sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Vestibular para cursos de graduação à distância em universidades públicas do Rio de Janeiro

Recebi, raro leitor, e repasso para eventuais interessados estas informações que me parecem relevantes:

As inscrições para o Vestibular Cederj 2009/1 foram prorrogadas até o dia 30 de novembro.

São 4.011 vagas para os cursos de graduação à distância em diferentes áreas.

O consórcio Cederj é uma parceria entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro, através da Secretaria de Ciência e Tecnologia, e as universidades públicas presentes no estado (UENF, UERJ, UFF, UFRJ, UFRRJ e UNIRIO).

São destinados aos professores das redes públicas de ensino estadual ou municipais 20% das vagas dos cursos de Licenciatura oferecidos pela UFF, UFRJ e UNIRIO. Dos cursos oferecidos pela UENF, são destinados a esses professores 20% das vagas remanescentes das cotas.

Para mais informações: www.cederj.edu.br e telefone (21) 2568.1226.
Para inscrever-se, só até 30 de novembro: www.cederj.edu.br/vestibular

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Contos do Velho Nipon na Primavera dos Livros do Rio de Janeiro



Estãos convidados, rara leitora, raro leitor, a conhecer Luís Antônio Pimentel, um grande narrador, uma grande figura humana, com 96 anos e muita vitalidade, autor de Contos do Velho Nipon, cuja 3a. edição, estará sendo lançada pela NitPress, na Primavera dos Livros, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, conforme o convite acima, sábado, dia 29, de 12 às 14 h.


Jornalista, memorialista, poeta, com uma trajetória de vida admirável, Pimentel viveu de 1937 a 1942 no Japão, como um dos dois primeiros estudantes brasileiros que para lá foram com bolsas do governo japonês. Ia ficar apenas dois anos, mas, encantado com a cultura japonesa, acabou morando lá por cinco, trabalhando na Rádio Tokio e no consulado brasileiro, além de viajar e conviver com o povo, as gueixas e os grandes escritores nipônicos.


Festejado, seu livro, Namida no Kito, foi o primeiro livro de poeta brasileiro a ser editado no Japão, em 1940, em edição bilíngüe.

Nesse mesmo ano, saía no Brasil, pela Pongetti, a primeira edição do Contos do Velho Nipon, uma recolha que fez Pimentel do universo da tradição oral que ouviu ser contado, no convívio com as famílias japonesas, especialmente do interior. A 2a. edição faz parte do volume 2 de suas Obras Reunidas, organizadas por este blogueiro, editadas pela Niterói Livros, em 2004.

Luís Antônio Pimentel tem as características do narrador apontadas por Walter Benjamin, unindo o viajante ao que permanece em seu lugar. Formado em uma família de contadores que teve em seu tio, Figueiredo Pimentel, autor de Contos da Carochinha, um dos marcos da formação da literatura infantil brasileira, sua atenção acurada sempre esteve voltado para o universo da cultura popular. Memória privilegiada fez dele um apaixonado pela tradição oral.

Seus trabalhos sobre o folclore brasileiro e os Contos do Velho Nipon, nos dizem que estamos diante de um dos últimos narradores excepcionais da cultura brasileira.

Leia o texto, deste blogueiro, "Luís Antônio Pimentel, um narrador", inserto na nova edição de Contos do Velho Nipon, que está sendo lançada em comemoração aos 100 anos da imigração japonesa no Brasil.

Acesse: Luís Antônio Pimentel, Vida e Obra:
http://groups.google.com/group/luis-antonio-pimentel/files?hl=pt-BR

Para quem está no Rio de Janeiro, Niterói ou arredores, uma oportunidade imperdível.

PS: Leia na íntegra o livro Histórias da Avozinha, de Figueiredo Pimentel, na edição da Biblioteca Nacional Digital, disponível também nos Arquivos do E-Grupo Luís Antônio Pimentel, Vida e Obra:

http://groups.google.com/group/luis-antonio-pimentel


domingo, 16 de novembro de 2008

Jean-Paul Sartre, As Palavras: [Como aprendi a ler]

Foto - BBC: http://www.bbc.co.uk/portuguese/especial/149_sartre/



(...)
Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio de livros. No gabinete de meu avô, havia-os por toda parte; era proibido espaná-los, exceto uma vez por ano antes do reinício das aulas em outubro. Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em aléias de menires, eu sentia que a prosperidade de nossa família dependia delas. Elas se pareciam todas; eu folgava num minúsculo santuário, circundado de monumentos atarracados, antigos, que me haviam visto nascer, que me veriam morrer e cuja permanência me garantia um futuro tão calmo como o passado. Eu os tocava às escondidas para honrar minhas mãos com sua poeira, mas não sabia bem o que fazer com eles e assistia todos os dias a cerimônias cujo sentido me escapava: meu avô – tão canhestro, habitualmente, que minha mãe lhe abotoava as luvas – manejava esses objetos culturais com destreza de oficiante. Eu o vi milhares de vezes levantar-se com ar ausente, contornar a mesa, atravessar o aposento com duas pernadas, apanhar um volume sem hesitar, sem se dar o tempo de escolher, folheá-lo, enquanto voltava à poltrona, com um movimento combinado do polegar e do índice, e depois, tão logo sentado, abri-lo com um golpe seco “na página certa”, fazendo-o estalar como um sapato. (...)

Meu avô nunca soubera fazer contas: pródigo por desleixo, generoso por ostentação, acabou por cair, muito mais tarde, nessa doença dos octogenários, que é a avareza, efeito da impotência e do medo de morrer. Naquela época, ela se prenunciava apenas numa estranha desconfiança: quando recebia, por ordem postal, o montante de seus direitos autorais, erguia os braços para o céu gritando que lhe estavam cortando a garganta, ou então entrava no aposento de minha avó e declarava sombriamente: “Meu editor me assalta como numa floresta”. Eu descobria, estupefato, a exploração do homem pelo homem. Sem essa abominação, felizmente circunscrita, o mundo, no entanto, apresentar-se-ia bem-feito: os patrões davam segundo suas capacidades aos operários segundo seus méritos. Por que era preciso que os editores, esses vampiros, o descompusessem, bebendo o sangue de meu pobre avô? Meu respeito cresceu por aquele santo homem cujo devotamento não obtinha recompensa: fui preparado desde cedo a tratar o magistério como um sacerdócio e a literatura como uma paixão.

Eu ainda não sabia ler, mas já era bastante esnobe para exigir os meus livros. Meu avô foi ao patife de seu editor e conseguiu de presente Os Contos do poeta Maurice Bouchor, narrativas extraídas do folclore e adaptadas ao gosto da infância por um homem que conservava, dizia ele, olhos de criança. Eu quis começar na mesma hora as cerimônias de apropriação. Peguei os dois volumezinhos, cheirei-os, apalpei-os, abri-os negligentemente na “página certa”, fazendo-os estalar. Debalde: eu não tinha a sensação de possuí-los. Tentei sem maior êxito tratá-los como bonecas, acalentá-los, beijá-los, surrá-los. Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: “O que queres que eu te leia, querido? As Fadas?” Perguntei, incrédulo: “As Fadas estão aí dentro?” A história me era familiar: minha mãe contava-a com freqüência, quando me levava, interrompendo-se para me friccionar com água-de-colônia, para apanhar debaixo da banheira o sabão que lhe escorregara das mãos, e eu ouvia distraidamente o relato bem conhecido; (...)

Ao cabo de um instante, compreendi: era o livro que falava. Dele saíam frases que me causavam medo: eram verdadeiras centopéias, formigavam de sílabas e letras, estiravam seus ditongos, faziam vibrar as consoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas de pausas e suspiros, ricas em palavras desconhecidas, encantavam-se por si próprias e com seus meandros, sem se preocupar comigo: às vezes desapareciam antes que eu pudesse compreendê-las, outras vezes eu compreendia de antemão e elas continuavam a rolar nobremente para o seu fim sem me conceder a graça de uma vírgula.

Seguramente, o discurso não me era destinado. Quanto à história, endomingara-se: o lenhador, a lenhadora e suas filhas, a fada, todas essas criaturinhas, nossos semelhantes, tinham adquirido majestade, falava-se de seus farrapos com magnificência; as palavras largavam a sua cor sobre as coisas, transformando as ações em ritos e os acontecimentos em cerimônias.

Alguém se pôs a fazer perguntas: o editor de meu avô, especializado na publicação de obras escolares, não perdia ocasião de exercitar a jovem inteligência de seus leitores. Pareceu-me que uma criança era interrogada: no lugar do lenhador, o que faria: Qual das duas irmãs preferia? Por quê? Aprovava o castigo de Babette? Mas essa criança era absolutamente eu, e fiquei com medo de responder. Respondi, no entanto: minha débil voz perdeu-se e senti tornar-me outro. Anne-Marie, também, era outra, com seu ar de cega superlúcida; parecia-me que eu era filho de todas as mães, que ela era a mãe de todos os filhos. Quando parou de ler, retomei-lhe vivamente os livros e saí com eles debaixo do braço sem dizer-lhe obrigado.

Com o tempo senti prazer naquele deflagrador que me arrancava de mim mesmo: Maurice Bouchor se debruçava sobre a infância com a solicitude universal que os chefes de seção dedicam aos clientes dos grandes magazines; isso me lisonjeava. Aos relatos improvisados passei a preferir os relatos pré-fabricados; tornei-me sensível à sucessão rigorosa das palavras: a cada leitura voltavam, sempre as mesmas e na mesma ordem, eu as esperava. (...)

Apossei-me de um livro intitulado Tribulações de um Chinês na China [de Júlio Verne] e o transportei para um quarto de despejo; aí, empoleirado sobre uma cama de armar, fiz de conta que estava lendo: seguia com os olhos as linhas negras sem saltar uma única e me contava uma história em voz alta, tomando o cuidado de pronunciar todas as sílabas.

Surpreenderam-me – ou melhor, fiz com que me surpreendessem –, gritaram admirados e decidiram que era tempo de me ensinar o alfabeto. Fui zeloso como um catecúmeno: ia a ponto de dar a mim mesmo aulas particulares: eu montava na minha cama de armar com o Sem Família de Hector Malot, que conhecia de cor e, em parte recitando, em parte decifrando, percorri-lhe todas as páginas, uma após outra: quando a última foi virada, eu sabia ler.
(...)


Jean-Paul Sartre. As palavras. Tradução de J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, 6ª. edição, p. 30-36.

A iniciação na cultura letrada de Sartre, um dos escritores franceses e filósofos mais importantes do século XX, está narrada detalhadamente em sua obra As Palavras [Les mots], publicada em 1964, mesmo ano em que recusa o Prêmio Nobel. Ele teve o privilégio de nascer em casa de leitores, com um avô escritor, o que lhe despertou precocemente o desejo de ler e o fez ter consciência da relação conflituosa (pouco rara) entre autores e editores.

Podemos pensar que as experiências de leitura são importantes para a formação de futuros escritores, como neste e no texto de Fernando Sabino, o autor imortal de Encontro Marcado, que, permita-me confessar, rara leitora, foi um dos livros marcantes na trajetória deste leitor lacunar.

E você, raro leitor, como se iniciou nas letras?

Para saber mais sobre Jean-Paul Sartre, inicie com:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Paul_Sartre

sábado, 15 de novembro de 2008

Fernando Sabino: Os livros que (não) lemos

(...)

Eu estava no 4º ano de ginásio, e a dissertação do exame final versava sobre o tema “Minhas leituras prediletas”. Monteiro Lobato. Depois Sherlock Holmes, Búfalo Bil, Beau Geste. Já atingi aquela fase a que se refere Pedro Nava, na qual o médico tem coragem de dizer ao cliente “não sei o que o senhor tem”: reafirmo hoje o que escrevi naquele tempo, aos 14 anos, isto é, que a melhor leitura que já fiz na vida foi a de um livro de aventuras de índios chamado Winnetou, de Karl May.

O que andei lendo então? Passando os olhos pelas estantes, descubro, conformado, que não foi nem a centésima parte do que esperava ler. E muito menos do que afirmo (o que é pior, acreditando eu próprio) haver lido. Já não falo dos livros cuja leitura me dispensei de iniciar, baseado no pressuposto daquela “boutade” de Oswald de Andrade: não li e não gostei. Falo dos que deixei de terminar, dos que li em diagonal, ou dos que ficaram para sempre com aquela dobrinha numa das páginas do meio, para que eu um dia retomasse a leitura.

(...)

Aos 17 anos eu andava com um exemplar de O Banquete de Platão debaixo do braço (naquela edição de capa dura da Athena Editora). Mas bom mesmo era Edgar Wallace: O Homem de Marrocos, por exemplo, tenho a certeza de que resistiria (ou não?) a uma releitura. (E o Círculo Vermelho, [de A. Conan Doyle] em que o assassino era o próprio detetive.) Apanhava livros na Biblitoeca Pública de Belo Horizonte, ou lia lá mesmo, um por noite. (E Um Perfil na Sombra, [de Edgar Wallace] ia me esquecendo. Perdão, leitores.)


Já havia lido quase toda a Coleção Terramarear, de Song-Kay, o Pirata, [de Emilio Salgari], a Ilha de Coral, [de Robert Michael Ballantyne] passando pela série de Tarzã. Lia-se de verdade, naquele tempo. Mas veio o vício da literatura e de súbito me vi às voltas com Los Dioses Tienen Sed, de Anatole France, ou Los Paradisos Artificiales, de Baudelaire.

Por que em espanhol? Porque com a guerra, não havia livros franceses ou ingleses, e tínhamos de nos iniciar mesmo em castelhano: os argentinos da Espasa-Calpe (coleção Austral), os chilenos da Zig-Zag (em papel ordinaríssimo), os mexicanos da Fondo de Cultura. Pouco importava que para mim muslo [coxa] fosse músculo, ciruelas [ameixas] fossem ceroulas e un rato [um momento] fosse um rato mesmo – ia lendo o que me caía nas mãos. (...)

Os brasileiros, nem se fala: José Lins, Graciliano Ramos, Rachel, Jorge Amado, Mário e Oswald de Andrade; Cyro dos Anjos, Cornélio Pena, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, que o Etienne me emprestava. Andavam na moda dois livros raros: A Mulher Que Fugiu de Sodoma, de José Geraldo Vieira, e Sob o Olhar Malicioso dos Trópicos, de Barreto Filho.


Os poetas, era para saber de cor: Bandeira, Drummond, Vinicius, Schmidt, Cecília, Murilo, Jorge de Lima, Cassiano. Dos mais antigos, a obrigação era ter lido os romances e contos de Machado de Assis, Os Sertões, de Euclides da Cunha (só “O Homem”; “A Terra” era muito chato); O Ateneu, de Raul Pompéia; e Memórias de um Sargento de Milícias. O resto – Coelho Neto, Alencar, Macedo – era melhor que se dessem por lidos. Uma olhada nos poetas simbolistas, outra nos inconfidentes, outra nos parnasianos, e chega!

De português estava farto: já devia ter lido Camilo, Herculano, Garrett, e mais longe ainda: Frei Luís de Sousa, Gil Vicente. Mas o melhor era mesmo ficar no Eça. E depois mergulhar nos poetas, de Camões a Fernando Pessoa, de Antero de Quental a Camilo Peçanha. Passando, como requinte, por Mário de Sá-Carneiro.

Livro é que não faltava: a Coleção Nobel da Editora Globo, por exemplo. Os que todo mundo tinha obrigação de já haver lido: Sporkenbrooke, de Charles Morgan; Os Thibault, de Roger Martin du Gard; Jean Cristophe, de Romain Roland; A Montanha Mágica, de Thomas Mann; A Condição Humana, de Malraux – livros colossais, de leitura interminável. Não se falando em Cervantes, Dostoievski e Tolstoi.

O máximo da satisfação literária: poder afirmar em sã consciência já haver lido todo o Dom Quixote, Os Irmãos Karamazov e Guerra e Paz.

Três anos de vida em Nova York e quase outro tanto em Londres, com o aprendizado compulsório do inglês, lançaram-me na vertigem de um novo mundo literário, que vai de Shakespeare a Eliot, de Dickens a Norman Mailer, de Conrad a Hemingway. E mais, de Lewis Carrol a James Thurger, de Ruskin a Herbert Read, de Henry James a Henry Miller, de Manley Hopkins a Eliot e Ezra Pound. E daí?


Quando conseguir terminar jamais a leitura de Ulysses. Um dia me vi lendo ensaios de C. M. Bowra, I. A. Richards, F. R. Leavis e outros críticos de nome abreviado, sobre os absconsos segredos da poesia. Que diabo de doença era essa, que acabaria me levando, como a tanta gente boa, às raias do estruturalismo? Parei em tempo.

E descobri que o escritor da minha preferência era mesmo o romancista policial Raymond Chandler, criador do detetive Philip Marlowe. Estava curado do vírus literário.
(...)

1.7.74.


Fernando Sabino, “Os livros que (não) lemos”, in Gente II. Rio de Janeiro: Record, p. 65-70.

O artigo é mais longo. Recortei o que pode suscitar algumas lembranças ou até, quem sabe?, algum debate sobre as nossas leituras e não leituras. E sobre o por que ler os clássicos? E o porque ler, simplesmente, o que nos dá prazer, erudito ou não. O que pensa, rara leitora?

A leitura integral do artigo e, mais ainda, de todo o livro, pode ser muito interessante. Peça na sua livraria os dois volumes de Gente, compostos com artigos originalmente escritos para o Jornal do Brasil, em 1973-1974. São entrevistas, crônicas, artigos sobre temas e principalmente pessoas, interessantes para Fernando Sabino... para nós também.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Charles Baudelaire (1821-1867), a auréola do poeta e a glória literária

Atravessava eu o Bulevar com um pouco de precipitação, para livrar-me dos carros, quando a minha auréola se desprendeu e caiu na lama do macadame. Por felicidade, tive tempo de apanhá-la, mas, um instante depois insinuou-se em meu espírito a desgraçada idéia de que aquilo era um mau presságio; e desde então a idéia não me quis sair da cabeça, deixando-me sem tranqüilidade durante o dia inteiro.

Do “Diário Íntimo”, em Meu coração desnudado. Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 34

***
– O quê! Você por aqui, meu caro? Você, num lugar suspeito! Você, o bebedor de quintessências! Você, o comedor de ambrosia? Em verdade, tenho de surpreender-me!

– Meu caro, você conhece meu pavor pelos cavalos e pelos carros. Ainda há pouco, enquanto eu atravessava a avenida, com grande pressa, e saltitava na lama por entre este caos movediço em que a morte chega a galope por todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento brusco, escorregou da minha cabeça para a lama da calçada. Não tive coragem de juntá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que deixar que me rompessem os ossos. E depois, pensei, há males que vêm para bem. Posso agora passear incógnito, praticar ações vis e me entregar à devassidão, como os simples mortais. E eis-me aqui, igualzinho a você, como vê!

– Você deveria ao menos mandar anunciar esta auréola, ou mandar reavê-la pelo comissário.

– Ora essa, não! Me sinto bem aqui. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. E também, penso com alegria que algum poeta ruim há de juntá-la e vesti-la impudentemente. Fazer alguém feliz, que prazer! E sobretudo um feliz que vai me fazer rir! Pense em X ou em Z, puxa! Que divertido vai ser!

“Perda de auréola”, in Pequenos poemas em prosa. Edição bilíngüe. Tradução de Dorothée de Bruchard. Florianópolis: Editora da UFSC ; Aliança Francesa de Florianópolis, 1988, p. 217. Há reedição, de 1996.

Estes são textos para nossa vã reflexão, rara leitora. Talvez voltemos a eles. Talvez acrescentemos Walter Benjamin como guia.

O admirável livreiro Albino Jordão, cego e surdo, nas Memórias da Rua do Ouvidor, de Joaquim Manuel de Macedo

Capítulo XIV:

No Brasil ninguém morre enquanto não morre deveras de moléstia física e desaparecendo na cova do cemitério. Só assim, com esses testemunhos de óbito; porque tem-se visto muita gente moralmente morta, que de um dia para outro reaparece viva, sem que se saiba como, nem porquê. No comércio isso já é trivial, e em política sediço.

(...)

Aquela casa nº 113, ainda do lado esquerdo, acanhada, estreita, mas de três pavimentos, cujo letreiro chamador de fregueses anuncia o Café de Londres, e excelente Restaurant, foi levantada no lugar onde se mostrava a antiga e pequena casa térrea de duas portas, que ainda em 1838 era loja de livros do Albino Jordão.

Lembro sempre dele! Lembro-me da sua modesta loja de livros novos e velhos, de obras encadernadas ou em brochura, que se vendiam ali a barato preço. Em meu tempo de estudante fui freguês do Albino Jordão, e entre outras obras, comprei-lhe as Memórias Históricas de Pizarro e as Memórias para Servir à história do Reino do Brasil, do Padre Luís de Gonçalves dos Santos, por alcunha – o Perereca –, as quais de tanto socorro me têm sido em estudos, como este que estou fazendo.

O Albino Jordão era, quando o conheci, homem já velho, vestindo sempre jaqueta, e desde muito cego e surdo. Contra a cegueira não tinha recurso, que não fossem a memória surpreendente e o tato explicavelmente aprimorado; contra a surdez, que não era completa, absoluta, socorria-se de famosa e tradicional buzina que o fazia ouvir o que os fregueses da loja procuravam.

Albino Jordão tinha dois ajudantes, meninos ou rapazes de quatorze a dezesseis anos, de instrução nula e de pouco zelo: quando eles, porém, não serviam de pronto a algum freguês e demoravam-se, procurando o livro pedido, o cego, levantava-se da sua cadeira, punha a buzina no ouvido, e ciente do que se pedia, ia sempre certeiro e sem nunca enganar-se, tomar o livro na estante e no lugar onde estava, ainda mesmo quando lhe era necessário subir por pequena escada portátil para ir buscá-lo.

Eram na verdade admiráveis a memória, o tato, e o tino que a cegueira apurava naquele velho cego; mas para que pudesse tanto, era só e exclusivamente ele o ordenador, e colocador dos livros nas estantes da sua loja.

Albino Jordão foi, como livreiro, contemporâneo dos notáveis e célebres livreiros Saturnino, João Pedro da Veiga e Evaristo Ferreira da Veiga, filhos do primeiro; mas em sua loja, que não podia rivalizar com a daqueles, vendia em geral obras já usadas, livros em segunda mão, e portanto baratíssimos, e se por isso deve ser tido em conta do primeiro alfarrabista da cidade do Rio de Janeiro, foi de tanto proveito para o público, e de tão sã consciência na sua indústria, que nunca lhe caberia o nome feio que os estudantes do Imperial Colégio de Pedro II deram ao vil belchior de livros velhos estabelecido na vizinhança daquele colégio da Rua de S. Joaquim, nome um pouco obsceno que a princípio se estendeu a todos os chamados hoje alfarrabistas.

A Rua do Ouvidor deve perpetuamente lembrar o seu Albino Jordão, o primeiro livreiro que teve, o precursor, ou antecessor dos Srs. Laemmert, Garnier, e ainda outros, o Albino Jordão, enfim, cuja buzina foi tão famosa, como a tesoura de Mme. Josephine e muito mais útil do que ela, se as minhas Ex.ªs. leitoras permitem que eu assim pense.

In Joaquim Manoel de Macedo, Memórias da Rua do Ouvidor [1878], Biografia, introdução e notas de M. Cavalcanti Proença. Ilustrações de Percy Lau. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966, p. 165-166.

A pesquisa que desenvolve Gabriel Costa Labanca, mestrando em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, sobre a história das Edições de Ouro, que tive a satisfação de ver adiantada no recente Exame de Qualificação, me fez nascer a vontade de compartilhar com você, rara leitora, esta obra de Joaquim Manuel de Macedo (Itaboraí, RJ, 1820-Rio de Janeiro, 1882) - o notável autor de A Moreninha -, editada na fase áurea dessa importante editora brasileira de livros de bolso. A obra é uma excelente fonte de nossa história cultural, inclusive em suas referências aos livreiros da rua mais importante de sua época.

Algum de nossos raros leitores certamente leu, por escolha espontânea ou por indicação de seu(sua) professor(a), pelo menos uma edição de bolso publicado pela Tecnoprint no selo Edições de Ouro. Verdade?

Torcemos pelo final do trabalho de Gabriel Labanca, com a segura orientação de Tânia Bessone, que certamente dará ótima contribuição para nossa história editorial.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Governo repassa aos banqueiros (sob a forma de juros) mais de oito vezes o que aplica em educação

Segundo o estudo do Ipea, nos últimos sete anos, o governo [um ano de FHC e seis de Lula] gastou R$ 310,9 bilhões com saúde, R$ 149,9 bilhões com educação e [transferiu para o sistema financeiro e os especuladores] R$ 1,27 trilhão [sob a forma de pagamento de] juros.

Os gastos com juros superam em oito vezes o que foi aplicado em educação e em 10 vezes os investimentos para o país crescer.

"Ademais de poder ser considerado um gasto improdutivo, pois não gera emprego e tampouco contribui para ampliar o rendimento dos trabalhadores, termina fundamentalmente favorecendo a maior apropriação da renda nacional pelos detentores de renda da propriedade (títulos financeiros)", comenta o Ipea sobre os gastos com juros.


A qualidade do gasto público realizado no período de 2000 a 2007 não favoreceu a distribuição de renda no Brasil. É o que destaca a pesquisa divulgada nesta quarta-feira pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base nos mesmos dados Sistema de Contas Nacionais (SCN) e para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

Leia a matéria completa publicada em O Globo, 12/11/2008 às 12h04m
http://oglobo.globo.com/economia/mat/2008/11/12/governo_gasta_em_juros_mais_de_oito_vezes_que_aplica_em_educacao_diz_ipea-586365936.asp

Os especuladores e banqueiros agradecem aos colegas que “receberam” o comando do Banco Central e obrigam o Estado a pagar juros a taxas astronômicas – as maiores do mundo! – aos seus patrões, pela dívida pública, com a esfarrapada desculpa de combater a inflação. Até quando, Senhor, nos irão enganar e saquear?! Até quando a sociedade brasileira agüentará isto passivamente?

Por que o país não paga taxas de juros de dívidas (duvidosas) iguais às que são praticadas nos outros países onde esses mesmos capitalistas especulam? Por que eles e todo o sistema financeiro têm tantos privilégios e gozam de tanta impunidade (a começar pelo presidente do Banco Central) no Brasil?

Até quando veremos a educação e a saúde pública serem uma forma de humilhação para a sociedade brasileira? E a falta de segurança pública...?


Quanto o Estado poderia fazer com o que arrecada de impostos das classes médias e populares (a política fiscal brasileira é às avessas) ao invés de destinar isso para os banqueiros?

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Uma biblioteca, por Luiz Antônio de Assis Brasil

Uma biblioteca não é apenas um lugar em que ficam os livros. Uma biblioteca é um lugar que nos pega por todos os sentidos. Os livros nas estantes, sábios numa assembléia, estão ali, olhando-nos sem curiosidade: eles têm séculos de existência à nossa frente, eles sabem de onde viemos e para onde vamos.

Uma biblioteca não terá fim. Bibliotecas são para sempre. Ali se respira o ar do tempo que, em seu lento evoluir, cria romances, novelas, contos, tratados, compêndios, ensaios, artigos, poemas, dicionários, enciclopédias, e também jornais, revistas.

Uma biblioteca tem o cheiro do tempo. As páginas, amarelecendo como se estivessem num perpétuo outono, possuem um perfume que só os iniciados conhecem.

Ao olharmos à distância para uma estante de biblioteca, não distinguiremos os nomes dos autores, nem os títulos dos livros. Todos os livros parecem iguais. Enquanto não nos aproximarmos, eles irão manter-se numa velada promessa. Isso é bom; isso incita à aproximação. Esse zoom que fazemos com ansiosa expectativa, ao chegar perto das lombadas, revela-nos os títulos, os nomes, numa descoberta caprichosa, quase solene e, ao mesmo tempo, íntima. É como uma descoberta do mundo.

Ao levarmos a mão a um livro, ele se torna nosso. Mesmo que saibamos que ele já foi muito manuseado e que depois passará a outras mãos, naquele instante único ele é nosso. Só nós temos o direito de lê-lo. Na leitura silenciosa não há partilha. É um bem-vindo egoísmo, uma luxúria do espírito.

Mas há novidades neste mundo tão antigo. Depois de quase 500 anos, começam a surgir outras modalidades de uma obra chegar a seu leitor. Como nova geração, chega com algum
alarde. Mas nós sabemos, também, que essas novas formas vieram para permanecer entre
nós. Ótimo: são muito bem-vindas. Seus lugares já estão escolhidos: serão numa biblioteca. Ali conviverão em diálogo com as gerações mais velhas. Ali receberão o cuidado dos bibliotecários. Ali, esses generosos e eficientes funcionários saberão dar a palavra certa ao leitor. Ser bibliotecário é mais do que assumir uma profissão: é entender o mundo como uma ordem. Bibliotecários instauram o Cosmo em meio ao Caos.

Assim, inaugurar uma biblioteca é dar um sentido a tudo o que o ser humano fez nesta longa trajetória sobre a Terra. Sem nenhum drama nem exagero podemos dizer: inaugurar uma biblioteca é um ato para a eternidade.

In Zero Hora, Porto Alegre, RS, 5 de novembro de 2008. Graças à divulgação de Hugo & Cândida, a quem estamos sempre gratos.

Vivemos em época cheia de contradições e com múltiplas realidades, convivendo de forma nem sempre harmônica. Por um lado, percebe-se que o governo, através da Fundação Biblioteca Nacional, do Ministério da Cultura, busca avançar na instalação de bibliotecas públicas nos municípios em que elas ainda não existem. É pouco, mas é muito ao mesmo tempo, pois existir município em que os leitores não tenham acesso a esse espaço de encontros e sociabilidades intelectuais é algo lastimável, numa sociedade moderna. Ao mesmo tempo, vemos que muitas bibliotecas públicas não cumprem verdadeiramente sua missão. E assistimos também à redução das bibliotecas particulares, por várias razões, desde a redução de espaço até ao preço do livro.

Com tudo isso, vozes como a do escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil se fazem ouvir em defesa das bibliotecas e de sua permanência. Assim seja!


E você, raro leitor, usa bibliotecas, além da sua? Está satisfeito com as bibliotecas de que se serve? Acha que a Internet e o Google lhe oferecem acesso a tudo que precisa?

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O Choque das Raças ou O Presidente Negro, Monteiro Lobato, 1926


Capa (sem indicação de autor) e folha de rosto da 1a. edição

(...)
Era Jim Roy na realidade um homem de immenso valor. Nascera fadado a altos destinos, com a marca dos conductores de povos impressa em todas as facetas da sua individualidade. Como organizador e meneur talvez superasse os mais famosos organizadores surgidos entre os brancos. A historia da humanidade pouco [sic] exemplos apresentava de uma efficiencia egual á sua. Consagrara-se desde muito joven á execução dum plano de genio, traçado nas linhas mestras com a mais perfeita comprehensão do material humano sobre que pretendia agir.

- Está-me lembrando o velho Moysés...

- Jim Roy conseguira o milagre da associação integral da população negra sob a bandeira dum partido politico cujas forças, collectadas por extensa cadeia de agentes districtaes, vinham, como fios telephonicos, ter á estação central da sua chefia suprema. Sempre sabias e constructoras, desciam suas instrucções, com autoridade de dogmas, sobre todas as cellulas da Associação Negra (era o nome do partido) e as fazia moverem-se como puros automatos. Esta abdicação, ou melhor, esta sujeição consciente e consentida de todas as vontades a uma vontade única, aperfeiçoara-se de tal modo, que no anno da tragedia a situação politica dos Estados Unidos passou de jacto a depender do leader negro.

- Passou a depender delle como? Pois não eram os negros apenas cem para duzentos milhões de brancos?

- Não se impaciente, senhor Ayrton. Temos que ir por partes. Disse eu que a situação politica da America passou a depender de Jim Roy e foi facto. Mas antes de lá chegarmos temos que fazer um rodeio politico. Gosta de politica, senhor Ayrton?
(...)

In Monteiro Lobato, O Choque das Raças ou O Presidente Negro. Romance americano do anno 2228. [1ª. edição] S. Paulo ; Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1926, p. 130-131.
Para saber mais:
http://lobato.globo.com/biblioteca_Geral.asp

Este blogueiro, cara leitora, associa-se ao regozijo geral e registra este texto do genial Monteiro Lobato, em seu romance "futurista", hoje na ordem do dia. Cremos que, além e talvez mais que um marco na superação do preconceito racial da sociedade americana, a eleição de Barack Hussein Obama II significa a escolha pela não continuidade do governo mais estreito, militarista e criminoso da história política americana recente. E o anseio por uma política de paz, interculturalidade e respeito pelas diferenças, quer interna quer externamente. Torcemos para que não se frustrem as expectativas criadas. Boa sorte, Presidente Obama! Boa sorte, Presidente Negro!

sábado, 1 de novembro de 2008

O jornal e o livro, por Machado de Assis (1ª. parte)

(...)
Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em que preenchesse o fim do pensamento humano? Não, nenhum era vasto como o jornal, nenhum liberal, nenhum democrático, como ele. Foi a nova cratera do vulcão.

Tratemos do jornal, esta alavanca em que Arquimedes pedia para abalar o mundo, e que o espírito humano, este Arquimedes de todos os séculos, encontrou.

O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?

A humanidade desde os primeiros tempos tem caminhado em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia. Uma pedra convenientemente levantada era o símbolo representativo de um pensamento. A geração que nascia vinha ali contemplar a idéia da geração aniquilada.

Este meio, mais ou menos aperfeiçoado, não preenchia as exigências do pensamento humano. Era uma fórmula estreita, muda, limitada. Não havia outro. Mas as tendências progressivas da humanidade não se acomodavam com os exemplares primitivos dos seus livros de pedra. De perfeição em perfeição nasceu a arte. A arquitetura tinha transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos. O Egito na aurora da arquitetura deu-lhe a solidez e a simplicidade nas formas severas da coluna e da pirâmide. Parece que este povo ilustre queria fazer eterna a idéia no monumento, como o homem na múmia.

O meio, pois, de propagar e perpetuar a idéia era uma arte. Não farei a história dessa arte, que, passando pelo crisol das civilizações antigas, enriquecida pelo gênio da Grécia e de Roma, chegou ao seu apogeu na Idade Média e cristalizou a idéia humana na catedral. A catedral é mais que uma fórmula arquitetônica, é a síntese do espírito e das tendências daquela época. A influência da Igreja sobre os povos lia-se nessas epopéias de pedra; a arte por sua vez acompanhava o tempo e produzia com seus arrojos de águia as obras primas do santuário.

A catedral é a chave de ouro que fecha a vida de séculos da arquitetura antiga; foi a sua última expressão, o seu derradeiro crepúsculo, mas uma expressão eloqüente, mas um crepúsculo palpitante de luz.

Era, porém, preciso um gigante para fazer morrer outro gigante. Que novo parto do engenho humano veio nulificar uma arte que reinara por séculos? Evidentemente era mister uma revolução para apear a realeza de um sistema; mas essa revolução devia ser a expressão de um outro sistema de incontestável legitimidade. Era chegada a imprensa, era chegado o livro.

O que era a imprensa? Era o fogo do céu que um novo Prometeu roubara, e que vinha animar a estátua de longos anos. Era a faísca elétrica da inteligência que vinha unir a raça aniquilada à geração vivente por meio melhor, indestrutível, móbil, mais eloqüente, mais vivo, mais próprio a penetrar arraiais de imortalidade.

O que era o livro? Era a fórmula da nova idéia, do novo sistema. O edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma cousa local, estreita. O vivo procurava-o para ler a idéia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada. O progresso aqui é evidente.

A revolução foi completa. O universo sentiu um imenso abalo pelo impulso de uma dupla causa: uma idéia que caía e outra que se levantava. Com a onipotência das grandes invenções, a imprensa atraía todas as vistas e todas as inteligência convergiam para ela. Era um crepúsculo que unia a aurora e o ocaso de dous grandes sóis. Mas a aurora é a mocidade, a seiva, a esperança; devia ofuscar o sol que descambava. É o que temia aquele arcediago da catedral parisiense, tão bem delineado pelo poeta das Contemplações**.

Com efeito! a imprensa era mais que uma descoberta maravilhosa, era uma redenção. A humanidade galgava assim o Himalaia dos séculos, e via na idéia que alvorecia uma arca poderosa e mais capaz de conter o pensamento humano.

A imprensa devorou, pois, a arquitetura. Era o leão devorando o sol, como na epopéia do nosso Homero***.

Não procurarei historiar o desenvolvimento desta arte-rei, desenvolvimento asselado em cada época por um progresso. Sabe-se a que ponto está aperfeiçoada, e não se pode calcular a que ponto chegará ainda.

Mas restabeleçamos a questão. A humanidade perdi a arquitetura, mas ganhava a imprensa; perdia o edifício, mas ganhava o livro. O livro era um progresso; preenchia as condições do pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma cousa; não era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo sempre com o sol e sendo com o ele o centro de um sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades, a mesa popular a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornal.

O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e o fogo das convicções.

O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social.

Quem poderá marcar todas as conseqüências desta revolução?

Completa-se a emancipação da inteligência e começa a dos povos. O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica.

Não é uma aurora de felicidade que se entreabre no horizonte? A idéia de Deus encarnada há séculos na humanidade apareceu enfim à luz. Os que receavam um aborto podem erguer a fronte desassombrada: concluiu-se o parto**** maravilhoso.

Ao século XIX cabe sem dúvida a glória de ter aperfeiçoado e desenvolvido esta grandiosa epopéia da vida íntima dos povos, sempre palpitante de idéias. É uma produção toda sua. Depois das idéias que emiti em ligeiros traços é tempo de desenvolver a questão proposta: - O livro absorverá o jornal? o jornal devorará o livro?

In “Miscelânia”, Obra completa, volume III. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, p. 943-946..

* Publicado originalmente em Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12 de janeiro de 1859.
** Como sabe o leitor, Machado aqui se refere a Victor Hugo, na passagem de seu romance Nossa Senhora de Paris, em que o padre Claude Frollo, apontando para a prensa tipográfica e para as imagens e textos gravados nas paredes de pedra da catedral, diz “Isto vai matar aquilo”.
***Nota do autor: “Colombo”, poema em que trabalha o Sr. [Araújo] Porto Alegre.
**** Na edição usada para esta transcrição, escreveu-se: pacto.

Vivemos, raro leitor, o Ano de Machado de Assis, pois, como sabe, faz 100 anos que nos deixou, legando à posteridade uma obra imortal. Este texto de meados do século XIX nos pode fazer refletir sobre a história da imprensa e a crise de leitura dos jornais impressos, em todo o mundo. Mas é também uma forma de lembrar a sua importância na história da comunicação social e humana, inclusive em comparação com o livro. Aliás, na segunda parte do texto, isto será mais desenvolvido. Creio que retornaremos a ele, pois supomos que nem todos os nossos raros leitores terão como fazê-lo com muita facilidade. Ou terão?

PS: Duas exposições no centro do Rio de Janeiro, bem próxima uma da outra, marcam o Ano de Machado de Assis e encantarão nosso raro leitor, uma na Academia Brasileira de Letras, com muitas primeiras edições de sua obra, e outra na Biblioteca Nacional, com o seu riquíssimo acervo machadiano. É hora de visitar.

Carlos Drummond de Andrade e a primeira emoção literária

Recordemos, rara leitora, daquele que sempre se recusou a ingressar na Academia, e que é, não obstante, um dos grandes imortais de nossa literatura: Carlos Drummond de Andrade.

Em 1902, na Itabira do Mato Dentro, Estado de Minas Gerais, em 31 de outubro, chegou ao mundo aquele que viria a ser um de seus maiores poetas brasileiros. Este dia ficou para sempre marcado por esse fato.

Assim, lembremos de um dos oito programas dominicais que fez na Rádio Ministério Educação e Cultura – Rádio MEC, PRA-2, uma série de entrevistas concedidas a Lya Cavalcanti. A transcrição [?] dessas entrevistas compõe o livro Tempo Vida Poesia, Confissões no Rádio, publicado pela Record, em 1986. Esta é a primeira das entrevistas (p. 11 a 14 do livro):

Mal, Obrigado

- Boa noite, poeta. Como vai?

- Mal, obrigado. Todas as vezes que a gente começa uma coisa, há a premonição de não dar certo...

- Ué, você não confia no seu programa?

- Eu? Nem um pouco. Mas vamos experimentar, como fazem tantos reformadores sociais. Se não der certo, não corremos o risco dos atores no palco. Você volta para o seu escritório na Câmara dos Deputados...

- E você para a sua casa.

- É, o rádio tem isso de bom, como a televisão. Não precisa xingar, bater ou matar ninguém: basta girar o botão, ou desligar.

- É verdade que sua idéia não deixa de ser... petulante. Me desculpe, mas isso de fazer memórias pelo rádio...

- Tá desculpada. No fundo, você está sendo é gentil, insinuando que sou ainda muito jovem para contar minha vida, e que ela continua. Na verdade, a vida que continua sempre é a dos outros. A da gente vai ficando reduzida a certos interesses fundamentais, e mesmo não perdendo em intensidade, será uma intensidade concentrada em área menor. Uma lâmpada, e não um lustre, entende?

- Ai de mim, vou começando a entender.

- Pois é isso. Chega um momento em que a pessoa, fatalmente, se joga numa poltrona macia, estica as pernas e diz: Bem, vamos recordar, como na Ceia dos Cardeais.

- E você vai abrir sua vida diante de todo mundo? Que falta de gosto, para não dizer: que horror!

- Falta de gosto ou horror, por quê? Então você acha que ela mais... quer dizer, menos publicável do que a dos outros?

- Não é isso. É que para mim o processo de recordação tem qualquer coisa de íntimo, de intramuros, passado entre duas pessoas. Se você o pratica pelo microfone, está fazendo conferência, dando aula, posando, até mentindo sem querer. Acaba desvirtuando a pureza do traço para interessar o público no seu desenho. E isso é uma pouca-vergonha, desculpe a expressão.

- Sossegue, Lya. Não vou dar um show de mim mesmo ao público. Nem o público havia de gostar, pois afinal eu não desintegrei o átomo, não ganhei a Segunda Guerra Mundial, não descobri a penicilina... Que é que me pode ser atribuído na história da humanidade, ou mesmo da contracultura? Nada. Rabisquei papelório burocrático e uma versalhada do tipo livre. Os homens e mulheres notáveis, do ponto de vista humanitário, científico, político, esses é que têm imagem digna de multiplicação.

- Mas já me disseram que você escreve bem, e nessa qualidade...

- Não exageremos. Não há código para decidir o que é escrever bem ou mal. E há ainda o problema grave: o que merece ser escrito, bem ou mal, para o bem de todos? O que eu pensava em fazer pelo rádio não era me contar, era contar o que eu vi outros fazerem, ao longo de algumas dezenas de anos de vida literária. Isso me dispensaria de contar o que eu mesmo fiz, se é que fiz alguma coisa, e se não teria sido melhor deixar de fazê-la.

- Mas você não contar tudo que viu, é claro.

- Não. Mas gostaria de contar também como é que a ação dos outros se reflete no espírito da gente. A vida literária pode ser comparada a uma superfície espelhante, não direi manso lago azul, em todo caso um lago ou piscina. Cada escritor que surge e se reflete nele é por sua vez reflexo mais ou menos vivo de outros escritores, que por sua vez... Em suma, a literatura é um fenômeno de imitação ou repetição. Não havendo, por exemplo, o laguinho dos suplementos e revistas literárias, como diminui o número de poetas!

- Muitos não fariam falta. No seu caso especial, quais foram as imagens que você começou a refletir no espelho? Ou por outra, que fizeram de você um literato?

- A primeira reminiscência de sentido literário, que me acode, não é propriamente de um texto de literatura, em verso ou prosa, mas de um personagem de romance. Não do romance em si, mas da figura projetada por ele. Porque o texto não era bem texto, era uma coleção de legendas de uma coleção de figuras, na versão infantil do Robinson Crusoé, de Defoe, na revista O Tico-Tico, publicação da maior importância na formação intelectual das crianças do começo deste século. Creio que lhe devo minha primeira emoção literária, pois, quando Robinson conseguiu se mandar da ilha, senti um nó na garganta: eu queria que ele continuasse lá o resto da vida, solitário e dominador... Emoção produzida por uma personagem literária, um mito.

- Mas você é o tipo do caramujo, puxa! Ainda fedelho, e já sonhava com ilhas desertas.

- Não era bem a solidão da ilha que me encantava no Robinson, era talvez, inconscientemente, a sugestão poética.


Fica a sugestão, rara leitora, que tal ir à biblioteca mais próxima - a da sua sala? - e ler ou reler essas entrevistas. A segunda é "Leituras de garoto".