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segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Mário de Andrade, Manuel Bandeira e a Pasárgada

S. Paulo, 27-XII-29

Manú,
bom-dia. Outro dia principiou me inquietando a sorte que você deu pro seu livro novo de poesia. (...) Que fim levou? Desistiu por agora?

Comigo sucedeu uma coisa engraçada, faz uns dois meses. Passei a limpo os contos do “Belazarte”, levei pro impressor, combinei preço, tudo, dei ordem pra se imprimir. Cheguei em casa me bateu uma tal descoragem de publicar livro agora! É estúpido a gente estar imaginando em literatura numa época destas em que nem se sabe o Brasil em que irá dar. Crise, inda por cima, e a gente criando “luxo”. Achei que era besteira publicar e no dia seguinte retirei os originais da tipografia. Tem momentos porém em que me volta vontade de publicar já a coisa. Isto vai numa palhaçada tamanha que o milhor é a gente não se importar mesmo, ir embora pra Passárgada! (...)
*

S. Paulo, 25-V-30.

Manú,

Recebi o seu livro hoje e foi um alegrão. (...) Fiquei infinitamente grato a você pela lembrança de mandar dois exemplares. Uma das minhas atuais derivações da sexualidade é a bibliofilia, e exemplar com dedicatória, de sujeito de valor, guardo sem cortar, como mandam as manias de agora.

E, por voltar ao seu livro, uma coisa quero desde logo dizer: você teve a força de conseguir finalmente o que mais desejou na sua poesia, e isso deve ser infinitamente agradavel prum artista, imagino...

Atingiu um depuramento que me parece impossível ser mais. Seu livro é alma e alma só. Não posso me resolver a chamar isso de poesia. Mas nomes e concepções estéticas não tem importância nenhuma, diante da verdade e me parece absolutamente certo que jamais você foi tão exclusivamente você como no lirismo absoluto de Libertinagem.

Um grande abraço por essa vitória.

Quanto a mandar o livro pra expor nas livrarias, está claro que estou inteiramente ás ordens. (...)


**
Vou-me embora pra Pasárgada
Manuel Bandeira
(do livro Libertinagem)

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na casa que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
*

"Biografia de Pasárgada"
Manuel Bandeira

Quando eu tinha os meus quinze anos e traduzia na classe de grego do Pedro II a Ciropedia fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada por Ciro, o Antigo, nas montanhas do sul da Pérsia, para lá passar os verões. A minha imaginação de adolescente começou a trabalhar e eu vi Pasárgada e vivi durante alguns anos em Pasárgada.

Mais de vinte anos depois, num momento de profundo cafard e desânimo, saltou-me do subsconsciente este grito de evasão: “Vou-me embora pra Pasárgada!”. Imediatamente senti que era a célula de um poema. Peguei do lápis e do papel, mas o poema não veio. Não pensei mais nisso. Uns cinco anos mais tarde, o mesmo grito de evasão nas mesmas circunstâncias. Desta vez o poema saiu quase ao correr da pena. Se há belezas em “Vou-me embora pra Pasárgada”, elas não passam de acidentes. Não construí o poema, ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscências da infância – as história que Rosa, a minha ama-seca mulata, me contava, o sonho jamais realizado de uma bicicleta etc. O quase inválido que eu era ainda por volta de 1926 imaginava em Pasárgada o exercício de todas as atividades que a doença me impedia.

“E como eu farei ginástica... tomarei banhos de mar!” A esse aspecto Pasárgada é “toda a vida que podia ter sido e que não foi”.


Mário de Andrade. Cartas a Manuel Bandeira. Prefácio e notas de Manuel Bandeira, Rio de Janeiro: Tecnoprint (Edições de Ouro), 1967, p. 293 e 301-305.

Manuel Bandeira. Poesia completa e prosa. 2a. ed. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967 (Comemorativa do 80º aniversário do poeta), p. 31, 264-265. O livro Libertinagem, com poemas escritos entre 1924 e 1930, foi publicado, em 1930, em edição de 500 exemplares, custeada pelo poeta. Ocupa as páginas 237-266 do belo e pequeno volume da Aguilar, em papel tipo arroz. É acompanhado, nesta edição, de uma “nota preliminar” de Mário de Andrade,

Estes excertos, rara ou raro leitor, apontam para as dificuldades de publicação de dois livros, Contos de Belazarte, de Mário, e Libertinagem, de Bandeira, que se tornaram clássicos da literatura brasileira modernista. E também as incertezas que, na época, cercaram os seus autores quanto ao futuro de suas obras. A faceta de bibliófilo de Mário de Andrade é aqui apenas vislumbrada. Voltaremos a ela.
*
Em 1975, um livreiro de Niterói, então com 30 anos, recém-separado, com 3 filhas, tendo ficado nu (como o personagem de Encontro Marcado, de Fernando Sabino), resolveu, com muita determinação e nenhum dinheiro, criar uma nova livraria, a primeira de Icaraí

(obrigado, Bernardo Ferreiro e aos amigos que a ajudaram a construir, desinteressadamente).
Seu nome ficou na história das livrarias brasileiras e da vida cultural de Niterói. Este neoblogueiro, o livreiro, vivendo o sonho de Manuel, deu-lhe o nome Pasárgada... e lá foi muito feliz, enquanto ela durou. 13 anos depois fechou as portas. Os sonhos não morrem.

Você, rara ou raro leitor, conheceu Pasárgada? Qual?