêncios. E juntos passamos a colher aquelas minúsculas contas de vidro como se guardássemos cristais, diamantes, águas-marinhas. Toda a riqueza de um silêncio que se quebrou. Enquanto a noite engolia a solidão do mundo e prometia a cada um de nós a primeira estrela da manhã.
In Canção da noite lilás, crônicas. Rio de Janeiro: Lidador, 2000, p. 160-161.
Este é, rara leitora, um pedaço de Vicente Alberto Serejo Gomes, como escreveu Márcia Carrilho na apresentação do volume, “um lírico entre alamandas, luares e solidões. Um peregrino do azul que faz a lúdica travessia do Potengi, chega à Redinha, a Extremoz, a Macau, e conquista todos aqueles que têm olhos para ver, além da penumbra, as coisas suavemente iluminadas pelo amor”. O cronista nasceu em Macau, RN, em 1951, e é jornalista desde 1976, tendo atuado durante 24 anos nos Diários Associados como repórter, editor, chefe de reportagem, editor geral e diretor comercial. Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras, Vicente Serejo, além de professor de jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), publica sua crônica diária em O Jornal de Hoje www.jornaldehoje.com.br .
terça-feira, 9 de setembro de 2008
O colecionador de promessas, Vicente Serejo
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